quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Entrevista dada à revista Setor X

Oswaldo Martins é poeta e professor de literatura. Já publicou quatro livros de poesia, desestudos (2000), minimalhas do alheio (2002), lucidez do oco (2004) e cosmologia do impreciso (2008). Possui dois inédito, Lapa e Língua Nua (com gravuras da escritora e artista plástica Elvira Vigna). Atualmente trabalha na recriação poética da obra e da personalidade de Arthur Bispo do Rosário.
Lamentavelmente, apesar do sério trabalho quem vem desenvolvendo com a linguagem poética, seu nome ganhou mais circulação na grande mídia depois que veio a público sua demissão da Escola Parque, na zona sul do Rio, em função do teor de alguns poemas de seu último livro.
SETOR X: O que, em sua opinião, faz com que a autoria de certas obras de ficção seja considerada criminosa ou, mesmo sem julgamento da causa, levem seus autores a sofrer sanções e represálias morais e materiais?
OSWALDO MARTINS: Antes de responder diretamente as questões, uma série de pressupostos deve ser levantada. Desde logo o pressuposto que concede à literatura o estatuto de ficção, de suspensão do processo comunicativo como finalidade, digamos, prática. A literatura e a ficção em geral, seja ela teatral ou fílmica, partem do princípio de que o que ali se usufrui é um arranjo intencionado e com um fim que destoa da linguagem que as pessoas usam no dia a dia. Costumo dizer que a literatura nunca diz o que diz, há sempre um segundo texto que permite perceber a intenção de desvelar algo que se escondia do senso comum.
A partir deste primeiro pressuposto, desdobram-se outros. Um primeiro desdobramento é a liberdade de construir o texto de tal maneira que a personagem utilizada pelo escritor – enquanto parte de um texto ficcional – não se transforma de maneira alguma em uma pessoa. É sempre parte do enredo que se conta, que se constrói e cujo centro não é de maneira alguma ela mesma, a personagem. Por esta razão lamento profundamente a atitude da escola posto que não houve a capacidade de distinguir o pressuposto literário da vida particular – o que nos leva ainda a lamentar e a verificar o quão simplória é a matéria comunicativa que domina nossos meios de comunicação de massa e o quanto ainda devemos à incapacidade de compreensão que o texto escrito exige de seus leitores. Acreditar que um texto seja capaz de interferir de maneira absoluta na condução dos negócios particulares é no mínimo não entender que a capacidade de interferência se dá mais além, na própria consideração do institucional e do particular.
SETOR X: Nesse sentido, você está falando de uma falta de familiaridade geral com a ficção, algo que estaria relacionado não exatamente à falta de leitores, mas de bons leitores?
OSWALDO MARTINS: Sim. A incapacidade de ler leva à triste facilidade de edulcorar obras que não tenham valor – senão o de imediata comunicação com o público, obras que visam não só uma ação, mas uma ação voltada para certezas que o público possui anteriormente à própria obra, como se fossem o espelho da realidade e não uma possível reflexão sobre a realidade multifacetada que se acerca de todos nós. Daí que tanto a obra de propaganda política quanto a obra de comiseração social sejam de certa forma criadas sob um realismo tosco e uma visão de literatura no mínimo falha.

SETOR X: Mas ainda assim, recepção equívoca de obras literárias, também não acabaria nivelando a literatura ao uso mais cotidiano da linguagem, de que se aproxima esse realismo tosco?
OSWALDO MARTINS: Sim, porque embora a literatura não use a linguagem utilitária, ela tem um poder de despertar as pessoas, abrir um espaço de percepção que a linguagem utilitária vedava. A partir do momento em que se abre essa percepção, necessariamente o choque se dá. As duas linguagens passam a ser confrontadas, a do troca--troca do cotidiano e a intencional. Além do mais isso está também relacionado à forma de se perceber o que é literatura. As pessoas têm a impressão de que a literatura é o retrato fidedigno da realidade, e ao criar o seu discurso, que se contrapõe ao discurso utilitário, abre-se um fosso entre o indivíduo e a ação pública. Se a ação pública é normativa, a literatura busca desnormatizar os comportamentos. E isso vai gerar conflitos. Esses conflitos podem ser lidos de uma forma ou de outra. Por exemplo, um dos meus poemas que teve problema foi o Lições Oswaldianas:

“as professoras dariam nuas as de história
por sua vez alunas e alunos também nus
assimilariam o que a história nos roubou
a celebração do corpo e do espírito assim
recolocados permitiriam a nossos jovens
a experiência dos ferozes tupinambá”

