Oswaldo Martins. Poeta e professor de literatura. Autor dos livros desestudos, minimalhas do alheio, lucidez do oco, cosmologia do impreciso, língua nua com Elvira Vigna, lapa, manto, paixão e Antiodes, com Alexandre Faria. Editor da TextoTerritório
quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014
vizinhos
aprendemos a pedir emprestado
uma à outra
aquilo de que mais precisávamos
e a perdoar o que faltava
em nós
ela me deu
mel, açúcar e canela
eu dei a ela
óleo, sal e pimenta
alguns diziam que era
obra de deus
o que fazíamos,
nós chamávamos de
pão.
(Lúcia Leão)
quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014
Imitação de robert musil
no papel rosa presa
a mosca se esforça
inúteis
as asas tremem
o corpo espasmos
solta
diria – se fosse possível –
que a mosca gozava
ante o horror
(oswaldo martins)
Trevas
Quando não aguento mais o tédio,
Saio para o sol em disparada,
Asa esvoaçando pelo éter,
A virtude e o vício misturados.
Morro, eu morro, o sangue escorre a
cântaros
Na couraça do meu corpo.
Caio em mim – e então, de novo,
Só enxergo a guerra em teu olhar.
1907 – 1914
VELIMIR KHLÉBNIKOV
terça-feira, 25 de fevereiro de 2014
empédocles de agrigento
as árvores os homens as existências
que nas águas se criam
dos deuses de vida longa
a breve arte
do amor entre as dijuntivas
coisas
se deseja e une
umas às outras
superior em honrarias
(oswaldo martins)
Estação Piedade: a poesia como experiência do tardio
Estação Piedade: a poesia como experiência do tardio
(Celia Pedrosa)
Nesse contexto, a estreia tardia
de Elesbão deve ser com certeza considerada uma escolha deliberada, que funciona como sinal de um
positivo distanciamento da perigosa e recorrente associação da criação poética
a um entusiasmo juvenil tido como garantia de ousadia sentimental e/ou
experimental. A esse respeito, aliás, Mário de Andrade já denunciava, no ensaio
“Elegia de abril”, a tradição do “livrinho de versos inaugural” e suas sequelas
na vida intelectual brasileira, inclusive no modernismo, a ela contrapondo a
produtiva lentidão disciplinada, aprendida mais tarde, pela geração de jovens
da década de 40, com a formação universitária então ainda incipiente.
Extrapolando nosso caso
específico, também o clássico ensaio “Tradição e talento individual”,
de T.S. Eliot, enfatiza a
capacidade de convivência com a tradição como condição para que o escritor jovem
elabore lentamente sua singularidade a partir da experiência de conhecimento do
outro. Tais considerações repercutem hoje, de diferentes modos, na intensa revisão
dos valores idealistas modernos de originalidade e ruptura e no consequente
enfrentamento das tensões, contradições e aporias inerentes a toda relação de
contemporaneidade. Exemplo aqui em especial pertinente dessa revisão é o livro
O estilo tardio, em que Edward Said revê o caráter tradicionalmente negativo atribuído
a esse conceito, a partir daí apontando para diferentes formas de compreensão
da temporalidade na/da arte.
Perseguindo essa trilha, propomos
considerar a hipótese de que a poesia de Elesbão ganha em ser compreendida pela
associação dessa opção pelo tardio a uma estética do afeto tímido e/ou humilde.
É claro que desse modo ela pode ser de imediato aproximada da poesia de Manuel
Bandeira – cuja importância para a poesia a partir dos anos 70 não foi ainda
suficientemente avaliada. Mas ao mesmo tempo também pode ser por essa via
diferenciada pela forma como articula experiência de vida e de leitura desse e
de outros escritores, inscrevendo-se de modo singular no investimento contemporâneo
em uma poética do prosaico e do narrativo.
