Em 2008, o Brasil se viu no meio de uma discussão sobre até que ponto o moralismo e a hipocrisia ainda estariam inseridos na sociedade. Após ser convidado pela própria diretoria da Escola Parque a falar na sala de aula sobre seu trabalho de escritor, Oswaldo Martins foi demitido. O motivo: escrevia poesias de conteúdo erótico-pornográfico. A reclamação veio dos pais de alunos que, após ouvirem a fala do professor, foram buscar sobre ele na internet e se depararam com seu blog. Também na web, o escritor possui publicada uma releitura dos Sonetos luxuriosos, de Pietro Aretino, denominada I modi². A abordagem de Martins difere da de Drummond: sua poesia é feita para transgredir. E se O amor natural era transgressor, o que dizer da poesia que questiona abertamente os valores da sociedade e diz “caralho”, “buceta” (sintomaticamente grafada com u), “foder”? Em Cosmologia do impreciso (2008), sexo e vida se confundem. Onde lemos “bucetas” podemos ler “Eros” – e Eros não é menos que vida. Assim como o corpo feminino, a arte é também vida e fonte de prazer – é possível sentir tanto prazer com ela quanto se sente com a relação sexual. Volta, então, a ideia de corpo e espírito que Oswaldo trabalha: se a arte, segundo a visão tradicional, é uma atividade sublime, ao ligá-la tão intimamente ao corpo, o poeta está mais uma vez afirmando que o espírito e o corpo não se separam: no sublime da arte, há a criação erótica, carnal – há o prazer.
quando quadros e livros
bucetas são
não são bucetas que se levam
aos livros e quadros
senão que quadros e livros
buscam
o que de bucetas
são (MARTINS, 2008, p. 93)
O caráter transgressor da poesia de Oswaldo não aparece somente na utilização da linguagem sexual para se referir a outros assuntos, como o poema acima citado mostra. O que vemos é uma subversão do discurso sexual do poder de que fala Michel Foucault (FOUCAULT, 1988): se a sociedade é permeada pela verbalização do sexo de forma técnica, classificatória, como forma de, pela dissipação, banalizar e repelir a prática, o que temos na poesia de Oswaldo é o discurso poético sobre o sexo. Longe de ater-se a minúcias biológicas, seu texto faz a sexualidade trocar frequentemente de posição com a arte. O discurso sexual, aqui, está fora do âmbito do poder; não se trata de uma de suas ramificações que se estabelecem à medida que o sexo é verbalizado e normatizado.
Na subdivisão “Estudo para pinturas sacras”, do Cosmologia, o poeta volta-se para a religião: começa por desconstruir a imagem de “virgem” de Maria. A virgem, figura tão pura nas escrituras, é aqui mulher real e faz intrigas, obtém favores, finge e, o mais importante, faz sexo. Fala de sexo. Fala de deus e de sexo ao mesmo tempo. Reúne sagrado e profano.
A virgem de olhos doces tece intrigas
para conquistar os favores
de deus
para isso usa de artifícios
finge no olhar vazio
ser a menina dos olhos
depois diz para isabel:
fodi com deus.
ah, isabel, isabel,
com ele
é como se fodesse com todos os homens (MARTINS, 2008, 105)
Neste poema aparece uma questão interessante: aqui, o sexo com Deus é uma forma de entrar em contato com todos os outros homens. É como a comunhão – mas feita a partir do corpo. Se, ao ingerir o que representa o corpo de Deus, a pessoa entra em contato com este e ao mesmo tempo com todos os seus irmãos, aqui a proposta é a mesma, mas a comunhão é feita pelo corpo em si, e não por uma representação dele. É possível enxergar também a questão da projeção divina no homem. Se o homem foi feito à imagem e semelhança de Deus, por que seria o sexo uma característica nossa e exclusivamente nossa, carnal? Não: aqui, o sexo atinge também a divindade.
Depois, Oswaldo retoma os “Ensaios sobre a pintura”, de Diderot, onde o filósofo, escritor e crítico de arte faz uma série de considerações sobre como seria a relação entre arte e sexualidade, caso esta não fosse brutalmente reprimida pelo cristianismo.
Se nossa religião não fosse uma sombria e insossa metafísica, (...) se esse abominável cristianismo não se tivesse estabelecido mediante o assassinato e o derramamento de sangue, (...) se todos os nossos santos e santas não estivessem cobertos até a ponta do nariz (...) se a Virgem Maria houvesse sido a mãe do prazer, (...) se, nas bodas de Canaã, Cristo, tocado de vinho, um tanto desabusado, houvesse percorrido o colo de uma das jovens das bodas e as nádegas de Santa Joana (...) veríeis o que fariam nossos pintores, poetas e escultores; em que tom falaríamos desses encantos, que exerceriam um papel tão sublime e tão admirável na história de nossa religião e de nosso Deus; e com que olhos contemplaríamos a beleza à qual deveríamos o nascimento, a encarnação do Salvador e a graça de nossa redenção. (DIDEROT, 1993, 94-95)
A transposição para a poesia é feita a partir da tomada de pequenos trechos de Diderot (como “se Madalena houvesse tido alguma aventura galante com Cristo” ou “se as alegrias de nosso paraíso não se reduzissem a uma absurda visão beatífica”), que são em seguida desenvolvidos por Oswaldo Martins:
4
cristo nas bodas de caná houvesse percorrido o colo das moças
e com os olhos inebriados de tesão
tocasse aqui uma teta
ali as curvas
as portentosas nádegas
da mulher que se oferecia
mais que a morte
seria a carne
nossa unção (MARTINS, 2008, 112)
A grande questão levantada neste poema é: o erotismo, ao mesmo tempo em que se relaciona à vida, também é vida – mais: é unção, é algo sagrado. E este seria um valor universal, não fosse a imagem criada e repassada até hoje pelas religiões, que têm em Jesus Cristo a personalização de seus valores – e é sua imagem de ausência de sexualidade que nos foi passada como exemplo de conduta.
ANDRIOLLI, Larissa. Corpos abertos e silêncios rasgados: o recurso poético e político do erotismo na contemporaneidade. Mafuá, Florianópolis, ano 9, n. 15, março 2011.