domingo, 21 de junho de 2009

Oceano e afogado

Alto da montanha de um dezembro,
Luzes na cidade baixa,
sonhos na lua que existia apenas em pensamento.
Começo do amor, bem-vindo amor,
Quanto há de mim na espera?
Quanto há nele da procura?
Leio Neruda, sem respostas.
(Versos do diário de uma moça)


Tentava entender porque havia nascido predestinada ao amor fugaz. Ela que havia se aberto como fenda oceânica a tanto amor, ela mesma oceano e afogado. Há algum tempo, é verdade, vinha procurando se redimir. Dizia não amar. Queria deixar de lado aquela fúria de mar em arrebentação e fazia questão na justeza das coisas do viver. Em mais, ela só violava a palavra, trabalhava para além da rotina. Debruçava-se num árduo labor de desmetrificar, quebrar a expressão da escrita. Desejava, contudo, apenas uma máquina que retirasse dela as idéias em pensamento bruto, nada crivado pelo que acreditasse ser passível à literatura.
Havia dias, e sim, como os havia, desde a infância. Acordava dando adeus às flores, aos pássaros e até mesmo às gotas de chuva em sua janela, tal a impressão de fim da vida. Nessas manhãs frias, sua mãe levantava-a da cama e carregava a menina em viagem à Medina. Os insetos no debater-se contra os vidros, as poças a arrebentar água nas ruas, a ventania nas mãos, os perdidos pedestres, as variadas tonalidades do verde na densa estrada, tudo era matéria de poesia. E ela se esquecia, então, de morrer. Em algumas vezes, um grande cachorro morto na estrada, crescendo como um homem afogado, os abandonados do oceano de pedras e mar.
Ela ouvira histórias de náufragos eternos, desvalidos das águas chamados pela força de Iemanjá. Ela mesma já ouvira um dia o chamamento da senhora rainha, lutara contra a correnteza. Chegara à profundeza, ao sem ar, ao quase afogamento. Entretanto, a mãe apenas a advertira. Que tomasse tento para a partida, soubesse compreender a demora. E nessa destemperança, conheceu-o. Naquele salvamento inesperado, a mão imprecisa entre a ânsia do morrer e do respirar. O corpo em caminho à superfície como a sensação do começo de amar. Na verdade, gostara muito do sobrenome dele: Baleia, vindo de capitães do mato, os traidores traídos. Sina de um nome de bruteza na coragem, da reentrância do sertão das Minas Gerais que adentra o mar. Quem saberia de mãos mineiras encontrando-a em meio à imensidão do oceano. No beirar da praia, quando o ar já se fazia bastante, reparou nos olhos intrigantes dele, os lábios de mulher. A pele de ébano, negro como a noite, iluminava o sol. Aquele nome a surpreendê-la no desacordar foi o primeiro desejo silencioso.
Seguiram-se outros desejos. Gostava de tudo nele, do cheiro e do gosto, sobremaneira presentes em seu corpo depois que dormiam juntos. E musicava o moço, vindo de pequenez de lugar, buscava o mundo ao som do acordeão. Tinha o brilho das estrelas ao sorrir. Os olhos dele salvaram-na o sonho do novamente amar. Instrumento afinado e desejo suave, trazia notas de felicidade a seus dias e a mulher, pouco a pouco, rejuvenescia. Voltava, então, ao estado de meninice, entre prendas e brinquedos de beleza. Vestia o sapato da mãe, colocava a saia da tia, passava sombra e batom. Quiçá pintasse as unhas de vermelho vivo contrastando na pele branca. Ele era de carinhos, preocupações e quase nenhuma conversa. O pouco falar dava lugar a uma sensatez bem-vinda, a diferença do jorro de palavras dela e do gesto em muito, especialmente, quando por dentro, ela se sentia arredia.
Durante as manhãs de feiras, as frutas se coloriam na banca como animais de cores diversas, as mais formas de espécies que se pudesse imaginar. O cheiro da vida era outro, em aromas e perfumes das flores. Até o sol era fragrante vário no decorrer das horas do dia. O odor do amanhecer era parte do amor dele em seu corpo. As gotas no banho matutino ardiam-lhe, como castigo ao fazerem-na perder dele o visgo. Contudo, sorria d’água, vivenciava a beleza cotidiana.