Deve-se ressaltar, no entanto,
que tal singularidade vai se evidenciando pelo contraste com formas menos
resolvidas dessa articulação apreendidas ao longo do livro. Este se apresenta
de início como sequência de poemas e séries de poemas não subdivididos ou
diferenciados por nenhum tipo de indicação cronológica ou temática, compondo
uma unidade na verdade bem problemática. Poisn essa ausência não impede que vá
se revelando pouco a pouco o entrelaçamento de três dominantes discursivas, às
vezes mais, às vezes menos distintas, tramadas sob o fundo também aparentemente
uniforme de coloquialidade ao mesmo tempo terna e irônica.
Podemos identificar então um
primeiro grupo de poemas, em que através da temática amorosa - que continuará
sempre predominante - Elesbão parece apenas exercitar procedimentos já canonizados
da tradição brasileira de poesia moderna, remetendo-nos ao poema-piada de
Oswald de Andrade, ao alumbramento melancólico-erótico de Manuel Bandeira. É o
caso, por exemplo, do primeiro poema da série “do corpo e da alma”, formulado
como um aforisma bandeiriano: “a alma ao contrário do corpo/não tem por onde se
entre”.
Já na leitura da série intitulada
dedicações, encontramos poemas que se realizam mesmo como declaração dessas e
de outras dívidas. Mas desse modo, e justo na medida em que enfatizam humildemente
sua incontornável posterioridade, é que eles parecem abrir espaço para o esboço
de uma voz mais diferenciada, em que o falar como o outro dá lugar a um jogo
entre falar sobre o outro e falar-se outro. E isso porque, por um lado, em cada
poema o uso objetivo do nome próprio em títulos e dedicatórias, se vincula à
construção sintética de uma identidade discursiva a ele univocamente associado.
No poema “noites”, dedicado “para clarice lispector”, lemos: há noites em que
deixo tudo arrumado /pratos copos talheres lavados/há noites em que por
perversão /a mim mesma / deixo tudo desarrumado/pratos copos talheres
engordurados/ e o cinzeiro cheio de sarro”. Já no poema “baudelairiana”,
redescobrimos: “diz a minha bela/ doce e graciosa/ querida e amada /precisamos
ter pobres –/precisa haver pobres/ pergunta-me então/quem há de varrer as ruas/
por onde passamos”.
Por outro lado, esses poemas
constituem uma cadeia de referências agora muitas e muito diversas daquelas
duas que identificamos no segmento anterior. Elas nomeiam e aproximam prosadores
e poetas, nacionais e estrangeiros, de diferentes tendências: Clarice Lispector
e Baudelaire, mas também Dalton Trevisan, Graciliano Ramos, Nelson Rodrigues,
Górki e Machado de Assis, Cesário Verde, Bertold Brecht, Gonçalo Tavares,
Oswaldo Martins e Gregório de Matos. Desse modo se desdobra uma encenação tanto
da subjetividade poética quanto da formação do poema como efeito de uma herança
de convívio com o heterogêneo, de sentido por isso, além de tardio, sempre
aberto, incompleto.
Efeitos semelhantes vão dar o tom
de poemas que, embora não se apresentem como tal, e componham uma série
intitulada estação piedade, também funcionam como dedicações. Estas se mostram
mais uma vez material para a aproximação singularmente desierarquizada de
referências, dessa vez a importantes e bem distintos cineastas – Buñuel, Fellini,
Polanski, Anselmo Duarte, Bergman... - e a cinemas mais ou menos modestos, do
Odeon na Cinelândia, e do Olinda, na Tijuca, aos Bruni, Alvorada, Ridan e
Mascote suburbanos, no Méier, na Piedade, na Abolição - assemelhados todos como
motivo de descobertas de prazer, tédio e dor. Assim, o poema I relembra : “cine
Estação Piedade: a poesia como experiência do tardio Odeon/Fellini/pipocas
saltam/ no saco de pipocas/diante de mamas tão fartas”; e o poema V
acrescenta: “cine alvorada/
Bergman/um velho a comer morangos/ entre silvas/ me olhando/sentado no cine
alvorada/uma mulher de maiô/ a mergulhar no lago copacabana”.
