sexta-feira, 6 de janeiro de 2017

Pilulinha 49

Machado, novo livro de Silviano Santiago, lançado pela Cia. Das Letras, no último dezembro, constrói, a partir do grande escritor brasileiro, uma obra em que a linguagem de apropriação do outro se torna ao mesmo tempo um duplo palimpsesto. A mimetização do estilo de Machado por Silviano é também a mimetização do estilo de Silviano por Machado, operado por uma narrativa que nos entrega – e ensina – como os romances de um e de outro, ou como os romances, devem ser lidos e escritos.

Primeiro palimpsesto: o Machado que se anuncia na intenção da narrativa é o Machado dos últimos anos de vida, carcomido pela doença e por seu tratamento; entretanto, mais que o fluir da narrativa que nos mostraria o velho bruxo em sua inteireza, repassando passo a passo seus últimos anos, a escolha, ao efetivamente percorrer estes anos, nos mostra outra deriva, espicaçando a curiosidade do leitor em várias outras direções. A técnica de despiste tão machadiana aqui se aplica como uma luva. Ao evocar a presença de diversas personalidades da época, Silviano faz-se bruxo e palimpsesta (deve-se ler aqui o vocábulo como verbo) na narrativa a sociedade da primeira República, a chamada Velha, e com ela constrói um painel desvantajoso, sob a capa do elogio, de nossa formação republicana.

Tal palimpsesto se abre em outra direção, dando vigor ao nosso segundo palimpsesto.

Segundo Palimpsesto: a República, chamada Velha, insisto, adquire colorações do presente. As escolhas dos textos de diversos autores, os anúncios em jornais da época, os documentos selecionados por Silviano dão conta de uma amplidão bem maior e nas entrelinhas do romance se inserem diversas estocadas que dão conta da paralisia de nossa vida política, sempre afeita aos mitos fundadores da grandiosidade da terra. Ao roubar de Mário de Alencar a herança paterna, joga como uma sombra, que se estende ao longo de todo o romance, a dúvida que ainda hoje permeia uma diversidade grande das obras literatura escritas por aqui, mistas de auto complacência e deslumbramento com os mitos fundadores.

O segundo palimpsesto se constrói aos poucos, vai juntado pedaços de discursos para explodir com força no penúltimo capítulo do livro ao expor a percepção machadiana, a partir da presença de Joaquim Nabuco. As derivações a que se prendia a narrativa machadiana se diluem e se reforçam em outra direção. A consistência da obra Machado se condensa, o espectro narrativo se adensa e faz com o leitor mergulhe em outra direção e perceba que o Machado ali presente é Silviano e o presente de sua época, esmiuçados com um piscar de olhos rápido e rasteiro como o de um capoeirista ou de uma vidente que nos prevê irônica e desconsoladamente o futuro reservado aos gêmeos de Esaú e Jacó.

No Machado de Silviano, as metáforas bíblicas cedem lugar ao trágico grego. Se aquela nos dava uma lição de moral – e bons costumes – esta nos dá a possibilidade trágica que formula uma ética. Os irmãos Pedro e Paulo no burlesco que estão envolvidos semelham a burla da própria república brasileira, cujos representantes são patéticos e moralistas.

O último capítulo do livro é uma pequena peça que enfeixa e dá ao romance a ousadia com que foi escrito. A análise do quadro (que se anuncia na primeira página do romance) vai compondo um painel que é ao mesmo tempo o louvor de Machado, e, ao contrário do que possa parecer, o elogio dos decaídos, dos doentes, dos desprovidos, dos desobedientes.

(oswaldo martins)





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