sábado, 4 de julho de 2020

capítulo 1


1

Quando JM não nascera, as partes de seu corpo pairaram sobre diversas cidades do mundo. Tivera a sorte de as conhecer antes de que dele soubessem. Não vagou pelo mundo à toa, antes compreendera que não estar era uma forma mais profícua de se dar a apreciar e recolher pedaços de realidade que mais serviam para traduzir um sistema falto de sentido. Imiscuíra-se entre as gentes e, por isso, frequentou espaços jungidos em suas diferenças, sem a necessidade de traduzi-los nas formas aceitáveis da alienação, que mais se pareciam a enormes rinocerontes, a rostos desfeitos pela multiplicidade dos olhares, a corpos nus e bem dispostos pelas ruas, trabalhados com as réguas perfeitas do entendimento. Vivera o anímico das mitologias, antes de os homens pensarem nos significados que iriam adquirir, para que eles pudessem dar respostas elaboradas aos enigmas, às físicas universais, ao amor e aos trigos, com que fizeram o pão, às bagas de uva e aos desesperos, com que cavaram sepulturas na terra. Assistira à entronização da exploração antiga e às televisões e aparelhos do mundo contemporâneo, tudo reificação do medo e da miséria, transvestida em letras garrafais. À sedução do inalcançável, este bichinho que rói como uma bandida, fabricada às pressas para construir um arcabouço explicativo a que faltaram peças para se escancarar a máquina de moer e destroçar corpos.

Um porco, enorme capado, rebolava o rabinho. Era uma graça de se ver, mas JM não vivera para apreciar a maciez dos tenros pernis. Estivera ali, é certo. Tocara adiante e reservou para este lugar o esterno, com o assombramento dos que intuem se colocar no lugar do nobre animal. Dispensara o banquete, a flauta que tocava não traduzia em sabor a réstia de sol que se abateu bem no centro nervoso. Guinchava na descoberta cuja lição os livros de anatomia escondiam, com discursos vãos sobre o sustento da vida, sobre a ternura, transbordada dos olhos recém esfaqueados na celebração do festim da órbita oca.

JM ainda não fora ao longo do tempo, que invernara nos antes dos conformes do nascer, um Zé, um João Ninguém, o nano corpo a ser formar, durara séculos de probabilidade e nada que se pudesse tentar para fazê-lo pular para dentro da vida lhe dera suficiente sagacidade. Desenho que atirava toscos tocos na direção infinita das pipas de céu e vento.

Os baba-ovos, os remenda-corvos, os salve-salve torciam as mãos satisfeitos com o monstro que teimava, que teimava em se manter, enfim, até onde pudera só já não nascer.

(oswaldo martins)

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