Aí, de novo se entretecem vida e
arte para mobilizar um sujeito poético que de leitor passa a espectador de
cinema. Em ambos os casos, sua voz parece surgir como efeito de uma experiência
de silêncio e deslumbramento humildes que paradoxalmente ativa a força afetiva
e estética que desloca limites temporais e espaciais com vistas a uma escrita
vivificante do presente. No sintagma “estação piedade”, não por acaso escolhido
para título do livro, concentram-se índices do potencial significativo desse
duplo deslocamento. Pois ele remete tanto ao nome de uma cadeia contemporânea
de cinemas cult, característica da zona sul da cidade do Rio de Janeiro, e de
sua elite intelectual, quanto a uma distante e suburbana parada de antigos
trens, num bairro de gente pobre, misturando estética e afetivamente
referências comumente antagonizadas. Essa mistura resulta bem instigante, na
medida em que convida a problematizar formas unívocas de identificação e
valorização do poeta, da poesia e de sua inscrição social – hoje tão em voga.
Assim, a série de poemas sobre a
memória ao mesmo tempo emotiva e culta do cinema se desdobra naqueles que
convocam cenas de brincadeiras populares antigas como os jogos de bola de gude
e amarelinha, ou a corrida atrás de doces de Cosme e Damião, ao lado de
perspectivas de janelas, cozinhas e jardins que agora contrapõem sua
sobrevivência anacrônica à atualidade urbana de grandes edificações e
aglomerados humanos – sem idealizações, no entanto. No poema “laços”, por
exemplo :“a torneira da pia da cozinha da minha casa/ lembra-me um laço de
fitas/ daqueles que as raparigas traziam presos aos cabelos/ lembranças de um
tempo em que te via passar/ com um cântaro/a caminho da fonte”; já em “mulher à
porta da casa”:“ a vizinha que mora em frente/ abriu a porta de casa/ estava de
azul/ viu-me à janela/ acenou-me/ olhou para um lado/ olhou para o outro lado/
entrou/fechou a porta”.
Nesse cenário o leitor/espectador
de cinema se identifica a uma subjetividade anônima, como pode ser a de
qualquer um, em qualquer lugar, afetado por uma experiência de fragilidade e de
incerteza – como aparece também nos poemas dedicados à mulher amada. A esta, o
poeta nomeia como namorada, amiga, rapariga - opção de novo anacrônica face ao
coloquial brasileiro contemporâneo, que representa ainda uma sobrevivência do
coloquial lusitano, atualizando assim as origens familiares e culturais do
poeta. Diz o poema “concordância”: “ a minha namorada não deve gostar de mim/
tem lá suas razões/ é doutora por cá e pós por lá/ poliglota fala inglês
francês e português/ não sabe cozinhar/ propus-lhe um trato/ eu cozinho e tu lavas
o prato/ não aceitou/ medo da louça lhe estragar as unhas/ definitivamente não
sei”; ou ainda o poema “caprichos”: “é muito mimada a minha amada/ está sempre
se queixando da falta de atenção/ amanhã de manhã vou lhe mandar flores/ amanhã
de tarde vou-lhe mandar flores/amanhã de noite vou-lhe mandar flores/ à noite
levo-lhe flores/ para que se lembre das flores o dia inteiro.
O movimento de atualização tardia
se concretiza também na forma predominantemente narrativa dos poemas. Esta
atesta o vínculo do poeta com tendência dominante da poesia contemporânea,
associada a uma aproximação da realidade vivida do poeta e de um leitor comum sobre
o qual pouco se pensa, ou se pensa, na maioria das vezes, a reboque de clichês.
No entanto, ao associá-la à opção pelo tardio, a poesia de Elesbão convida a
pensar que essa atualização narrativa pode ter sua força derivada justamente do
fato de encenar o inevitável descompasso entre o sujeito e sua própria
experiência.
