quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

poema sobre fotos de josef szabo

josef szabo
para bárbara

os jovens com o cigarro de lado
tergiversam

me buleversam

as mulheres do sabonete araxá
quando vão à praia
nos sumários biquínis 2014

ou quando
reinventam a saída
frente a porta fechada

dos cara duras

(oswaldo martins)












vizinhos

aprendemos a pedir emprestado
uma à outra
aquilo de que mais precisávamos
e a perdoar o que faltava
em nós

ela me deu
mel, açúcar e canela 
eu dei a ela
óleo, sal e pimenta

alguns diziam que era
obra de deus
o que fazíamos,
nós chamávamos de
pão.


(Lúcia Leão)

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Imitação de robert musil

no papel rosa presa
a mosca se esforça

inúteis
as asas tremem

o corpo espasmos
solta

diria – se fosse possível –
que a mosca gozava

ante o horror


(oswaldo martins)

Trevas

Quando não aguento mais o tédio,
Saio para o sol em disparada,
Asa esvoaçando pelo éter,
A virtude e o vício misturados.
Morro, eu morro, o sangue escorre a cântaros
Na couraça do meu corpo.
Caio em mim – e então, de novo,
Só enxergo a guerra em teu olhar.

1907 – 1914



VELIMIR KHLÉBNIKOV

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

empédocles de agrigento

as árvores os homens as existências
que nas águas se criam
dos deuses de vida longa

a breve arte

do amor entre as dijuntivas
coisas

se deseja e une
umas às outras

superior em honrarias


(oswaldo martins)

Estação Piedade: a poesia como experiência do tardio

Estação Piedade: a poesia como experiência do tardio
(Celia Pedrosa) 



 A coletânea de poemas Estação Piedade é a primeira publicação de Elesbão Ribeiro, de 6anos. Isso lhe atribui desde logo um caráter tardio, em verdade bastante curioso. Pois a experiência de vida do autor, marcada pelo convívio afetivo e profissional constante com a literatura – como professor, colaborador de revistas, saraus e blogs, amigo de poetas e editores – com certeza lhe teria garantido há muito tempo acesso à publicação. Tal circunstância particular poderia ser ainda confirmada por uma característica da atividade literária contemporânea no Brasil: o desenvolvimento das técnicas de produção e reprodução gráfica vem permitindo seu barateamento e assim a consolidação de iniciativas que se relacionam de modo diversificado e mesmo imprevisível com demandas de mercado e do próprio campo letrado. Além de tudo, no espaço aberto por essas iniciativas avulta a produção de poesia e nela– face a inexistência de parâmetros estéticos hegemônicos - a convivência de poetas experientes e novatos, mais ou menos consagrados, de diferentes dicções.

Nesse contexto, a estreia tardia de Elesbão deve ser com certeza considerada uma escolha  deliberada, que funciona como sinal de um positivo distanciamento da perigosa e recorrente associação da criação poética a um entusiasmo juvenil tido como garantia de ousadia sentimental e/ou experimental. A esse respeito, aliás, Mário de Andrade já denunciava, no ensaio “Elegia de abril”, a tradição do “livrinho de versos inaugural” e suas sequelas na vida intelectual brasileira, inclusive no modernismo, a ela contrapondo a produtiva lentidão disciplinada, aprendida mais tarde, pela geração de jovens da década de 40, com a formação universitária então ainda incipiente.

Extrapolando nosso caso específico, também o clássico ensaio “Tradição e talento individual”,
de T.S. Eliot, enfatiza a capacidade de convivência com a tradição como condição para que o escritor jovem elabore lentamente sua singularidade a partir da experiência de conhecimento do outro. Tais considerações repercutem hoje, de diferentes modos, na intensa revisão dos valores idealistas modernos de originalidade e ruptura e no consequente enfrentamento das tensões, contradições e aporias inerentes a toda relação de contemporaneidade. Exemplo aqui em especial pertinente dessa revisão é o livro O estilo tardio, em que Edward Said revê o caráter tradicionalmente negativo atribuído a esse conceito, a partir daí apontando para diferentes formas de compreensão da temporalidade na/da arte.

