O
poema de Oswaldo Martins não está lá na página para ser lido. Ele padece de
afasia acústica. Está escrito e exposto no livro Manto menos para ser lido e mais para ser visto.
Ouvir
a cadência das letras faz parte da vida cotidiana comunitária. Ouvi-las e as
reconhecer no modo como, pelo sopro fonético, elas se combinam e se articulam de
maneira popular ou convencional, de maneira arbitrária ou estética, em palavras,
legitimando – ou apenas sabotando aqui e ali, com luvas de pelica − o todo-poderoso dicionário e a
gramática normativa. Em poesia, a métrica, a rima e às vezes a forma fixa corroboram
as delicadezas do bem azeitado labirinto auricular letrado e canônico, que se
revela muito, pouco ou em nada sutil (cada caso é um caso).
O poema de Oswaldo não bate continência à tradição poética auricular, ou
falada. Nem a despreza completamente. Em seu lugar, ele instaura a
pedra-de-toque da “desmesura”, que diz
não!
a tudo que, ditatorialmente, exige a leitura em linha reta e em crescimento
progressivo.
O
poema de Oswaldo não reconhece métricas que encadeiam sons
ad infinitum. Padece de afasia acústica. Requer ser visto aos cacos.
Por estarem encarcerados por detrás dos interstícios de dentes falhos da grade
de cárcere, os cacos devem ser pinçados e recompostos pelo exercício dos olhos
de leitor no momento em que o próprio texto nega − à cadência retilínea das letras
e ao único reconhecimento das palavras pelo ouvido − o funcionamento cotidiano
e histórico, artístico e autoritário da língua escorreita, dita nacional.
Os cacos que se escrevem nas falhas
do poema se apresentam para serem recompostos e apreciados pelo leitor em
semelhança e harmonia ao espetáculo oferecido pelas assemblagens (vocábulo que
serve de título ao mais radical de todos os poemas de Manto) dos artistas plásticos. Se apenas lido, o poema de Oswaldo estará
sempre descarrilando pelos trilhos do labirinto auricular, causando uma
barulheira infernal. Pergunta-se: estes versos iniciais (“o albatroz o manco o
abanico as horas / não dia noite tarde tempo o outrossim”) serão fala? Lá estão na página de Manto para ser lidos? Não! lá estão para
ser vistos.
Em
se tratando do longo e insano trabalho de compreensão da linguagem humana pela filosofia
ocidental, não é arbitrária embora seja judiciosa e inadiável a recente desarticulação
operada pela ascendência da visão (a escrita)
sobre o ouvido em cadência e ritmo temporal (a fala).
Jacques Derrida fincou os pés na desconstrução do fonocentrismo
linguístico, cujas pegadas nos foram legadas por Platão e aprimoradas por,
entre outros e muitos contemporâneos, Ferdinand de Saussure, Claude
Lévi-Strauss e Jacques Lacan. Antes de se apresentar como mera inversão de
valores, ou seja, uma teologia às avessas, a desconstrução derridiana dramatiza
um modo de convivência de posturas e valores opostos (fala/escrita) em que o
sujeito transgride e enfraquece a hierarquia em posse do cânone (a fala) para
hipotecar esperança na pesquisa (a escrita). O futuro pertence à linguagem
poética des/articulada como poetou Herberto Helder: “Movem-se margens /
Fundações afundam-se / Mundo. / Não mundo / só o amálgama”. Pertence, ainda, à
linguagem dos interstícios como postulou Aby Warburg no seu Atlas Mnemosyne. Pertence finalmente ao espaçamento como alertou
premonitoriamente Stephanne Mallarmé nos idos do século 19.
A
frase – para abandonar as letras e as palavras do parágrafo inicial e retomar o
raciocínio da tradição linguageira pelo viés amplo da organização sintática em
oração – sempre foi composta pelo ouvido de maneira a estabelecer a hierarquia formal
entre os elementos, hierarquia montada em consonância com o sentido (ou com o fluir)
do tempo.