Pensar sobre esse descompasso é
pensar o prosaico e o cotidiano, sem simplismo, em sua riqueza e dificuldade
cujo reconhecimento convida a repensar a experiência ética e estética do estar em
comum. Para concluir esta breve leitura, talvez se possa considerar exemplar
dessa força comunicativa desterritorializante, o uso da imagem da lavadeira que
o poeta, de modo emblemático, escolhe para abrir e encerrar o livro. Na epígrafe,
ela serve para recuperar de Graciliano Ramos a vontade de escrever “da mesma
maneira como as lavadeiras lá de alagoas fazem seu ofício”. No último poema, o
título de inflexão cabralina, metapoética, “lavar palavras”, introduz uma
associação em que o infinitivo de tom didático e imperativo é modalizado por um
subjuntivo condicionalizante, assim como o valor de clareza e limpeza do
trabalho poético é modalizado pela referência lírica a antigas e imprecisas
paisagens de aldeias e riachos. Assim, em sua simplicidade, a imagem da
lavadeira dribla imediatismos sentimentais ou realistas, fazendo da leitura um
gesto em que a concretude de imagens vistas e/ou lembradas, apresenta-se
simultaneamente próxima e distante, evidente e imprecisa, contemporânea e
tardia - como toda experiência de convívio. Leiamos então o poema: “pudesse
fazer com as palavras/ aquilo que faziam antigas lavadeiras/ em riachos antigos/
de antigas aldeias/ molhar as palavras/ ensaboar as palavras/ bater as palavras
contra a pedra/ e recolhendo-as/ das águas límpidas do rio/ deitá-las na
relva”.
Celia Pedrosa é professora do Programa de Pós-graduação em Estudos de Literatura
da UFF, onde coordena os grupos de pesquisa "Poesia e contemporaneidade"e
"Pensamento teórico-crítico sobre o contemporâneo". Publicou, entre
ouros, os livros Ensaios sobre poesia e contemporaneidade (EdUFF, 2011) e
Antonio Candido: a palavra empenhada (EdUSP/EdUFF, 1995).
O livro Estação piedqade, de Elesbão Ribeiro - poeta editado pela TextoTerritório - pode ser adquirido no seguinte endereço:
segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014
Paul Celan
DER GAST
Lange vor Abend
kehrt bei dir ein, der den Gruß
getauscht mit dem Dunkel.
Lange vor Tag
wacht er auf
und facht, eh er geht, einen Schlaf
an,
einen Schlaf, durchklungen von
Schritten:
du hörst ihn die Fernen durchmessen
und wirfst deine Seele
dorthin.
O HOSPEDEIRO
Dista já a noite
entra em tua casa, o que trocou
abraços com o sombrio.
Dista já o dia
ele desperta
e esperta, mesmo antes vai-se, em
um sono,
um sono, desviar de passos:
tu o ouves fender distâncias
e lanças tua alma ali.
Tradução: Piero Eyben
Três
TRÊS
1
O cantor de rua está doente
agachado na fachada, segurando o coração.
uma canção a menos na ruidosa noite.
2
Fora do muro
o envelhecido jardineiro planta suas tesouras
Um novo jovem
veio podar a cerca viva
3
A Morte chora porque a Morte é humana
passa o dia todo no cinema quando
morre uma criança.
Gregory Nunzio Corso (1930)
Poema do dia
O ROSTO DE UMA MULHER
Eu morava no rosto de uma mulher
que mora numa onda.
A maré cheia trouxe-a até à praia
cujo porto desapareceu nas suas
conchas .
Eu morava no rosto de uma mulher
que me assassinou, que no meu
sangue de navegador
até ao fim da loucura amorosa
quer ser um farol, que se apaga.
(Adônis)
domingo, 16 de fevereiro de 2014
Leucipo de Ábdera
cantam estrelas
entre o silêncio e a medição
que a distância finca
um princípio primeiro por natureza
como se amor se desse no espanto
do um que existe por outro não
existente
(oswaldo martins)
terça-feira, 11 de fevereiro de 2014
orgânico
quando faço pão
com as minhas mãos
ele nunca fica igual
um dia são as amêndoas
no outro as avelãs
a massa e o seu peso
quando olho para você
de lado
a luz pode quebrar
o ritmo da respiração
nas veias as variações
de azul e de vermelho
das formas que levamos
ao calor.
(Lúcia Leão)
domingo, 9 de fevereiro de 2014
Anna Świrszczyńska
Mátame
Mátame
No me beses, mi amor.
