quarta-feira, 28 de outubro de 2015

Sobre o lapa


Oswaldo Martins: lapa – memória, fetiche e contemporaneidade.

o detalhe capta a imagem e te
integra toma teus olhos olha
na perspectiva mínima
Oswaldo Martins

Ao se relacionar, de maneira muito menos direta, com a mímesis, a libido, em vez de vazar sua energia, retém a e a prolonga no objeto que constitui.
Luiz Costa Lima

No livro A ficção e o Poema, Luiz Costa Lima desenvolve o conceito de mímesis-zero. Deslindando a noção kantiana de intuição, o teórico brasileiro tenciona as noções de tempo, espaço, violência e libido para propor a mímesis como uma dimensão do conhecimento; assim, em seu estágio zero, [a mímesis] implica todas as faculdades humanas, fracassando na tentativa de explica-la a partir de uma decisão pessoal e consciente (LIMA, 2012, p. 34). Costa Lima explica

Tenho a mímesis-zero como uma mímesis-sem; uma mancha ou nebulosa na psique de um agente, que, não tendo ainda forma, tampouco possui movimento. Mímesis-zero equivale a dizer que não contém figuras ou linhas de força configuradas. Ela é um como se, isto é, algo que, em estado de gestação, se for plenamente diante, será um objeto ficcional. Mímesis sem movimento porque mera potencialidade. Enquanto potencialidade, ela é uma mancha ou nebulosa já tocada pela libido. A junção entre mancha psíquica e libido significa que algo ou alguém, uma paisagem ou quem a atravessou, ali deixou uma marca que, por enquanto, provoca tão só uma impressão, no entanto duradoura (LIMA, 2012, p.  26).         

Assim, gerado pela libido, o objeto ficcional é fruto da mímesis-sem ou mímesis-zero porque é potencialidade; pois, a despeito de suas ligações com o real, a sua criação se dá como o “vir-a-ser”, daí sua “nebulosidade” que, no entanto, se tornará “marca duradoura”.
Tomado como lugar teórico, a mímesis-zero será o fio condutor para a leitura de alguns poemas do lapa, de Oswaldo Martins. Publicado em 2014, o livro é organizado em sete cenas e propõe uma complexidade singular: seus poemas estão em diálogo intersemiótico com diversas fotos feitas pelas ruas do bairro da Lapa, no Rio de Janeiro, cidade onde o autor passou a residir na sua juventude. Feitas para (com)figurar no livro, as fotografias foram produzidas, sob a supervisão do poeta, por Vand Santiago e Alexandre Faria que registraram os movimentos de duas modelos contratadas –  que posaram como prostitutas passantes mulheres tão-somente – e colaboraram para alargar fronteiras de gênero ao se apropriarem dos sintagmas da rua e dos corpos, compondo, numa relação metonímica entre imagem e texto, uma lírica de foto-poemas.
 Assim, fruto da memória (que é a libido prolongada no olho do observador) do rapaz que caminhava por aquelas paisagens, as duas artes miméticas – a fotografia e a escrita – tornam a lapa ficcionalizada  potencialmente o vir-a-ser; pois assim como cada foto desloca a paisagem de seu lugar de pertença, cada poema toma teus olhos, desalienando a visão para uma perspectiva mínima, como adverte o poema citado na epígrafe. Fetiche do poeta, as ruas se desreificam, tornando-se parte da construção de um eu que lê no seu tempo ido o seu tempo presente:


a  rua  caminha  sob  teus  pés  objetos
confusos  miram  e  acatam  a  vista no
recompor  de  moeda uma cega te mira
bicuda  enquanto  levantas   a  saia   va
gabunda   solícita   a   dedos   e   lirismo
(MARTINS, 2014, p.35).