A vontade suprema da
frase – também
chamada
et pour cause de
oração −
é a
de ordenar o convívio humano pelas regras da sociabilidade coercitiva e divina,
relegando ao segundo plano o papel da escrita, mais exposta aos reclamos da
democracia e do humano demasiadamente humano anarquismo, e que nos leva a
acreditar que podemos nos entender sem as irremovíveis constrições temporais,
pré-determinadas pelo encadeamento fonético.
A
razão (também chamada de clareza ou de casticismo pelos manuais de estilo) dita
a cadência na corrida dos cem metros com barreiras da frase, que se inicia pelo
sujeito, fazendo-o suceder pelo verbo que ele comanda e os poucos ou muitos
complementos com que pinta as circunstâncias. A desconstrução do fonocentrismo
se faz acompanhar da desconstrução do logocentrismo.
O
poema de Oswaldo se escreve para que a frase, ao se descentrar,
se abra
à vista do leitor como espetáculo em palavras e em sintagmas soltos. Dilate-se e
se equacione
em
filigranas. O poema deixa a descoberto suas ramificações secretas, como pranchas
botânicas dispostas em papel, onde se dissecam em epigramas a folha, a flor ou
o fruto. O poema “o estandarte da sensatez” diz: “a arte como se faz retalhar o
mundo e surgir um outro // em seu lugar”.
Por
o poema de Oswaldo Martins estar preocupado em desconstruir o império da razão,
da clareza e do casticismo que é imposto aos súditos pela obediência às regras
fonéticas e à norma culta, autenticadas pela língua nacional, ele questiona em radicalidade
não só o centramento repressor da
phonè
como também o centramento excludente do
logos.
A escrita liberta as palavras do recalque fonético imposto pela fala para que
se as leia nos dentes falhos da (chamada)
loucura
humana. Desconstrói-se a armadilha
operada pela razão imperiosa e também, no caso do artista, pecuniária.
• •
•
Inscrita
num dos mantos (22 de dezembro de 1938), a frase de Arthur Bispo do Rosário que
serve de epígrafe a Manto, de Oswaldo
Martins, não escreve lição diferente da que este posfácio vem afirmando:
Eu preciso
destas palavras – escrita.
Gloso
Arthur Bispo. Sou aquele que a comunidade de doutos julga louco e, por isso, estou
encarcerado no hospício, onde moro. Não falo
as palavras de que necessito, escrevo
as de que preciso para a minha proteção, sobrevivência e salvação. Leitor meu,
não as enuncie fonetica e equivocadamente; veja-as pelas des/articulações
mobilizadoras da atenção, rearticulando-as pela leitura dos olhos. Sou um
artista plástico das letras, das palavras, da escrita. Tudo em mim, para mim,
por mim e para todos é assemblagem. Cacos que ganham corpo próprio e autossuficiente,
escrita e identidade libertária.
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Oswaldo
Martins sabe que há que dar de presente à linguagem (da poesia) a liberdade que
só os destituídos – ou seja, os desprovidos
daquilo que vulgar e eruditamente se chama de razão, clareza e casticismo − conquistam
no recolhimento diante das asperezas do mundo, dos homens e dos ditadores de normas.
Estou citando e acentuando, claro, os
adjetivos livre e tortos neste verso: “A vida livre dos
homens tortos” (“da cidade 2”). Os destituídos são providencialmente (?) recolhidos (vale dizer: excluídos,
afastados, retraídos, encobertos, abrigados, encarcerados em Colônia... – que
rica e desconhecida é a polissemia do repúdio social providenciado pela razão).
Os destituídos/recolhidos são os tortos-livres do mundo. Na divisão em partes
do social, do político, do econômico, etc., os destituídos/recolhidos são, no
entanto, os que, apesar da queixa pelo alto custo e pelos grandes gastos que
acarretam à comunidade, ficam sempre com a pior parte. Em falta.