No me abraces, mi amor.
Si me amas
mátame, mi amor.
Anna Świrszczyńska
Yo no puedo
Te envidio.
En cualquier momento
puedes irte de mí.
Y yo no puedo
irme de mí.
Anna Świrszczyńska
ANNA AKHMÁTOVA
RÉQUIEM
Não, não foi sob um céu estrangeiro,
nem ao abrigo de asas estrangeiras –
eu estava bem no meio de meu povo,
lá onde o meu povo infelizmente estava.
(1961)
.
NO LUGAR DE UM PREFÁCIO
“Nos anos terríveis da Iéjovshtchina, passei dezessete meses
fazendo fila diante das prisões de Leningrado. Um dia, alguém me ‘reconheceu’.
Aí, uma mulher de lábios lívidos que, naturalmente, jamais ouvira falar meu
nome, saiu daquele torpor em que sempre ficávamos e, falando pertinho de meu
ouvido (ali todas nós só falávamos sussurrando), me perguntou:
– E isso, a senhora pode descrever?
E eu respondi:
– Posso.
Aí, uma coisa parecida com um sorriso surgiu naquilo que, um
dia, tinha sido o seu rosto.”
(Leningrado, 1º de abril de 1957)
.
DEDICATÓRIA
Diante dessa dor, as montanhas se inclinam
e o grande rio deixa de correr.
Mas os muros das prisões são poderosos
e, por trás deles, estão as “tocas dos condenados”
e a saudade mortal.
É para os outros que a brisa fresca sopra,
é para os outros que o pôr-do-sol se enternece –
mas nada sabemos disso: somos as que, por toda parte,
só ouvem o odioso ranger das chaves
e o passo pesado dos soldados.
Levantávamo-nos como para o culto da madrugada,
arrastávamo-nos por esta capital selvagem,
para nos encontrarmos lá, mais inertes do que os mortos,
o sol cada vez mais baixo, o Neva mais nevoento,
enquanto a esperança cantava bem ao longe…
O veredicto… e as lágrimas de súbito brotam.
E ei-la separada do mundo inteiro
como se de seu coração a vida se arrancasse,
como se com um soco a derrubassem.
E, no entanto, ela ainda anda… cambaleando… sozinha…
Onde estão, agora, as companheiras de infortúnio
desses meus dois anos de terror?
O que estarão vendo, agora, na neblina siberiana?
A elas eu mando a minha última saudação.
(Março de 1940)
.
PRÓLOGO
Houve um tempo em que só sorriam
os mortos, felizes em seu repouso.
E como um apêndice supérfluo, balançava
Leningrado, pendurada às suas prisões.
E quando, enlouquecidos pelo sofrimento,
os regimentos de condenados iam embora,
para eles as locomotivas cantavam
sua aguda canção de despedida.
As estrelas da morte pairavam sobre nós
e a Rússia inocente torcia-se de dor
sob as botas ensanguentadas
e os pneus das Marias Pretas.
.
I
Levaram-te embora ao amanhecer.
Atrás de ti, como quem acompanha um carro fúnebre, eu segui.
No quarto às escuras, as crianças soluçavam
e a vela gotejava diante do ícone.
Teus lábios estavam gelados como uma medalhinha.
Do suor mortal em tua fronte nunca me esquecerei.
Como as viúvas dos Striéltsi, eu também
irei gritar diante das torres do Kremlim.
(1935)
.
II
Lento flui o Don silencioso.
Amarela a lua entra em casa,
entra com seu boné enviesado,
a lua amarela, e depara com uma sombra.
Esta mulher está doente,
esta mulher está sozinha.
O marido morto, o filho preso.
Digam por mim uma oração.
.
III
Não, esta não sou eu, é uma outra qualquer que sofre.
Não posso suportar o que aconteceu,
deixem que uma negra mortalha o cubra
e que levem embora os lampiões de rua…
Anoitece…
(1940)
.
