“Ao passar junto da vide
Ela arrebatou-me o manto,
E logo lhe perguntei:
Porque me detestas tanto?
Ao que ela me respondeu:
Porque é que passas, ó rei,
Sem me dares a saudação?
Não basta beberes-me o sangue
Que te aquece o coração?”
Al-Mu’tamid
EU ESTOU SÓ
Eu falo de quem fala de quem fala
que estou só
Eu sou apenas um pequeno ruído eu
tenho vários em mim
Um ruído amassado gelado na
intersecção das ruas
despejado no pavimento húmido aos
pés dos homens
precipitados correndo com as suas
mortes
À volta da morte que estende os
seus braços
Sobre o relógio sozinho respirando
ao sol.
Tristan Tzara, in L'Homme
approximatif
A foto
Sorrindo, nervosa, mas alegre,
consciente de sua juventude e fama,
ela abriu o caminho que lhe pediam,
indiferente, quase de brincadeira.
Sob a eterna infância da cúpula
celeste,
abril de mil novecentos e doze
promete-lhe, nos Ospedaletti,
apenas prosperidade e sol.
Ela olha para a renda das nuvens,
com as mãos cruzadas no colo.
As sombras dos tormentos futuros
ainda estão presas naquela foto.
Em paz com o doce mês de abril —
leia-se Aprille — úmido e quente
como âmbar que se petrificou,
ela ainda se sente intocada.
Quando a idade chegar, o fim
também,
um sabujo retardatário ainda há de
encontrar
esse perfil terno e anguloso,
preservado
para sempre num coágulo de luz.
Com que calma moldam-se, nesta dama
bem vestida, de feições claramente
traçadas,
os sinais do talento, mostrando-se
tão fáceis
como no título de um livro.
Quem lhe pediu, como presente,
esse tristonho comentário,
emoldurado
em papel, sem nada escrito a lápis,
essa fronte, essa franja na testa?
O que há, para ela mesma, nesta
foto?
Ela dá de ombros: façam o que
quiserem!
E pinta esse retrato — Ospedaletti,
abril de mil novecentos e doze.
Que frescor, tão cedo, aqui nesta
terra!
Ó amanhã, concede-lhe mais tempo!
Espera até que ela termine e assine
“Anna
Akhmátova” no último verso.
(Bella Akhmadúlina)