quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Dois fragmentos de Lúcia Leão


uma bossa nova

disseram que a bíblia era um grande sonho repetidamente interpretado em novos idiomas. pensei muito no assunto e o assunto pensou muito em mim. nos tornamos um só e de tal forma que agora quando falo nele sei que ninguém quer ouvir. difícil abordar uma pessoa que cabe assim totalmente dentro de uma ideia. e hoje quando incomodei a vizinha para pedir água gelada ela me olhou de cima a baixo e me perguntou por que não conserto a geladeira. respondi que minha vida é um deserto que percorro sozinho, só eu e este meu deus. sem falar nada ela me deu uma garrafa plástica, cheia, e uma bandeja de gelo. que eu passasse o gelo na testa, disse, e jogasse a água na cabeça para acordar daquele pesadelo. e riu. interpretei a cena como um sinal. se ela que parece tão equilibrada acha que assim eu resolveria meus impasses, então eu estou no caminho certo. mal posso esperar para ver as estrelas no céu escuro e aberto, deitado na areia, costas no chão, olhos no infinito. mas o que vejo mesmo, da janela do meu quarto, é uma nesga do mar. de copacabana.  neste momento, sei que estamos juntos.


acerto

vigiava maravilhado as pernas dela enfiadas dentro dos patins. na lagoa, as pessoas pareciam não notar tanta beleza. ele ia a pé, de tênis, ela meio rápida com o equipamento que a fazia deslizar com elegância expandida. o desafio, para ele, era acompanhar sua velocidade. não era bonita. nem tinha a juventude de muitas outras ao seu redor. suas pernas suscitavam uma inveja nele como nunca antes. sem serem musculosas, impeliam o corpo para frente como se as montanhas e os prédios, os carros, os barcos a remo, os quiosques, babás, pipas, vendedores ambulantes e restaurantes fosse tudo criação sua, ou seja, dela. era uma deusa. e ele mal conseguia acompanhar o que fazia. não que quisesse tocá-la, sabia que se o fizesse tudo em volta se diluiria em desculpas e explicações. e não há nada pior que encostar no avesso do seu espelho, ele um menino ainda, por dentro. ela, o absoluto de uma quase terceira idade. ela o lembrava de uma professora que nunca tinha tido por ter sido colocado na classe da sala ao lado. talvez tivesse chegado a hora de entender como isso havia acontecido. lembrava agora que as turmas eram divididas pelo sobrenome. 

Um comentário:

  1. Muito bom! Adorei o ritmo , o desenrolar dos acontecimentos e a descricao dos cenarios...

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