IV
Se te tivessem mostrado – a ti, a zombeteira,
a estimada de todos os amigos,
a alegre pecadora de Tsárskoie Seló –
o que a tua vida te reservava:
como, tricentésima da fila, com teu pacotinho na mão,
ficarias diante da Kriesty,
e tuas lágrimas escaldantes
derreteriam o gelo do Ano Novo…
Lá longe, o álamo no pátio da prisão balouça.
Não se ouve um só som – lá, quantas vidas
inocentes estão acabando…
.
V
Há dezessete meses choro,
chamando-te de volta para casa.
Já me atirei aos pés de teu carrasco.
És meu filho e meu terror.
As coisas se confundem para sempre
e não consigo mais distinguir, agora,
quem a fera, quem o homem,
e quanto terei de esperar até a tua execução.
Só o que me resta são flores empoeiradas
e o tilintar do turíbulo e pegadas
que levam de lugar nenhum a parte alguma.
E bem nos olhos me olha,
com a ameaça de uma morte próxima,
uma estrela enorme.
(1939)
.
VI
As semanas leves vão-se embora.
O que aconteceu eu não entendo.
Como a ti, meu filho, na prisão,
vieram contemplar as noites brancas,
e ainda te contemplam,
com seus ardentes olhos de falcão,
e da tua alta cruz
e de tua morte falam.
(1939)
.
VII
O VEREDICTO
E a pétrea palavra caiu
sobre o meu peito ainda vivo.
Pouco importa: estava pronta.
Dou um jeito de aguentar.
Hoje, tenho muito o que fazer:
devo matar a memória até o fim.
Minha alma vai ter de virar pedra.
Terei de reaprender a viver.
Senão… o ardente ruído do verão
é como uma festa debaixo da janela.
Há muito tempo eu esperava
por este dia brilhante, esta casa vazia.
(22 de junho de 1939, Casa Fontanka)
.
VIII
À MORTE
De qualquer jeito virás – então, por que não vens já?
Estou te esperando: tudo para mim ficou difícil.
Apaguei a luz, abri a porta
para ti, tão simples, tão maravilhosa.
Para isso, toma o aspecto que quiseres:
entra como um obus envenenado,
ou sorrateira qual hábil bandido,
ou como as emanações do tifo,
ou sob a forma daquela fábula que tu mesma inventaste
e que todos já conhecem até a náusea –
na qual torno a ver o topo do quepe azul e,
por trás dele, o zelador pálido de medo.
Para mim dá na mesma. O Ienissêi corre turbulento.
A Estrela Polar brilha no céu.
O brilho azul dos olhos que eu amo
é recoberto por esse terror.
(19 de agosto de 1939, Casa Fontanka)
.
IX
Já a loucura com as suas asas
envolveu-me toda a alma,
me encharcando em seu licor,
levando-me ao vale das sombras.
Ouvindo o meu delírio
como se fosse o de outra,
está certo, sei que devo
admitir que ela venceu.
Eu sei que não deixará
que eu leve nada comigo
(por mais que eu lhe peça,
por mais que eu lhe implore):
nem os olhos do meu filho
que a dor petrificou,
nem o dia do terror,
nem o dia da visita,
nem o frio de suas mãos,
nem o tremular dos álamos,
nem o som que vem de longe,
últimos sons de consolo.
(4 de maio de 1940, Casa Fontanka)
.
X
A CRUCIFICAÇÃO
Não chores por mim, Mãe,
no túmulo estou
.
1
O coro dos anjos glorificou esta hora terrível
e os céus partiram-se em abismos de fogo.
Ele perguntou ao Pai: “Por que me abandonaste?”.
Mas à Mãe disse: “Oh, não chores por mim…”
(1940, Casa Fontanka)
.
2
Madalena batia no peito e chorava.
O discípulo favorito convertera-se em pedra.
Mas para lá, onde a Mãe, em silêncio, se erguia,
ninguém ousava erguer os olhos e olhar.
(1943, Tashkent)
.
EPÍLOGO
1
Aprendi como os rostos se desfazem,
como o pavor dardeja sob as pálpebras,
como a dor sulca a tabuinha do rosto
com seus rugosos caracteres cuneiformes,
como os cachos negros ou cinzentos
de um dia para o outro se pranteiam,
como em lábios submissos o sorriso fenece
e, com um risinho seco, como se treme de medo.