Destituído
e recolhido em Colônia, Arthur Bispo tece e borda o próprio manto que na
verdade deve ser o único a recobri-lo de modo autêntico (no tempo da vida) e a
protegê-lo de modo duradouro (na eternidade do labor artístico), pois é ele que
o apronta – prepara, aparelha, maquina −
para o Juízo Final. O livro de Oswaldo Martins dramatiza o acerto de contas do
tempo e da eternidade com o homem. O manto de Arthur Bispo se metamorfoseia em Manto, tecido e bordado em cacos de
frase que brilham para que também sejam vistos quando recobrem postumamente as
figurações e as palavras do artista. Leia-se o poema “barbante”:
palavras de avaras possibilidades e
desconexas
patas a roer o mundo que arthur
quis em direta
descomunhão de uma sintaxe visgo do
silêncio.
Não
há que ser generoso com os destituídos. Não os sentimentalizemos. Não há que
escutar os recolhidos, aprendamos. Os destituídos/recolhidos não esperam dos
pares a mera escuta ou a esmola. Nós já sabemos, distanciemo-nos, pois, dos catecismos
de variada espécie.
Eles
aguardam um poema, aquele que faça justiça não só ao recolhimento tornado libertário
pela escrita do ser humano, artista no recinto da Colônia Juliano Moreira, como
também ao prazer do corpo que, destituído e recolhido, procura ser visto e ser admirado
pelo seu labor artístico, e não apenas escutado pelos lamentos ou pelos gritos
da dor. Oswaldo Martins estampa seus poemas na página em branco como Arthur
Bispo do Rosário ostenta suas obras no espaço de recolhimento em que obrigaram
o sergipano a sobreviver no Rio de Janeiro.
• • •
Não é por querer ser
contemporâneo dos investimentos tecnológicos na arte ou por ser sensível ao
modismo dos estilos de época atuais (a referendar o uso de imagem em obra
escrita), que o poema de Oswaldo Martins requer ser mais visto que lido.
Em Manto, não há foto, fotograma, desenho ou reprodução de quadro ou
objeto artístico, não há arabesco, calligramme
(à la Appolinaire) ou ideograma (à la Fenollosa/Pound).
O livro não se parece com os dos poetas concretos ou neoconcretos nem se
assemelha aos dos contemporâneos de Manto,
como os do poeta e cantor Arnaldo Antunes. O poema de Oswaldo nem mesmo está
sintonizado com as modernas ondas hertzianas. Sua eletricidade é abscôndita, a
da descarga infalível de raios e de emoções na página em branco. Sua vanguarda
é a da palavra escrita e é outra, como estamos tentando provar.
Seu poema estaria mais
sintonizado – já que o tópico é a intercomunicação entre pares − com alguns de
João Cabral de Melo Neto que seriam configurados formalmente pela estética da falta – da falta de água no Nordeste
natal. Poemas da terra, poemas configurados formalmente pela estética da seca,
da fome, da miséria. (Pela estética dos dentes falhos de Arthur Bispo.) Representativo da série de poemas a que
estamos nos referindo pode ser “Rios sem discurso”, que se encontra em A educação pela pedra.
Citemos João Cabral: “Em situação
de poço, a água equivale / a uma palavra em situação dicionária; / isolada,
estanque no poço dela mesma / [...] porque assim estancada, muda, / e muda,
porque com nenhuma comunica, / porque cortou-se a sintaxe desse rio, / o fio de
água por que ele discorria”.
Sem a generosidade da água que brotaria
na nascente e jorraria desde a nascente, o rio se desenvolve parado, em poças/poços
pela planície árida. As poças/poços se cristalizam em recolhimento pelo sol inclemente
e se assemelham a uma palavra solta no dicionário ou a sintagmas perdidos por
causa da interrupção abrupta do discurso, tornando-se desprovidos do caudal fluido
e sintático de água que a tudo entrelaçaria e rebentaria e daria ritmo,
conduzindo até o mar, que é a morte, como aclara o célebre poema renascentista
de Jorge Manrique.
Mas na planície do sertão, as
imagens cadavéricas de animais e de humanos − a imagem solitária da morte (até
mesmo a causada pela putrefação pantanosa de O cão sem plumas) já está na falta
de correnteza, na estagnação. A morte não é – como nos poemas da razão − consequência
do fluir natural da água, do rio, da vida.
