sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Poema do dia

A MULHER DE LOT

A mulher de Lot, que o seguia, olhou
para trás e transformou-se numa estátua de sal.
Gênesis

E o homem justo seguiu o enviado de Deus,
alto e brilhante, pelas negras montanhas.
Mas a angústia falava bem alto à sua mulher:
"Ainda não é tarde demais; ainda dá tempo de olhar
as rubras torres da tua Sodoma natal,
a praça onde cantavas, o pátio onde fiavas,
as janelas vazias da casa elevada
onde destes filhos ao homem amado".
Ela olhou e - paralisada pela dor mortal -,
seus olhos nada mais puderam ver.
E converte-se o corpo em transparente sal
e os ágeis pés no chão enraizaram-se.
Quem há de chorar por essa mulher?
Não é insignificante demais para que a lamentem?
E, no entanto, meu coração nunca esquecerá
quem deu a própria vida por um único olhar.


Anna Akhmátova

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Poema do dia

museu de tudo

morreu o poeta
da língua das pedras
e das facas
da andaluzia aquosa
e dos canaviais eternos

morreu o descobridor
da poesia diamante
correnteza fina e quente
que nos leva à raiz de tudo

morreu joão
o cabral de melo
e neto

(Dora Ribeiro - Taquara rachada)

]

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Poema do dia

FORMAS DO NU 1.

A aranha passa a vida
tecendo cortinados
com o fio que fia
do seu cuspe privado.

Jamais para velar-se:
e por isso são ralos.
Para enredar os outros
é que usa enredados.

Ela sabe evitar
que a enrede seu trabalho,
mesmo se, dela mesma,
o trama autobiográfico.

E em muito menos tempo
que tomou em tramá-lo,
o véu que não a velou
aí deixa, abandonado.

2.

Somente na metade
é o aruá couraçado.
Na metade cimento,
na laje do telhado.

Porque apesar do teto
que o veste pelo alto,
o aruá existe nu,
nu de pele, esfolado.

Sua casa tem teto
mas não tem assoalho:
cai descalça no mangue,
chão também escoriado.

E o morador da casa
se mistura por baixo
com a lama já mucosa:
bicho e chão penetrados.

3.

Que animais prezam o nu
quanto o burro e o cavalo(que aliás em Pernambuco
Jamais andam calçados).

A sela e a cangalha
deixam-nos sufocados
como se respirassem
também pelos costados.

É vê-los se espojar
na escova má do pasto
quando lhes tiram o arreio
e os soltam no cercado:

se espojando, têm todos
os gestos de asfixiado:
espasmos, estertores
de asmático e afogado.

4.
O homem é o animal
mais vestido e calçado.
Primeiro, a pano e feltro
se isola do ar abraço.

Depois, a pedra e cal,
de paredes trajado,
se defende do abismo
horizontal do espaço.

Para evitar a terra
calça nos pés sapatos,
nos sapatos, tapetes,
e nos tapetes, soalhos.

Calça as ruas: e como
não pode todo o mato,
para andar nele estende
passadeiras de asfalto.

(João Cabral de Melo Neto – As formas do nu)

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Penha

penha
para o felipe rodrigues

se vê
em seu espelho

a cor devora
linguagens

a cidade,
um filme

sobre os lajedos
que despencam

os penhascos
intumescidos


(oswaldo martins)

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

AS VEREDAS

as veredas

toda saudade é uma espécie de enterro
todo esquecido, a melhor parte do erro

nenhuma porta reabre o teu passado
nenhum futuro terá você do meu lado

todo mistério um dia traduz-se em fórmula
tudo que é certo ainda se acaba em dízima

nenhum inferno sobrevive sem seu deus
nenhum embalo confessa parir mateus

nada que presta mesmo assim se dá ao lucro
tudo que fode tem sua hora de eunuco

Cesar Cardoso

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Henry Miller

Em uma de nossas penitenciárias federais, o sacerdote irlandês que me mostrou a capela apontou a janela de vitral feita por um dos presos – como se fosse uma grande piada. O que ele admirava eram as ilustrações de caixas de charuto para a Bíblia, executadas por presos que “sabiam pintar”, conforme dizia. Quando lhe disse abertamente que não concordava com sua posição, quando comecei a falar com reverência e entusiasmo sobre os esforços humildes, mas sinceros do homem que havia feito os vitrais, ele confessou que não sabia nada de arte. Só entendia que um homem sabia desenhar e o outro não. “É isso que faz de um homem um artista, saber desenhar braços e pernas, saber fazer um rosto humano, colocar um chapéu direitinho na cabeça de um indivíduo – é isso?”, perguntei. Ele coçou a cabeça perplexo. Evidentemente essa questão nunca lhe passara pela cabeça antes. “O que o sujeito está fazendo agora?”, indaguei a respeito do homem que fizera os vitrais. “Ele? Ah, nós estamos ensinando-o a copiar imagens de revistas.” “Como ele está se saindo?” “Ele não se interessa nem um pouco.”, disse o padre. “Parece não ter vontade de aprender.”

“Idiota!”, pensei comigo. Até na prisão tentam arruinar o artista. Em toda a penitenciária, a única coisa que me interessou foram aquelas janelas de vitral. Era a única manifestação do espírito humano livre da crueldade, ignorância e perversão. E eles haviam pegado esse espírito livre, um homem devoto, humilde, que amava seu trabalho, e tentavam transformá-lo em um burro educado. Progresso e iluminação! Transformar um bom presidiário em um potencial ganhador do prêmio Guggenheim. Pfu!

