sexta-feira, 20 de setembro de 2024

Domesticação

S. espiava de sua janela. A amplitude da praça, o parque pelo qual as pessoas passavam, sem deixarem de olhar para baixo, desligadas do que havia em torno, com seus capuzes que lhes cobriam o rosto, deixando apenas de fora os olhos para que não tropeçassem e fizessem com que os outros, do pelotão de trás, as pisoteasse. Os passos sincronizados, as mãos trêmulas que se estiravam ao longo do corpo eram uma imagem única, desprovida de matizes. Todos vestiam roupas sem nenhum atrativo; os corpos semelhantes não os individualizam; os ruídos monótonos não faziam referência a nenhuma música. Caminhavam e despareciam.

Mais ao longe, se aguçasse o olhar, veria alguns soldados chicotearem outro grupo de pessoas, ouviria os gritos, perceberia os rostos plenos, sob os esgares medonhos e ameaçadores, os acordes violentos e vivos, as mãos a se agitarem, os quadris a inventarem passos, uma flor brotar ao acaso entre as pessoas e logo sumir, as cores desenfreadas a se mostrarem nos cabelos, as luzes. As portas se abriam com estrondo. Veria serem as pessoas jogadas para dentro delas, as engenhocas, os corpos nus, os leitos em fileiras, os homens ali amarrados.

Se ainda estivesse atenta, perceberia, atrás da porta que se fechara, alguns homens de terno, com seus aparelhinhos luminosos, tocarem uma superfície lisa da qual surgiam imagens harmônicas, interrompidas de vez em quando por um pequeno ruído que os fazia deslizarem o dedo por ela. Surgiam então conhecidos felizes, cujas roupas coloridas encantavam àqueles que as olhavam. Observaria ainda que a sala de repente escurecia e apenas alguns pontos se iluminavam e que os aparelhinhos haviam trocado de mãos.

De sua janela, veria os homens, antes agitados, sorrirem e receberem suas roupas com capuz e serem levados de volta à praça. Caminhavam quietos e cabisbaixos, as mãos tamborilando ansiosas e lentas na altura dos quadris em direção às suas janelas de onde poderiam observar o espetáculo do mundo, as cores vivas com a quais ele tomava forma e o simulacro de si mesmos caminhando despreocupados pelo parque que não mais notariam.


quarta-feira, 18 de setembro de 2024

lingerie

 

lingerie

 

o pequeno buraco se fizera

após alguns anos

 

de algodão barato

insinuante o cheiro dos dias

 

na curva da bunda

o furinho sem incômodo

 

ajeitava mosaicos

sobre a pele

 

s. preferia a de cor roxa


(oswaldo martins)

ilhas-de-não

 a bailarina

para julia fernandez


revela-se essa moça quando braços

antecedem os movimentos do corpo

a arrastarem-se ao som de uma voz

ausente e às marcações de indícios


alheias formas de escultura e busca

sujeitas ao discernimento metafísico

das negativas e dobras cujas voltas

fazem dançar no cimento da cidade


as sombras antes etéreas por refletir

no móbile do espaço o corpo reposto

à carne e ao friúme da força acessa


da boca do lixo ao esplendor informe

tanto fulge o fausto da chama quanto

o chão simula o anteparo da leveza


Dia Machado de Assis