CENA LÍRICA, ANTECENA DE APAGÃO
notas sobre um alumbramento e Joaquim Cardozo
Cláudio Correia Leitão
POEMA PARA A NUDEZ DE ÍTALA NANDI
O ato sexual, na teoria dos meca-
nismos, é um conjugado de prismas.
Ítala Nandi despiu-se,
Tirou suas roupas desnecessárias
E não conseguiu ficar nua:
Sua bunda, seus seios minúsculos, sua babaca pequenina,
São as mesmas da primeira nudez em que nasceu.
Apenas ficou mais lisa
Apenas entrou na periferia
De um corpo nu pintado: de Carnach ou de Baldung.
- Nudez de Eva, a primeira mulher.
Ítala Nandi, por que escondeste
Por tanto tempo a todos nós
Tua santa e secreta nudez?
Tua nudez sagrada...
Nudez para ser beijada
Com esse nu, tão assim de superfície
Todo o teu esforço no sentido da arte erótica
Onde a plateia e os atores são os mesmos,
Dás apenas o efeito tátil de pouca penetração.
Com essa primeira e indígena nudez,
Ítala Nandi, é quando te vestes
Que ficas nua.
Cena motivadora
O Poema. “Poema Para a Nudez de Ítala Nandi” está circunstanciado nas montagens carioca (Teatro João Caetano) e paulistana (Teatro Oficina), do drama épico brechtiano intitulado Na selva das cidades (Im Dickicht der Stadt, 1923), em 1969, quando pela primeira vez uma atriz despiu-se inteira em cena, frontalmente e com toda iluminação, fato que virou notícia e entrou para a história do palco no Brasil. A gaúcha Ítala Nandi interpretou a prostituta Maria, que se desnuda, sob a direção de José Celso Martinez Correia. O poema atenta para um espetáculo, como para outros da mesma troupe. Exposições de pintura e gravura, o salto triplo de um campeão são prefigurações de um olho que vê ao mesmo tempo o espetáculo da existência e uma sociedade do espetáculo em formação. Há um gesto simultâneo de enquadramento e de escuta. Atriz e plateia interagem na fala de um eu coletivo que se dá “a todos nós” (v.11).
Lírica e dramaturgia
Joaquim Cardozo (Recife, 1897-1978) escreveu poesia, dramas e operou cálculos de engenharia para projetos do arquiteto Oscar Niemeyer. Seu primeiro livro de versos é de 1947: Poemas. Foi professor da Universidade Federal de Pernambuco, onde uma grande biblioteca leva seu nome. A produção de peças teatrais é rica. O coronel de Macambira e De uma noite de festa são duas delas. Poeta pouco lido e pouco estudado, elaborou versos provocadores de crítica e alimentadores para aqueles que porventura busquem rumos para a criação poética hoje através da leitura de bons poetas brasileiros do século passado. Possuía Cardozo – deduz-se do que publicou – ouvido afeito aos ritmos de falas, de versos, de danças e folguedos de tradições populares do Nordeste e do Brasil. Tinha também olho arguto para perscrutar e recriar a paisagem e figurações no espaço. A atração visual talvez seja um parentesco poético com versos de João Cabral de Melo Neto, signatário de dedicatória a Cardozo. Acresçam-se à dupla atenção sensorial cardoziana os sons e as imagens, a constituição de um eu poético esbatido por melancolia e nostalgia, como que relevos presentes em fluxos de frases e como recursos temáticos. Sirva de exemplo a “Canção Elegíaca” difundida por ensaio de José Guilherme Merquior. A canção exalta a mulher viva, projetando porém sua vida acabada, “Quando teus olhos fecharem”, no entanto eternizada aqui e agora, em retórico futuro, por imagens insólitas como – “As águas regressarão / Ao seio das cordilheiras; (Cardozo, 1971, p.81-82)” – versos que tocam no que há de espacial no curso do tempo, além de mexerem com a gravidade do planeta.
Ler e ter soneto
O primado da visão no espacial sobre os outros sentidos e o dado temporal não excluem porém a sensibilidade afinada com a sonoridade das palavras sonantes na acústica da vida. Praticou Cardozo a forma fixa com decassílabo, como em “Soneto Somente”, metapoema que redesenha a cor local no surpreendente mas ambientado espaço, como em “Antes que ao porto do seu céu arribe / A lua. Assim só tenho essa planície (Cardozo, 1971, p.196).” À sua maneira peculiar, Cardozo segue a não-receita do poema “Para fazer um soneto” de Carlos Pena Filho. A cor local típica é transcriada pela poética do soneto sobre a terra natal e o rio que corre pela própria aldeia.
Pintura e lírica
Há no verso 8 duas referências a pintores: Cranach e Baldung. Lucas Cranach, o Velho (1472-1553), teria sido dos primeiros a pintar mulheres nuas e voluptuosas. Hans Baldung Grien (1484/5-1545) produziu obra fascinada pelo erotismo. Noutro poema, um verso de Cardozo diz que “O sol nascente insinua (nua-se) glissando nos vales, nas árvores, nos rios”, para falar de nudez natural e nudez natureza viva, morta pela tradição da pintura e viva pela mesma tradição e pelo trem em movimento de noite e de dia no poema. O verso saiu de um poema de mais de vinte páginas intitulado “Visão do Último Trem Subindo ao Céu”.
Jogos e opostos
Primeira mulher e última entre tantas. Despir-se e vestir-se. Sagrado é o palco, profano é fora de cena. O nu do poema de Cardozo, em interlocução com sua voz, esmera-se, constrói-se, prumo e plano, para o cânone de Dionísio e Baco; não para o despir-vestir da censura que se acirraria no governo seguinte. Vestir a nudez indígena foi o “erro do português” oswaldiano que ressoa no Poema para essa criação de Nandi e Cardozo, que prenuncia a era visual moralista. O Poema faz a liturgia em diálogos propostos com Oswald, com Bandeira iluminado pelo simplesmente profano no poético da nudez do olhar do menino à beira do rio que vê um banho exibido em versos. Alumbramento no Poema para a Nudez seria o corpo nu a mover-se ainda no investimento dos versos de Cardozo entre futuras não notícias da imprensa calada e o teatro sem palco, logo apagado pela força. A nudez que se reveste de força no Poema eclode no tempo de uniformes velhos em tela agora.
Umas referências
BANDEIRA, Manuel. Alumbramento. Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro: José Olympio, 1981.
CARDOZO, Joaquim. Poesias completas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira / INL, 1971.
MERQUIOR, José Guilherme. Uma canção de Cardozo. Razão do poema. Rio de Janeiro: Civ. Brasileira, 1965.
PENA FILHO, Carlos. Para fazer um soneto. Livro geral. Rio de Janeiro: São José, 1958.