Um poema como esse obviamente não propõe que ninguém dê aula nu. Ao retomar a antropofagia de Oswald de Andrade, intenciona perguntar quem somos nós, qual é a nossa capacidade de pensar o mundo dentro de uma tradição que é muito maior que nós? Eu acho que é dando aula nu - metaforicamente, senão vão me entender errado de novo (risos).
Obviamente as pessoas não sabem ler – não falo de literatura – não sabem ler o mundo. Ler no poema uma proposta de nudez na sala de aula é um absurdo tão grande que a gente só pode designar as pessoas que leem assim como analfabetas. E o pior é que isso nasce dentro de uma escola.
SETOR X: Você acha que o conto, pelo qual o escritor Ferréz (Lamúrias de um paquito) foi processado, traria uma visão diferente de literatura?
OSWALDO MARTINS: Algumas questões podem se tornar mais claras. Uma literatura que se faz para tirar um sujeito da marginalidade, ou do tráfico de drogas geralmente é uma literatura cujo centro não é literário, mas o social. Talvez valesse mais o escritor engajar-se em alguma obra salvacionista e ali agisse, mesmo através do texto escrito, porque a consciência utilitária da obra necessariamente demandaria esconder certas percepções que são caras à própria literatura e à sua história ao longo dos séculos.
Flaubert, por exemplo, só consegue mudar as percepções de sua época e – por isso foi levado aos tribunais – por ter necessariamente se distanciado da vida corrente e através da linguagem desvelado o que essa vida corrente possuía de mais triste, de mais sombrio e de mais grotesco. Em outras palavras, ao tomar para si a vertente literária e não a sociológica, permitiu que se descortinassem as agruras de um mundo que se construía sob o pesadelo de um sonho. É Emma Bovary – que reúne sob suas características e sob a linguagem com que foi narrada – quem afirma a validade da ficção e não a ficção que afirma a validade do real. Assim como no romance de Flaubert, atitude corajosa e desviante, típica da ficção, é tomada por Dostoievski, quando escreve Crime e Castigo. A interrogação de Raskólnikov é válida no sentido de que ela abre um buraco na percepção moral do homem e faz com que alguns tabus sejam questionados. Mesmo que a culpa corroa a ação, a possibilidade fica aberta como uma ferida pulsante. Não é que se saia matando velhinhas por aí, mas a possibilidade de justiça acaba por corromper a atitude da velha usurária e justificando, no limite, o desejo de Raskólnikov. De novo, se um indivíduo, e não personagem, como Raskólnikov, surgisse de um fato corrente, estaria sujeito a uma série de estudos psicológicos, sociológicos, econômicos, o escambau... Como faz parte de um processo de ficção, as questões psicológicas, econômicas ou quaisquer outras, devem estar submetidas ao desejo de revelação e análise que o autor propõe, ao texto, em suma. Não cabe culpar a personagem, mas compreendê-la dentro dos ditames do próprio texto. Como tenho afirmado, a ficção não está sujeita ao julgamento factual, porque sempre o que diz está fora do mundo corrente e, mesmo porque lida com uma linguagem própria, o centro de seu significado se desloca para outro lugar, um lugar em que a linguagem não deseja nem usufrui da praticidade.

SETOR X: E na literatura brasileira, teríamos exemplos?

OSWALDO MARTINS: No romantismo brasileiro não se dá espaço a Sousândrade ou se toma a obra erótica de Bernardo Guimarães como uma obra menor, ou ainda quando ao traduzir Baudelaire nossos poetas transformam a força audaciosa da saliva que morde por uma pressão indizível que morde, conforme Antônio Cândido em magistral ensaio desenvolve, o que se vê é a adequação timorata e inexpressiva da língua corrente que permite que não se digam as coisas dentro da força que elas possuam.
O que se permitiu, ao longo das tradições literárias e não só as brasileiras, entender o que seja literatura, a deriva do mundo contemporâneo, o neoconservadorismo do politicamente correto, talvez sejam a chave para que hoje espoquem uma subliteratura, um teatro amadorístico e principalmente um público ávido que demanda justamente esse tipo de produção. Mesmo porque esse público ou é vítima das tradições a que aludíamos – entre nós, por exemplo, a poesia ainda é sobretudo romântica ou parnasiana – ou está preso a uma culpa social de que se quer livrar. Uma e outra deriva são portanto prejudiciais. Não se faz literatura com bons sentimentos – já nos alertava Mário de Andrade – nem se faz literatura sem que se queira romper com a tradição, no duplo sentido da tradição, a literária e a dos postulados sociais que uma dada sociedade afirma como corretos ou como moralmente aceitos.
SETOR X: Voltando à pergunta inicial: seria isso, então, essa vocação para a ruptura, que faria com que os autores acabem sendo punidos, processados ou estigmatizados na sociedade? E o que você acha que pode mudar esse quadro?
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OSWALDO MARTINS: O que, em suma, leva um escritor a sofrer as sanções sociais, econômicas e morais é, em primeiro plano, o retrato grotesco com o qual ele faz o grupo social se ver e, em segundo plano, o como ele o faz, isto é, a linguagem que o autor emprega para dessacralizar o lugar de onde fala, a própria escrita. O que leva à estigmatzação e à punição do escritor em parte está neste correr contra, nesta profanação a que submete a linguagem corrente e mesmo a que se estabilizou em uma certa época, como foi o caso do romantismo no Brasil, ou como é a consideração do amor desde o aparecimento da subjetividade como valor. O amor como um fim em si é invenção burguesa para justificar a herança e sua divisão. A ele submeteu-se a sexualidade e a hipocrisia desta sexualidade deve ser combatida. A sociedade privatizada, todos com os seus apartamentos, com seus computadores pessoais, suas questões individuais – o sexo entre quatro paredes onde tudo vale, segundo o lugar comum mais cínico – deve ser rechaçada, destruída. O lugar da arte, da poesia, é perceber como fazê-lo – descobrir o sexo livre dos entraves do quarto em uma linguagem também sem entraves. Nesta radicalidade, reside, creio eu, a contribuição maior da arte. Por exemplo, uma vez fui visitar o Museu da Língua Portuguesa, com um grupo de professores e alunos, em São Paulo. O museu é espantoso, bonito, bem montadas são as exposições. Emocionei-me ao ver as possibilidades múltiplas da língua. Tudo muito correto, mas não li nenhum palavrão. Tudo era por demais limpinho, perfeito, mesmo a exposição que privilegiava as variações linguístcas. Mas não tinha um palavrão. Por isso comecei a desconfiar do museu. Que museu da língua é este que tem pudor contra a própria língua? O mecanismo social rejeita a língua como sexo, ou só o aceita se fechado dentro do quarto/metáfora do cinismo que busca falar do sexo sem escancarar o prazer. A deriva da poesia hoje é destemperar sem medo o que vem cada vez mais sendo proibido pelo moralismo dos politicamente corretos. O poema erótico é apenas uma das soluções possíveis.

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