sábado, 6 de outubro de 2018

Elegia a Emmett Till


A tradução tem quase trinta anos; hoje eu faria outra e não esta. Reli e publico assim, sem mudanças, para lembrar o que senti enquanto traduzia e confirmar que ainda sinto a mesma indignação (e porque não teria tempo de traduzir poesia, algo que me faz falta),
Também vejo que não perdi de vista o que é importante
.
Elegia a Emmett Till
Nicolás Guillém
(Tradução Francisco César Manhães Monteiro)

A Miguel Otero Silva

O corpo mutilado de Emmett Till, 14 anos, de Chicago, Illinois, foi retirado do rio Tallahatchie, perto de Greenwood, em 31 de agosto, três dias depois de ter sido raptado da casa de seu tio por um grupo de brancos armados de fuzis...
The Crisis, New York, outubro de 1955.

Na América do Norte,
tem a Rosa-dos-Rumos
a sua pétala sul rubra de sangue.

O Mississipi passa
ó velho rio irmão dos homens negros!
com as veias abertas entre as águas,
o Mississipi quando passa.
Suspira o amplo peito
e em sua guitarra bárbara
o Mississipi quando passa
chora com intensas lágrimas.
O Mississipi passa
e fita o Mississipi quando passa
árvores silenciosas
que têm pendentes gritos já maduros,
o Mississipi quando passa,
e fita o Mississipi quando passa
cruzes de fogo ameaçador,
o Mississipi quando passa,
e homens de medo e de tumulto,
o Mississipi quando passa,
e a fogueira noturna
cuja luz canibal
alumbra a dança branca,
e a fogueira noturna
com um eterno negro ardendo,
um negro segurando
envolto em fumo o desprendido ventre,
os intestinos úmidos,
o perseguido sexo,
ali no Sul alcoólatra,
ali no Sul de afronta e látego,
o Mississipi quando passa.

Agora, ó Mississipi,
ó velho rio irmão dos homens negros!,
ora um menino frágil,
pequena flor de tuas ribeiras,
não ainda raiz dessas tuas árvores ,
não tronco de teus bosques,
não pedra de teu leito,
não caimão de tuas águas:
menino apenas,
menino morto, assassinado e só,
negro.

Menino com seu pião,
com seus amigos, com seu bairro,
com sua camisa de domingo,
com sua entrada pro cinema,
com sua carteira e quadro-negro,
com seu frasco de tinta,
com sua luva de baseball,
com seu programa de boxe,
· com seu retrato de Lincoln,
com sua bandeira norte-americana,
negro.

Menino negro assassinado e só,
que uma rosa de amor
lançou aos pés de uma menina branca .

Ó velho Mississipi,
ó, rei, ó rio de profundo manto!,
detém aqui tua procissão de espumas,
tua azul carruagem de tração oceânica:
fita este corpo leve
de anjo adolescente que trazia
sequer ainda bem fechadas
s cicatrizes sobre os ombros
onde teve suas asas;
fita este rosto de perfil ausente,
desfeito a pedra e pedra,
a chumbo e pedra,
a insulto e pedra;
fita este aberto peito,
o sangue antigo já de duro coágulo.
Vem e na noite iluminada
por uma lua de catástrofe,
a lenta noite de homens negros
com suas fosforescências subterrâneas,
vem e na noite iluminada,
diz-me tu, Mississipi,
se podes contemplar com olhos de água cega
e braços de titã indiferente
este luto, este crime,
este mínimo morto sem vingança,
este cadáver colossal e puro:
vem e na noite iluminada
tu, repleto de punhos e de pássaros,
de sonhos e metais,
vem e na noite iluminada,
ó velho rio irmão dos homens negros,
vem e na noite iluminada,
vem e na noite iluminada,
diz-me tu, Mississipi...

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