E não é só por mim que rezo,
mas por todas as que estiveram lá comigo,
no frio selvagem, no tórrido mês de julho,
em frente à muralha rubra e cega.
.
2
Uma vez mais volta o Dia da Lembrança.
Vejo, ouço, sinto por vocês todas:
aquela que mal conseguiu chegar ao fim,
aquela que já não vive mais em sua terra,
aquela que, balançando a bonita cabeça,
disse: “Volto aqui como se fosse o meu lar”.
Gostaria de poder chamá-las, a todas, por seus nomes,
mas levaram a lista embora, e onde posso me informar?
Para elas teci uma ampla mortalha
com suas pobres palavras que consegui escutar.
Sempre e em toda parte hei de lembrar-me delas:
delas não me esquecerei, nem numa nova miséria.
E se tamparem a minha boca fatigada,
através da qual jorra um milhão de gritos,
que seja a vez de todas elas me lembrarem,
na véspera do meu Dia da Lembrança.
E se, neste país, um dia decidirem
à minha memória erguer um monumento,
eu concordarei com essa honraria,
desde que não me façam essa estátua
nem à beira do mar, onde nasci –
meus últimos laços com o mar já se romperam –,
nem no jardim do Tsar, junto ao tronco consagrado,
onde uma sombra inconsolável ainda procura por mim,
mas aqui, onde fiquei de pé trezentas horas
sem que os portões para mim se destrancassem;
porque, mesmo na morte abençoada, tenho medo
de esquecer o som surdo das Marias Pretas,
de esquecer como os odiosos portões estalavam
e como a velha gemia qual animal ferido.
Das pálpebras imóveis, das pálpebras de bronze,
deixem que corram lágrimas qual neve fundida,
deixem que as pombas da prisão arrulhem na distância
e que os barcos deslizem em silêncio sobre o Neva.
(Março de 1940)
Ossip Mandelstam
Vivemos sem sentir o país sob os pés,
Nem a dez passos ouvimos o que se diz,
e quando chegamos enfim à meia fala
O montanheiro do Kremlin lá vem à baila.
Dedos gordurosos como vérmina gorda,
as palavras certas como pesos de arroba.
Riem-se-lhe os bigodes de barata,
reluzem-lhe os canos da bota alta.
À volta a escumalha - guias de fino pescoço-
Nas vênias da semigente ele brinca com gozo.
Um assobia, o outro geme, aquele mia,
só ele trata por tu, escolhe companhia.
Como ferraduras, lei "trás de lei ele oferta,
em cheio na virilha, olho e sobrolho e testa.
Cada morte que faz - crime malino
e o peitaço tem amplo, ossetino.A insignia da poesia
INFERNO
(extraído de A DIVINA COMÉDIA)
Canto I
Nel mezzo del cammin di nostra vita
mi ritrovai per una selva oscura
ché la diritta via era smarrita.
Ahi quanto a dir qual era è cosa dura
esta selva selvaggia e aspra e forte
che nel pensier rinova la paura!
Tant'è amara che poco è più morte;
ma per trattar del ben ch'i' vi trovai,
dirò de l'altre cose ch'i' v'ho scorte.
Io non so ben ridir com'i' v'intrai,
tant'era pien di sonno a quel punto
che la verace via abbandonai.
Ma poi ch'i' fui al piè d'un colle giunto,
là dove terminava quella valle
che m'avea di paura il cor compunto,
guardai in alto, e vidi le sue spalle
vestite già de' raggi del pianeta
che mena dritto altrui per ogne calle.
Allor fu la paura un poco queta
che nel lago del cor m'era durata
la notte ch'i' passai con tanta pieta.
E come quei che con lena affannata
uscito fuor del pelago a la riva
si volge a l'acqua perigliosa e guata,
così l'animo mio, ch'ancor fuggiva,
si volse a retro a rimirar lo passo
che non lasciò già mai persona viva.
