quarta-feira, 25 de setembro de 2013

poema do dia

ESCULTURA

A forma da fêmea integrou-se no corpo do macho,
Ambos uma só pedra
Onde ressaltam, invisíveis, separando-os
As duas almas supérfluas.

(Dante Milano)

terça-feira, 24 de setembro de 2013

aforismos

1

três moedas de um centavo
é um cruzeiro dez contos de réis

2

cavalinhos armados na praça
servem de cadeira para o espanto

3

nomes servem para criar patranhas
salvar pessoas

4

pincel não só pinta quando
desconstrói linhas para o pensamento

5

brilhantina perfumada serve
para passar nos cabelos

6

regador para fio de água
apresenta-se com pelos de flor bordada

7

o azul é para o céu
o que a equação é para o ócio

8

cacos de vidro no fundo de minha casa
são para construir muros

9

ladrilhos dependurados no teto
bancam imagens para o cão ladrar

10

arte são penduricalhos
que voejam no espaço entre o olho

e o descaso

domingo, 22 de setembro de 2013

memórias

Cheguei em Piedade em 1956. Morei no Engenho Novo entre 52, quando cheguei de Portugal, e 56. Tinha dez anos quando cheguei em Piedade. A escola Goiás era a mais próxima ficava na rua Goiás, no Encantado, quase esquina da rua Guilhermina, hoje uma rua conhecida por causa do restaurante Rei do Bacalhau. A escola Goiás, assim como a escola Medeiros de Albuquerque, em que estudei no Engenho Novo, tinha quintal por onde podíamos correr uns atrás dos outros durante o recreio. Chegávamos em sala de aula suados e agitados, mas o que quer uma criança, senão correr? As duas escolas foram transformadas em prédios como são hoje todas as escolas da rede municipal: gaiolas prisionais. As escolas desse tempo que estou recordando eram aproveitamento de antigas residências ou os prédios foram projetados para serem escolas?  
Ao lado da escola Goiás corre o rio Carioca. Tendo vivido às margens do rio Douro, ainda que por pouco tempo, o rio Carioca me parecia uma vala por onde escorriam águas sujas. Portugal também deve ter rios assim, só não tive tempo de conhecê-los.
Depois das aulas, nosso entretenimento era deitarmos barquinhos de papel nas águas do rio ao lado da escola na rua Goiás e correr para a rua Guilhermina para vê-los desaparecer na galeria subterrânea, uma das tantas por onde corre o rio Carioca.
Em outros momentos, entrávamos no rio pra pegar peixinhos, que alguém dizia não serem peixinhos, mas filhotes de rã, cujo nome não lembro. Colocávamos os peixinhos dentro duma lata vazia. Depois não lembro mais o que fazíamos. Lembro só das sanguessugas, minhocas que se colavam em nossas pernas
Mais adiante em séries posteriores, nos tornávamos ousados. Para desespero de nossas casas, pois atrasávamos a volta da escola, íamos aos trens. Pegávamos o trem na estação do Encantado, atualmente desativada, onde até hoje está a escola.  Não me lembro se pagávamos a catraca ou se galgávamos a encosta da linha férrea para chegar à plataforma. Entrávamos no trem e saltávamos em Piedade, estação adjacente. Em Piedade, voltávamos ao trem e saltávamos no Engenho de Dentro, estação também vizinha à estação do Encantado. No Engenho de Dentro, entrávamos outra vez no trem e saltávamos todos no Encantado. Um ou outo poderia ficar na estação de seu bairro. Mas voltávamos ao Encantado, bairro em que ficava a escola. E íamos andando cada um para sua casa. Ainda éramos pequenos e o mundo era grande.

elesbão ribeiro

22/09/13

terça-feira, 17 de setembro de 2013

para a poesia de cecília meirelles

uma folha se mexe

sob o grão de chuva
a gota pende

antes da hora
o silêncio absoluto

desta arte
de suspender

o mundo


(oswaldo martins)

Moldura da Pele

5.
Mina do Chico Rei

estratégia de liberdade
cravada nas tripas

(Rute Gusmão)

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Soneto CXVI


Sonnet CXVI

Let me not to the marriage of true minds
Admit impediments. Love is not love
Which alters when it alteration finds,
Or bends with the remover to remove:
O no! it is an ever-fixed mark
That looks on tempests and is never shaken;
It is the star to every wandering bark,
Whose worth's unknown, although his height be taken.
Love's not Time's fool, though rosy lips and cheeks
Within his bending sickle's compass come:
Love alters not with his brief hours and weeks,
But bears it out even to the edge of doom.
If this be error and upon me proved,
I never writ, nor no man ever loved.

(Willian S)

André Capilé
Soneto CXVI -- W. SHKSPR

Nada atravanca o enlaçar de almas veras
— bem ao contrário; posto o amor não ser
amor, se muda por mudar seus pés
fujões — ou se deserta sem peleja.
Aí deu ruim, que amor é ponta firme;
raios! vê-se em tumulto e não sacode
— erra, uiva, vibra, estrela, resiste —
desconhecido, é certo; e mais que pó.
A célere ampulheta — a boca e a face
coram — declina, compassiva à muda
que o amor não cede à toda hora. Amar,
agüenta paciente o tempo cru.
Se no lance a parada deu equívoco,
quem vai provar? Não, se amou. Nunca o escrito.

