Oswaldo Martins. Poeta e professor de literatura. Autor dos livros desestudos, minimalhas do alheio, lucidez do oco, cosmologia do impreciso, língua nua com Elvira Vigna, lapa, manto, paixão e Antiodes, com Alexandre Faria. Editor da TextoTerritório
sexta-feira, 26 de agosto de 2016
da poesia
1
lirismo sacana
se explodir significa dizer
la petite mort
vá à merda e
afinal
vê se não fode
(oswaldo martins)
2
delicadeza lírica
ir à foda como se vai ao mar
para ser devorado por tubarõas
(oswaldo martins)
retrato
para joão simões
fortini
1
por triste o sorriso
quem a seca
estende ao léu
o rosto
2
mas havia negativos
e inversas possibilidades
para o rosto
que reverbera em dry martini
3
ainda no reverso
advinda em lagos,
nigéria
ou na meca do capitalismo
4
podia a vida
mais que a vida pode
se as moças dançassem nuas
num cabaret de paris
5
ou no 69 barbacenense
a que se ia, de bicicleta
pelas bolhas da cerveja
e o lirismo que explodia
(oswaldo martins)
quarta-feira, 24 de agosto de 2016
O Cristo de Eugênio
Eugênio Hirsch várias vezes nos
visitou em casa. Com seu jeito peculiar de ver o mundo, nos ensinou muitas
coisas, a todos. Lembram-se com carinho dele meus filhos, Walnice e eu. Um dia,
desses perfeitos que o passado nos cria e faz sentir saudade dele, convidei-o a
ir a Barbacena para corrermos o barroco mineiro. Tiradentes, São João e
Congonhas – não deu para esticar até Ouro Preto, pena.
Armou-se o amigo de desenhos
feitos por ele para presentear a casa de meus pais. Levou uma montagem com a
figuração da Pietá com recordes feitos por ele mesmo. Era uma interpretação
livre – Zélia Cardoso era a Madona que amamentava um garboso Grande Otelo de
Cristo, com uma bela e portentosa atriz, de que não me lembro agora do nome, de
cupido. E para meu pai um Cristo na cruz com um pau enorme e ereto, também em
montagem de imagens de revistas.
A conversa e explicação da imagem
para meu pai foi uma conversa a Eugênio.
Ah, sim – dizia – ele (o Cristo)
era do carajo. O fato de ter comido Madalena e algumas outras merecia uma homenagem
e como toda pessoa ao morrer tem a rigidez peniana não poderia ser de outra
maneira que se podia retratá-lo na cruz. E daí decorria sobre a arte clássica
com enorme fervor e sacanagem, temperados pelos ah, sim, que soavam
musicalmente nos nossos ouvidos.
(oswaldo martins)
notação
1
o avesso
talvez a janela despeje
pássaros de olhos assassinados
2
o relógio
você rodava sentadito
em uma gangorra da infância
3
o exato
quiçá fosse a manhã
a brancura das roupas sem sol maior
4
a casa
o assoalho rondava os ratos
que ávidos se faziam de mortos
5
a equação
o alarido do dia
explode fora dos silêncios
6
em uma igualdade de sentidos
apreendia-se o abismo
(oswaldo martins)
domingo, 21 de agosto de 2016
Pilulinha 48
Como se
estivéssemos em palimpsesto de putas, de Elvira Vigna, tem a qualidade
de não se deixar cair em nenhum tipo de concessão ao sentimentalismo
emocionado, no entanto, se constrói a partir de um dilaceramento interno de seus
personagens, que beira o mais puro lirismo. A linguagem precisa, cortante, envolvente
para o leitor, é o tempo todo desconfigurada pela narradora ao, no ato de
contar, deixar entrever que a história que se conta não é a história que se
conta. Há um além que cinicamente vai sendo desmascarado pelo pensamento que de
forma elíptica vai se construindo.
As personagens são surpreendentes.
A construção em espiral – as irrealizações possíveis, o jogo de esconder-se de
si mesmo – vai se sucedendo numa
possibilidade única, numa temática única, que explode na temática que se
escondia sob os desacertos da narração. O palimpsesto – a forma machadiana
preferencial –, aqui vivenciado pelo não contar o que na verdade se conta,
apresenta a maestria de Elvira, em seu grau mais intenso.
Talvez na literatura brasileira
as putas – mas não é, e é, sobre elas que se escreve tenham tido a sua presença
narrada de forma tão lírica e humana. As putas do livro assumem um grau de
complexidade trágica. Presentes o tempo todo no romance, por sua ausência de
caracteres, assumem a máscara trágica que se revelará na cena da morte de
Cuíca. A partir desta estrutura, o romance retira as máscaras de seus atores e
os coloca nus frente a eles mesmos.
Como nas grandes tragédias, resta
ao leitor debater-se com o mundo derruído da contemporaneidade.