DANTE ALIGHIERI
INFERNO
(extraído de A DIVINA COMÉDIA)
Canto I
No meio do caminho desta vida
me vi perdido numa selva escura,
solitário, sem sol e sem saída
Ah, como armar no ar uma figura
dessa selva selvagem, dura, forte,
que, só de eu a pensar, me desfigura?
É quase tão amargo como a morte;
mas para expor o bem que eu encontrei,
outros dados darei da minha sorte.
Não me recordo ao certo como entrei,
tomado de uma sonolência estranha,
quando a vera vereda abandonei.
Sei que cheguei ao pé de uma montanha,
lá onde aquele vale se extinguia,
que me deixara em solidão tamanha,
e vi que o ombro do monte aparecia
vestido já dos raios do planeta
que a toda gente pela estrada guia
Então a angústia se calou, secreta,
lá no lago do peito onde imergira
a noite que tomou minha alma inquieta;
e como o náufrago, depois que aspira
o ar, abraçado à areia, redivivo,
vira-se ao mar e longamente mira,
o meu ânimo, ainda fugitivo,
voltou a contemplar aquele espaço
que nunca ultrapassou um homem vivo.
DANTE ALIGHIERI
Versão em português
por Augusto de Campos.
Nel mezzo del camim...
Cheguei. Chegaste. Vinhas fatigada
E triste, e triste e fatigado eu vinha.
Tinhas a alma de sonhos povoada,
E alma de sonhos povoada eu tinha...
E paramos de súbito na estrada
Da vida: longos anos, presa à minha
A tua mão, a vista deslumbrada
Tive da luz que teu olhar continha.
Hoje segues de novo... Na partida
Nem o pranto os teus olhos umedece,
Nem te comove a dor da despedida.
E eu, solitário, volto a face, e tremo,
Vendo o teu vulto que desaparece
Na extrema curva do caminho extremo.
Olavo Bilac
No Meio do Caminho
No meio do caminho tinha uma pedra
Tinha uma pedra no meio do caminho
Tinha uma pedra
No meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento
Na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
Tinha uma pedra
Tinha uma pedra no meio do caminho
No meio do caminho tinha uma pedra.
Carlos Drummond de Andrade
Jornada
para oswaldo martins
iam já cansados e tristes
pelos caminhos andados
(Elesbão Ribeiro)
quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014
Do língua nua
20
modelo
desta mão sopesando os peitos
desta mão divina
que adensa
diria
quanto mais a outra decai
ao longo das ancas
as ásperas delícias
do deslize
para que se cumpram
da arte
traço e tapeçaria
20
vê a paisagem – foi por ela que me despi
nudez a minha que lhe empresta, madrugada
o branco da tela antes do quadro antes da imagem
em movimento
vê paisagem de mil olhos a mim. antes de ti
o espaço que eu sou se entrega suspira ritmos
danças e sutilezas – como outrora helena
helena
que fiz requebrar sob meu peso
e se dissolveu em bruma na insubmissa
paisagem de meus dedos que anunciaram
a rósea flor das madrugadas
(oswaldo martins)
cantigas para ninar raparigas românticas tanto quanto eu
13
foi o príncipe
conhecer a princesa
tinham ambos a mesma idade
estavam os dois encalhados
ela entretanto aparentava ser
bem mais nova e era mulher bonita
o rei ao ver o filho a retornar só
não te casaste não gostaste
de tão bela princesa
faltam-lhe rugas meu pai
bastava uma que fosse
elesbão ribeiro
05/02/14
terça-feira, 4 de fevereiro de 2014
Haicai
A foto mostrava bem
que ela poderia mudar
e se tornar qualquer coisa.
Estávamos nos jardins japoneses,
ela usava uma saia vermelha,
a blusa amarela
e nenhum sapato
para combinar com a simplicidade.
O jeito como ela sorriu para o meu
celular,
que toca agora e me conta que ela se
foi,
deixou uma mensagem para os amigos,
levou o filho também.
Katmandu, talvez,
Tailândia, Vietnã.
Algo oriental nos olhos dela,
uma estação.
(Lúcia Leão)
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