Se o erótico emula as relações da
natureza; na sua porção escrita, literária, o erotismo se transveste de
palavras e não de atos, daí que tomar o texto erótico como formulação da excitação,
permissiva do ato em si, solitário ou não, só pode acontecer quando o texto se
torna a emulação dos desejos postos à flor da pele, ou seja, quando o texto
solapa sua qualidade literária e se propõe não intermediado pela reflexão, mas
pelos sentidos.
O texto intermediado pelos
sentidos acontece nas flores já sabidas que João Cabral, em o Ferrageiro de Carmona,
desconsidera como poesia, isto é, são textos que se escrevem com o mais tênue
dos sentidos cotidianos. O texto erótico que se fixa na qualidade da trepada e
a incentiva, que se cola nos hábitos das civilizações humanas se desautoriza
como texto, como reflexão sobre o estar no mundo. É apenas reflexo animal do
existir. Por exemplo, ler Aretino ou Sade querendo usufruir ou mesmo do que
eles despertam nos sentidos o incentivo ao tesão, é não ler Aretino ou Sade.
O chamado inventor da poesia pornográfica
está preso aos cânones da poesia de sua época e com estes cânones dialoga,
propondo uma tensão que o coloca como um poeta metafísico, de estranha metafísica,
ao mesmo tempo obediente aos preceitos religiosos e deles desrespeitoso, o
ângulo de leitura que se torna adequado está em entender esta tensão que se
coloca na fronteira entre um mundo já sido e um mundo que se inaugurava então.
Esclareça-se. O mundo religioso da época precedente, que teve em Dante seu
maior intérprete, se esfacela e as lutas religiosas entre os luteranos,
calvinistas e católicos abrem-se ao palco da representação do mundo. Se essas
forças conservadoras da religiosidade são em si conservadoras e apelam para que
se entenda o divino na medida de uma imitação baseada em preceitos morais,
Aretino toma uma terceira via – a poética.
A poética de Aretino, no sentido
de uma ampla reflexão sobre o fazer, levemente desloca as questões postas por
sua época e inaugura um pensar sobre a vida cuja simbologia se encontra na
vitalidade, no desrespeito e na moralidade invertida com que analisa a vida
social através do poema. No poema 1 do I Modi se lê:
Gente aqui há que fode e que é
fodida
De conas e caralhos há caudal
E pelo cu muita alma já
perdida.
Fode-se aqui com graça sem
igual
Alhures nunca assaz
reproduzida
Por toda jerarquia putanal.
Ressalto nos versos do poema o
último verso do primeiro terceto, que exprime de maneira cordata os preceitos
religiosos contra a sodomia, que reverbera em “alma perdida”, e o verso que
fecha o último terceto. A palavra jerarquia indica “ordem que existe de forma a
priorizar um membro, poderes, categorias, patentes e/ou dignidades de suas
organizações: a hierarquia eclesiástica” ao juntá-la a putanal cria-se um amálgama
que indica ainda a condenação das práticas conventuais. O tom irônico que se percebe
nestes versos terá um desfecho no mínimo inusitado, quando o poeta escreve:
Enfim loucura total
Que até da nojo essa iguaria
toda
E Deus perdoe a quem no cu não
fode.
Ao pedir perdão para aqueles que
se mantêm na regra ditada pela moral, a moralidade invertida se cumpre e a
condenação se cala. Não dá tesão, mas faz o leitor refletir. A mimesis ao
contrário do estatuto da imitação é produtora de sentido e leva o leitor à
reflexão e não ao cumprimento da moral; a mimesis trabalha sobre o tecido
ético, como no texto trágico.
A poética de Sade não é menos
reflexiva que a de Aretino. Ao aproximar o homem da natureza, como propõe
Octávio Paz no seu livro Um mais além erótico: Sade, o erótico vai se
afirmar como expressão da animalidade, apagando os ademanes do erótico, que
caracterizam as ações da espécie humana e nele, erótico, incentivando os atos
desviantes que compõem o sentido último da existência.
Não há em Sade nenhuma complacência
em relação ao humano, nenhum preceito que não deva ser desmitificado. A questão
que se põe, quando se lê o Marquês, está na dificuldade de situá-lo no longo
cabedal de cultura que se criou a partir de um cânone preciso. Entretanto, Sade
pertence a sua época, isto é, “Instalar a natureza no lugar central que ocupava
o Deus cristão não é uma ideia de Sade, mas de seu século. Porém sua concepção
não é a vigente em sua época. Seu libertino não é o bom selvagem e sim uma fera
pensante.” (Paz, 1999).
Esse deslocamento provocado por
seus textos assustaram e ainda assustam a cultura normativa e moralista. Toda vez
que um processo autoritário se instaura, ataca-se aquilo que da cultura como
norma se desvia. O governo do inominável pertence a esta moralidade cultural,
diga-se de passagem.
A cultura que leva o leitor à
reflexão cria seus desvios, deixando o que se punha como certeza sob forte
abalo. Percebe-se o que é, mas não se concebe que o que é seja possível, abre-se
uma brecha a partir da qual nem o que se afirmava nem o que se afirma encontram
um estatuto de vericabilidade. A verossimilhança está como se em posição fugidia
e o que semelha difere, produzindo sentidos que não estão ao alcance da mão,
mas que só é possível através de um desvelamento dos sentidos, que se velam
para de novo se desvelarem, numa dialética do indeterminável, numa dialética
cujo resultado nunca se sabe.
A reflexão que se faz acerca da
poesia de Aretino e da obra de Sade, teve como substrato teórico os livros de
Luiz Costa Lima, principalmente, A Trilogia do Controle (2007), Mímesis
e Modernidade (1980), Mímesis: desafio ao pensamento (2000) e Vida
e mímesis (1995). Além do livro de Octávio Paz, Um mais além erótico:
Sade (1999). A tradução dos versos de Aretino é de José Paulo Paes no livro
Sonetos Luxuriosos (1981).
(oswaldo martins)