Animais e humanos são seres desprovidos de movimento que serão recolhidos pela
própria casa, como no poema “Cemitério paraibano”: “Uma casa é o cemitério /
dos mortos deste lugar”. Ou recolhidos pela canoa de Guimarães Rosa que, graças
à força diuturna dos braços de remador, permanece contra-a-corrente na terceira
margem do rio. Ou recolhidos pela própria Colônia Juliano Moreira.
No poema de Oswaldo, cada palavra
é também “visgo do silêncio” e, por isso, muda e para os olhos. Na falta da correnteza do discurso no
poema, cada agrupamento de palavras em sintagma solto é poça. É poço de
profundidade desconhecida e misteriosa. E sobrenatural. “É muito fundo o poço
do passado”, nos alertou Thomas Mann diante de outra escrita poderosa, a de
José e seus irmãos. Em mantos de Arthur Bispo e no Manto de Oswaldo, cada palavra/sintagma/imagem, cada concreção/poça/poço
é também – sem ser necessariamente figurativa − uma representação do humano. É um
enigma, a que tememos e ousamos qualificar de humano e poético porque sua
ressonância – por não ser discursiva − padece de afasia auricular embora ganhe –
até mesmo no desprezo do poeta Oswaldo pela grafia espetacular de letras em
maiúscula − os ares litúrgicos de Escritura
Santa. Escrituras em mantos. Arthur Bispo e Oswaldo.
O enigma humano e poético se
manifesta por um labirinto que não se esparrama horizontalmente pela página em
branco. Ele se esparrama em verticalidade e suspensão, em fendas e em suspense,
ele se infiltra no amplíssimo espaço da história carioca e da vida dos
destituídos pela broca da palavra/poça e do sintagma/poço. Para não se
putrefazer, ele se desorganiza organicamente em “assemblagens”.
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• •
Como
não há estória a investigar ou a decifrar, como não há trama a levantar,
não são os poemas na sua integridade, serão as imagens na sua parcialidade
emblemática que reganharão o palco da página – do seu caderno de notas, por
exemplo, caro leitor – a fim de que, perfilhadas pelo juízo crítico na pia
batismal do vosso gosto e prazer estético, possam explicitar o que é (e existe
e significa) e o que não é (e não existe e não significa) no universo dos
mantos de Arthur Bispo do Rosário e do
Manto
de Oswaldo Martins.
Não selecionaremos algumas
imagens. Pediremos a todo e qualquer leitor que as escolha e as apresente em
listagem − aqui, ao final da leitura, como este posfácio. Lidas e relidas em
recolhimento, à semelhança do recolhimento criativo de Arthur Bispo na Colônia
ou do encolhimento poético de Oswaldo em Laranjeiras, que essas imagens sejam
matéria de muito sentir e muito sofrer, de muito apropriar e muito alegrar-se,
de muito imaginar e muito afirmar, sejam matéria de muito refletir.
A listagem de imagens
desmesuradas e sua leitura desregrada terão algo de uma bela sequência cinematográfica
da loucura (do amor). Essa sequência paralela não está nos mantos nem em Manto, está para ser (re)vista no
Google. Refiro-me ao final do filme A
dama de Shangai. Refiro-me à sala de espelhos, Hall of mirrors, onde, às vésperas do beijo, se refletem Rita
Hayworth e Orson Welles, perseguidos pelo marido ciumento. Há revólveres, tiros
e vidro espatifado pelo chão.
Refiro-me também e finalmente aos
triangulares, especulares, circulares, mirabolantes, mágicos e perturbadores da
ordem qs de Oswaldo. Estes:
“anquê do inquê / q desdiz qs // do dês de dizer / é”. Ou estes: “revoam os qs dos ratos / num sibilar constante /
sem tempo ou espaço”. E ainda: “o céu
aberto deste quê”.
Cacos de vidro no fundo de minha casa
são para
construir muros
– escreve um aforismo afiado, a evocar
tanto os muros intransponíveis (transponíveis só por ordem superior) da Colônia
Juliano Moreira quanto os muros da leitura que perfilam, contra o horizonte da
poesia brasileira atual, o artista plástico Arthur, o poeta Oswaldo e os seus
atrevidos leitores. Nós. Tudo que ontem foi lido como espelho, hoje é visto
como caco de vidro.