O quinteto, quarto foto-poema da cena II, poderia estar dedicado à une passante. A tônica fetichista que remete à Baudelaire, o gozo do voyeur, atravessará toda a obra, pois a Lapa ficcionalizada por O. Martins é cheia de olhares atentos aos mínimos detalhes, à perspectiva mínima. Os objetos confusos da rua miram a mulher que passa. A cega que guarda a esmola mira a mulher enquanto ela passa com seu movimento de saia de tecido vaporoso. No lapa, tudo se dá a ver. E a foto em preto e branco ao lado esquerdo do poema – meus olhos não perguntam nada – registra o momento em que fortuitamente a saia se levanta enquanto a moça, parada, ajeita o sapato. Enquanto todos esses elementos se movimentam no poema, dançando diante dos olhos, a personagem da foto que é feita em preto e branco, estática, ganha uma perspectiva distante no tempo, como se estivesse a caminhar pela rua projetada na memória do poeta.
Mímesis-zero, a marca das reminiscências do poeta são, não um leitmotiv, mas uma coleção de intuições que a libido projetou no devir. Como relata o poeta no prefácio ao lapa, escrito em 1984, o livro permaneceu inédito até 2014, mas foi se tornando obsessão e matriz de tudo o que escrevi depois. [...] funcionava como um fetiche para mim (MARTINS, 2014, p.06). Assim, como um jogo de sinédoques, toda a obra de Oswaldo Martins é parte do projeto iniciado nos anos 80. É neste jogo de ausências e presenças que a própria categoria de tempo vem à tona nos poemas, através do olhar:




rua da lapa

e paras. as retinas contra-postas nas vitrines quase
espelhos. te olham. o descortínio de um gato modorra
sobre a careca de um manequim de barro. abana o rabo
permite o tempo. o gato. recorre aos lábios o rictus
do peito estufado e paras. as roupas vestem no corpo
o gato no manequim de barro. abana o rabo, previne o
tempo. o pacto. ritualizas os lábios e paras
(MARTINS, 2014, p.33)
   

A cena cindida pelas construções paratáticas para o poema. Ali, o olhar pode se demorar em vitrines sem pressa como a preguiça letárgica do gato, observando a si mesmo como sujeito que sorri o gesto enregelado, ausente de si. A fotografia capta a rua praticamente sem movimento e transeuntes, parada ao entardecer de casas com diversas arquiteturas atravessadas pelo tempo. Segundo Giorgio Agamben, no livro Estâncias – a palavra e o fantasma na cultura ocidental:

Por mais que o fetichista multiplique as provas de sua presença e acumule um harém de objetos, o fetiche lhe foge fatalmente entre as mãos e, em cada uma de suas aparições, celebra sempre e unicamente a própria mística fantasmagórica (AGAMBEN, 2012, p. 62)

Desse jeito, a lapa é construída pela fluidez da memória que, perecível, não pode ser colecionada como coisa; assim, a importância da libido como propulsora desta poética é radical, pois mantém o mosaico de acontecimentos teso e em projeção, podendo ser revisitado e saqueado, ao mesmo tempo matriz e motriz da escrita, como confessa Oswaldo. Como explica Agamben:  

É curioso observar que um processo mental do tipo fetichista está implícito em um dos tropos mais comuns da linguagem poética: a sinédoque (e na sua parente mais próxima, a metonímia). No fetichismo, à substituição da parte pelo todo que ela efetua (ou de um objeto contíguo por outro) corresponde a substituição de uma parte do corpo (ou de um objeto anexado) pelo parceiro sexual completo. Prova-se assim que não se trata apenas de uma analogia superficial pelo fato de que a substituição metonímica não se esgota na pura e simples substituição de um termo por outro; o termo substituído é, pelo contrário, ao mesmo tempo negado e lembrado pelo substituto, com um procedimento cuja ambiguidade lembra de perto a Verleugnung freudiana, e é justamente dessa espécie de “referência negativa” que nasce o potencial poético particular de que fica investida a palavra (AGAMBEN, 2012, p. 60).

A construção do tempo de lapa é, portanto, vincada pela subjetividade e também pelo trabalho do leitor crítico – leitor de si e de seu tempo –, de forma que a criação da Lapa dos poemas é contemporaneamente anacrônica, na mesma medida em que desterritorializada. Isto é; ao tratar do bairro boêmio carioca, o lirismo escatológico de lapa é uma como uma ronda que à maneira de Agamben, percebe no presente uma facho escuro do passado.    

ronda

tocaram-se as fumaças que a outra boca expelia
a paixão repetia têmporas paroxismos os corpos
tensionados refluíam pela névoa chuva miúda na
comissura dos lábios cabelos molhados onde tal
vez suporte do improvável mão vultos movimento
transmude passivo nos labirintos do lirismo
(MARTINS, 2012, p.37).


 (Tatiana Franca - comunicação feita em Três Corações MG)

Nenhum comentário:

Postar um comentário