(Henry Miller – Pesadelo Refrigerado)

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Dois segmentos de Urânia

Um
para Oswaldo e Wal

A chuva de Aristóteles
O sangue de Harvey
Lavoisier, a História

Outro
Do pó ao Pó do Pirlimpimpim
Vós que aí estais
Ad verbum revertimini

domingo, 9 de novembro de 2008

Poema do dia

EVA

Quando a serpente estendeu a Eva uma maçã, falou-lhe
com uma voz, que ressoava
por entre as folhas como uma sinta de prata.
Mas acontece que sussurrou depois
algo mais em seu ouvido
com calma, muita calma, calmamente
algo que não consta da escritura.

Nem mesmo Deus ouviu direito este sussurro
mesmo escutando ele também.
E Eva não quis contar nem mesmo a
Adão.

Desde então a mulher esconde sob as pálpebras um mistério
e oscila seus cílios e insinua
que ela sabe alguma coisa,
que nós não sabemos,
que ninguém sabe,
nem mesmo o próprio Deus.

(Lucian Blaga)

Lucian Blaga é poeta romeno. Nascido em 1899 e morto em 1961. É considerado um dos poetas mais importantes e influentes da poesia romena do século XX. A tradução que se apresenta, feita diretamente do romeno é de Caetano Waldrigues Galindo.

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

Myres: Alexandria in 340 AD

By Constantine Cavafy, Translated from the Greek by Daniel Mendelsohn

When I learned the dreadful news, that Myres was dead,
I went to his house, for all that I am loath
to go inside the homes of Christians,
above all those in mourning, or on feast-days.

I stood there in a corridor. I didn't want
to go in any further, since I perceived
that the kinsmen of the dead man were looking at me
with evident dismay, and with displeasure.

They had him in a large room
a part of which I saw from where I stood
off to the side: all expensive carpets,
and services of silver and of gold.

I stood crying on one side of the corridor.
And I was thinking that our gatherings and outings
wouldn't be worth much, without Myres, from now on;
and was thinking that I'd no longer see him
at our splendid and outrageous all-night revels,
enjoying himself, and laughing, and declaiming lines
with that perfect feel he had for Greek rhythm;
and was thinking that I'd lost forever more
his beauty, that I'd lost forever more
the youth whom I once worshipped to distraction.

Some old women, near me, were speaking softly
about the last day that he was alive—
the name of Christ always on his lips,
a cross that he was holding in his hands.—
Later on there came into the room
four Christian priests, and they fervently
recited prayers and orisons to Jesus,
or to Mary (I don't know their religion very well).

We knew, of course, that Myres was a Christian.
From the very first we knew it, when
the year before last he joined our little band.
But he lived his life completely as we did.
Of all of us, the most devoted to his pleasures;
squandering lavish sums on his amusements.
Blithely untroubled by what people thought,
he'd throw himself eagerly into nighttime brawls in the street,
whenever our gang chanced upon a rival gang.
Not once did he speak about his religion.
Sure, there was the time that we told him
that we were taking him along with us to the Serapeum.
But he seemed to be unhappy with
this little joke of ours: I remember now.
Ah, and two other times now come to mind.
When we were making libations to Poseidon,
he pulled out of our circle, and turned his gaze elsewhere.
When one of us, in his enthusiasm,
said, May our company ever be under
the favor and protection of the great,
the all-beautiful Apollo—Myres murmured
(the others didn't hear) "except for me."

Their voices raised, the Christian priests
were praying for the soul of the young man.—
I stood observing with how much diligence,
and with what intense attention
to the protocols of their religion, they were preparing
everything for the Christian funeral rite.
And all of a sudden I was seized by a queer
impression. Vaguely, I had the feeling that
Myres was going far away from me;
had a feeling that he, a Christian, was being united
with his own, and that I was becoming
a stranger to him, very much a stranger; I sensed besides
a certain doubt coming over me: perhaps I had been fooled
by my passion, had always been a stranger to him.—
I flew out of their horrible house,
and quickly left before their Christianity
could get hold of, could alter, the memory of Myres.

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

poema para eugênio hirsch

8

para eugênio hirsch


I

a amélia
de eugênio
é eloqüente

(diferente da de ataulfo)

usa sapato de salto
e o xibiu
para o

alto

II

na cosmogonia
de eugênio

vitória abril
rebola
otelo amamenta
uma puta

e uma mulata rosa
travestida
de anjo

engole a piroca
de um santo
barroco

III

adelita se fue a la guerra

38 são as palavras
da ilustração

para saber

como se sai
se entra
se entra e sai

da chavasca
da gata

(oswaldo martins)

Este poema, em memória de Eugênio Hirsch, amigo e conviva em seus últimos anos de vida. Presenteou-nos, a mim e a wal, com algumas de suas criações geniais. Uma mulata, que é capa de meu segundo livro o minimalhas do alheio, um a colagem em que Grande Otelo é amamentado pela colorida ministra e alvejado por um anjo de saias e uma ilustração, creio que para o pif-paf, que ensina como sair e entrar de uma dona de diversas nacionalidades. Uma preciosidade!