Almoçavam frente ao mar, comiam e tomavam vinho tinto. A sesta da tarde e, em delicada rotina, amavam-se entre as almofadas da sala onde liam após as refeições. Algumas vezes, ele melodicamente estudava, as notas de cada música a sobrevoar pelas janelas a fora. Ela, como platéia solitária nos recantos da casa, perdida entre sonhos e livros.
Às noites, quem não sabe as ações daqueles que amam? Há tal beleza no aventuranças dos amantes. Os dedos escorregadios, os olhos entreabertos, os colares de pernas e braços, as entrâncias e reentrâncias dos corpos que se movem. Como se Deus guardasse para a noite as coisas mais belas, entre estrelas, luas e a maravilha da escuridão. Amavam-se no silêncio, como quem ama a mudez da voz e a desesperação do corpo, como se pudesse despedaçar-se em gozo. Os corpos se entendem, mas as almas não. As almas são incomunicáveis, anjo pernambucano. Na escuridão da noite havia beleza e vindouro terror.
O sucedido tempo acolheu um novo amor na vida de Baleia. Iniciara suas apresentações pela estrada, músico sem rumo ou lugar à espera da platéia itinerante. Loira, olhos azuis, a mocidade toda na menina que ele escolhera. A tristeza do abandonar. O moço a propôs continuarem entre os dois amores, amava duas, ela haveria de entender. Nunca amara duas pessoas na vida? Sim, ela entendia. Amara dois, várias vezes. Administrara na juventude namorados que a visitavam nas madrugadas, os mais direitos saíam cedo, os malandros chegavam alta madrugada. Amara seu namorado da faculdade e a amiga com quem dividira casa, deixava-o dormindo em sua cama, indo visitá-la nas noites cunilíngues. Contudo, amar na divisão é delicioso apenas quando se é divisor, não quociente.
E ele não apenas as dividia, como as colocava em lados opostos. A maturidade não a livrou de um desesperado amor do engano. Ele a enganava, fazia-a tocar seu sexo entre sussurros de “toma, é seu, sou seu”. A noite vigiava seus sonhos de suor, a neblina de seus pensamentos enquanto se entregava. Durante meses arrenegou o egoísmo do querer. Dividiu as despesas e os lucros de um amor partido.
A vida e suas dilacerações, o barro de mágoas de nossas humilhações, o que sobrava da natureza de Adão, pior ainda, seres vindos das costelas. Queria tanto voltar à época em que os caramujos subiam o muro do seu quintal e brincava com suas antenas saintes e entrantes quando as tocava. Quem vai entender a vida, com suas intempestivas de bonança e tempestade, de vinda e partida, de amor e desamor, as antíteses cotidianas. Como quisera quebrá-las de um só lado, encontrar a felicidade plena sem dissabor, uma única margem, direita e certa. Entretanto, os desmastreios eram rotina em sua história, como se amar fosse algo que lhe fora proibido ainda criança, quando aquele maldito veio a bulinar. Roubara-lhe a infância e a confiança nos homens. Entregou-a ao pélago sem águas e sem ar. Ela solitária na profundeza das coisas de si mesma.
Não suportou o saber da outra, o não saber de si. Horas a fio no pensar das coisas. Em frente a sua morada, apenas ela e o oceano. Barulho insandecido das águas, como o dentro de seu coração. Tanto dissabor no amor, tanta ruindade. Salva-me Iemanjá, pensamento dela.
Ela marítima.
Começados, assim, os primeiros fios da manhã, tecidos nas colasantis palavras, o pélago pareceu-lhe convidativo, possibilidade de um reino submarino onde reinassem seres inimagináveis, com caldas de peixe e corpos de homem. Talvez, lá alcançasse o silêncio dos pensamentos. Foi-se com o mar, e com ele levou as confusas coisas suas. Não mais respirava, coração sem batimento, nem aceleração. O corpo, apenas um ser afogado. A alma, o próprio oceano.

2 comentários:

  1. Diadorim,
    belo e candente conto.
    Um abelezura!

    ResponderExcluir
  2. Você assim confisca som e silêncio, imagem e fúria, amor e medo, H.
    Continue.

    ResponderExcluir