Ps – leiam com atenção como a
personagem Lurien é o oráculo que se salva.
(oswaldo martins)
quinta-feira, 18 de agosto de 2016
pilulinha musical
Paulo Cesar Pinheiro é um
letrista que nunca erra. Acompanho o poeta desde quando apresentado a ele
anosos anos 70, por um amigo, Bernardino, de quem fui parceiro em algumas
músicas, quando vivia em Barbacena, MG. Apresentou-me ele a música de Eduardo
Gudin, em seu primeiro disco. A velhice da porta-bandeira, E lá se vão meus
anéis, entre outras pérolas; uma joia, Dino.
Depois fui
seguindo o cara. E puta que o pariu! Era foda ouvir todos os versos dele.
Sempre perfeito, com João Nogueira, Tom Jobim, Guinga – que músicas do caralho!
– Edu Lobo, Moacyr Luz, a turma toda. E o Luna, O Marçal e o Eliseu!
Caralho. A
música da Portela, da Serrinha! Meu deus, parece coisa do Aleijadinho de quem
disse o Oswald que atingiu o grau mais alto das artes brasileiras. Para mim,
Paulinho Pinheiro, Chico Buarque e Aldir Blanc são os aleijadinhos da nossa
modernidade.
(oswaldo
martins)
tarde
1
a janela olha-me
diz-se olhar deste de delfos
o anúncio da tragédia
esperamos eu e ela
parado no ar
o grito
2
nada se vê
nem o ela eu
nem o arcabouço
do tempo
tirésias da nulidade
3
a distância com que
olhamos
não é
sequer um após
o apostema
que guardamos
não se revela
4
o que
olhamos
seca as mãos no guardanapo
a aspereza
do que não se diz
do que embora se saiba
5
o resto
soluções brutas
para que a vida siga
sem a janela
que olha
(oswaldo martins)
fado arranhado
para o excelentíssimo professor
senhor doutor antónio de oliveira
de quem eu gosto
nem a mim permitem saber
estas paredes
nem elas sabem
estas paredes
o que dizem saber
o que simulam saber
nada sabem estas paredes
nem de mim hão de saber
eu não confesso
elesbão ribeiro
12, 13 e 18 /08/16
quinta-feira, 11 de agosto de 2016
Pilulinha 47
O romance Sem Gentileza, de Futhi Ntshingila, da Editora Dublinense, lê-se de
um único fôlego. A autora sul-africana, de etnia zulu, aos poucos, vai
descerrando os percalços de um país no qual a miséria e a subvida dominam a
narração, e o drama da gravidez precoce, da aids e da impossibilidade de se
manter vivo se concretizam por meio das palavras da escritora.
A literatura vem acentuando no
mundo todo esse escrever legítimo dos que nunca puderam dar a ver seu drama. A
temática às vezes acerta, às vezes erra. Muitas vezes o erro está,
paradoxalmente, na pouca profundidade da exploração da linguagem e do que pode
ela construir sobre universo tão profundamente inquietante. Se se pudesse
pensar a matéria literária matematicamente, diria que a igualdade formulada para
a resolução de uma equação se perde numa incongruência. Se de um lado o drama
vigoroso da vida admite que nele se debruce o escritor, do outro a matéria
sobre a qual é seu ofício se perde nem dois desdobramentos bastante complexos.
O primeiro estaria em que nem
sempre a resolução dos problemas trazidos à tona pela vida permite que se
escolha entre a gentileza e a falta dela; essa escolha denotaria uma percepção maniqueísta
da vida não permitindo que o trágico se coloque, para que dele possa surgir uma
ética, apostando-se apenas na narrativa do desastre, que acaba por ser
redentor, pois que deixa antever apenas uma moral, que sempre será volátil e
excludente.
O segundo estaria na composição
da trama. Ntshingila a compõe de maneira admirável, fazendo com que confluam os
eixos narrativo numa mesma direção. As personagens se desenvolvem aos poucos
vão ganhando contornos definidos e as ligações entre eles, obscuras por motivo
necessário e verossímil, se fecham de modo perfeito. Percebe-se aí a mão da
escritora, sua maestria.
Entretanto o segundo
desdobramento não é o bastante. Há de se ultrapassar certo bom mocismo que
desponta no plano geral da narrativa e alivia – porque parte do exemplo – a consciência
culpada que obrigatoriamente e por motivos éticos deveria recair sobre a
parcela usurpadora dos direitos sociais e humanos.
Ao dar à personagem uma saída integradora,
a autora, ao mesmo tempo que chama atenção para as mazelas que afligem a sociedade
apartada da África do Sul, não permite que se aprofundem as questões que a levaram
a esta exclusão, bastando-lhe a leve comoção moral com que seus leitores
certamente se identificarão.
(oswaldo martins)
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