brejeiros urbanos

1

balaço
sua passagem

sugere
sangue nas têmporas

terraços
e mansuetude


2

um corpo
voa

chagall

sobre a cidade
e seus morros

3

di
balança o pincel

quebra a mão

a mulata
requebra as ancas

4

os olhos
perdem-se

quando
na rua

passa majestosa
a dor

5

a pedra
se solta

apenas
lembra

os pés
ali

6

sem corpo
o corpo

passa

o barro
da ternura

7

já se foi

quem passou
passou

e não passa
mais

(oswaldo martins)

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

cantiga de ninar

história  pra ninar raparigas românticas
tanto quanto eu

um príncipe ao ver uma bola
na relva

uma bola estava na relva
à espera de um chute

o príncipe chutou a bola
a bola  escolheu o regaço duma lavadeira
no riacho da aldeia

no final da tarde foi o pai da rapariga
levar ao rei a bola do príncipe

como ousas disse o rei
vir me dizer que o meu filho chuta mal

deixa estar meu pai
sinto nesta bola
o cheiro das minhas camisas.

elesbão ribeiro

04/09/13

Bricanagens 18 e 19

18

neste curto espaço
de umas poucas décadas
com buril se luta
sem faltar gazua

neste lento carma
sempre nos convém
fainas converter
em doce leseira

nossos predicados
ninguém vai louvar
por falsa justiça
talvez manca e torta

nossa desventura
nem assim se forma:
resta uma certeza
de tudo engrupir

eis uma vitória
que ninguém nos rouba:
a muitos enganos
soubemos lograr

 (Ricardo Tollendal)

            
19

desastrada como sempre
a criatura humana
tropeça num coração piegas
que desfigura a poesia

ninguém se baba
nem coloca palavras de molho
em calda de pudim
para verbalizar transe fugaz
que se resolve em poucas linhas

vamos e venhamos:
nem melado com farinha
ou mesmo papos-de-anjo
conservam elementos inerentes
ao prodígio poético

enxugue a boca
glicose é antídoto para o verso
utilize de preferência

vinho branco, orégano e noz moscada

(Ricardo Tollendal)

Escritos 15 e 16

15

Na tela da TV sem som você com o fone no ouvido eu espero. e quero pintar nessa tela um quadro mudo parado pensando em nós dois. nós dois esperando não sei bem o que. na tela sem cor sem imagem sem som na sala não sei bem aonde você sentado de pernas cruzadas sem me ver ouvir aqui tão calada.

nem mesmo o relógio. nem mesmo o relógio. nem mesmo o relógio.


1987

(Letícia Tandeta)


16

a memória do que já foi meu rosto sardento de poucos amigos um girassol não tinha efeito verdadeiro despencando suas pétalas.
Sunflowers, 1888. clareiam entre o céu cinza que não fique azul os raios água abaixo transparentes objetos na lama de cada um.

1997

(Letícia Tandeta)

terça-feira, 10 de setembro de 2013

fotografia de cadáveres

fotografia de cadáveres

perna estilhaço unha
espinha e metatarso

tíbia períneo balaço
intestino e esôfago

tripa buceta bíceps
neurônio e sartório

glúteo mão trapézio
falange e escafoide

sacro escroto ílio
reticular e escápula

pé adutores coxa
ruína e massacre

(oswaldo martins)

terça-feira, 3 de setembro de 2013

Três poetas

“Ao passar junto da vide
Ela arrebatou-me o manto,
E logo lhe perguntei:
Porque me detestas tanto?
Ao que ela me respondeu:
Porque é que passas, ó rei,
Sem me dares a saudação?
Não basta beberes-me o sangue
Que te aquece o coração?”

Al-Mu’tamid



EU ESTOU SÓ

Eu falo de quem fala de quem fala que estou só
Eu sou apenas um pequeno ruído eu tenho vários em mim
Um ruído amassado gelado na intersecção das ruas
despejado no pavimento húmido aos pés dos homens
precipitados correndo com as suas mortes
À volta da morte que estende os seus braços
Sobre o relógio sozinho respirando ao sol.

Tristan Tzara, in L'Homme approximatif


A foto

Sorrindo, nervosa, mas alegre,
consciente de sua juventude e fama,
ela abriu o caminho que lhe pediam,
indiferente, quase de brincadeira.

Sob a eterna infância da cúpula celeste,
abril de mil novecentos e doze
promete-lhe, nos Ospedaletti,
apenas prosperidade e sol.

Ela olha para a renda das nuvens,
com as mãos cruzadas no colo.
As sombras dos tormentos futuros
ainda estão presas naquela foto.

Em paz com o doce mês de abril —
leia-se Aprille — úmido e quente
como âmbar que se petrificou,
ela ainda se sente intocada.

Quando a idade chegar, o fim também,
um sabujo retardatário ainda há de encontrar
esse perfil terno e anguloso, preservado
para sempre num coágulo de luz.

Com que calma moldam-se, nesta dama
bem vestida, de feições claramente traçadas,
os sinais do talento, mostrando-se tão fáceis
como no título de um livro.

Quem lhe pediu, como presente,
esse tristonho comentário, emoldurado
em papel, sem nada escrito a lápis,
essa fronte, essa franja na testa?

O que há, para ela mesma, nesta foto?
Ela dá de ombros: façam o que quiserem!
E pinta esse retrato — Ospedaletti,
abril de mil novecentos e doze.

Que frescor, tão cedo, aqui nesta terra!
Ó amanhã, concede-lhe mais tempo!
Espera até que ela termine e assine “Anna
Akhmátova” no último verso.


(Bella Akhmadúlina)