Perseguindo essa trilha, propomos considerar a hipótese de que a poesia de Elesbão ganha em ser compreendida pela associação dessa opção pelo tardio a uma estética do afeto tímido e/ou humilde. É claro que desse modo ela pode ser de imediato aproximada da poesia de Manuel Bandeira – cuja importância para a poesia a partir dos anos 70 não foi ainda suficientemente avaliada. Mas ao mesmo tempo também pode ser por essa via diferenciada pela forma como articula experiência de vida e de leitura desse e de outros escritores, inscrevendo-se de modo singular no investimento contemporâneo em uma poética do prosaico e do narrativo.

Deve-se ressaltar, no entanto, que tal singularidade vai se evidenciando pelo contraste com formas menos resolvidas dessa articulação apreendidas ao longo do livro. Este se apresenta de início como sequência de poemas e séries de poemas não subdivididos ou diferenciados por nenhum tipo de indicação cronológica ou temática, compondo uma unidade na verdade bem problemática. Poisn essa ausência não impede que vá se revelando pouco a pouco o entrelaçamento de três dominantes discursivas, às vezes mais, às vezes menos distintas, tramadas sob o fundo também aparentemente uniforme de coloquialidade ao mesmo tempo terna e irônica.

Podemos identificar então um primeiro grupo de poemas, em que através da temática amorosa - que continuará sempre predominante - Elesbão parece apenas exercitar procedimentos já canonizados da tradição brasileira de poesia moderna, remetendo-nos ao poema-piada de Oswald de Andrade, ao alumbramento melancólico-erótico de Manuel Bandeira. É o caso, por exemplo, do primeiro poema da série “do corpo e da alma”, formulado como um aforisma bandeiriano: “a alma ao contrário do corpo/não tem por onde se entre”.

Já na leitura da série intitulada dedicações, encontramos poemas que se realizam mesmo como declaração dessas e de outras dívidas. Mas desse modo, e justo na medida em que enfatizam humildemente sua incontornável posterioridade, é que eles parecem abrir espaço para o esboço de uma voz mais diferenciada, em que o falar como o outro dá lugar a um jogo entre falar sobre o outro e falar-se outro. E isso porque, por um lado, em cada poema o uso objetivo do nome próprio em títulos e dedicatórias, se vincula à construção sintética de uma identidade discursiva a ele univocamente associado. No poema “noites”, dedicado “para clarice lispector”, lemos: há noites em que deixo tudo arrumado /pratos copos talheres lavados/há noites em que por perversão /a mim mesma / deixo tudo desarrumado/pratos copos talheres engordurados/ e o cinzeiro cheio de sarro”. Já no poema “baudelairiana”, redescobrimos: “diz a minha bela/ doce e graciosa/ querida e amada /precisamos ter pobres –/precisa haver pobres/ pergunta-me então/quem há de varrer as ruas/ por onde passamos”.

Por outro lado, esses poemas constituem uma cadeia de referências agora muitas e muito diversas daquelas duas que identificamos no segmento anterior. Elas nomeiam e aproximam prosadores e poetas, nacionais e estrangeiros, de diferentes tendências: Clarice Lispector e Baudelaire, mas também Dalton Trevisan, Graciliano Ramos, Nelson Rodrigues, Górki e Machado de Assis, Cesário Verde, Bertold Brecht, Gonçalo Tavares, Oswaldo Martins e Gregório de Matos. Desse modo se desdobra uma encenação tanto da subjetividade poética quanto da formação do poema como efeito de uma herança de convívio com o heterogêneo, de sentido por isso, além de tardio, sempre aberto, incompleto.

Efeitos semelhantes vão dar o tom de poemas que, embora não se apresentem como tal, e componham uma série intitulada estação piedade, também funcionam como dedicações. Estas se mostram mais uma vez material para a aproximação singularmente desierarquizada de referências, dessa vez a importantes e bem distintos cineastas – Buñuel, Fellini, Polanski, Anselmo Duarte, Bergman... - e a cinemas mais ou menos modestos, do Odeon na Cinelândia, e do Olinda, na Tijuca, aos Bruni, Alvorada, Ridan e Mascote suburbanos, no Méier, na Piedade, na Abolição - assemelhados todos como motivo de descobertas de prazer, tédio e dor. Assim, o poema I relembra : “cine Estação Piedade: a poesia como experiência do tardio Odeon/Fellini/pipocas saltam/ no saco de pipocas/diante de mamas tão fartas”; e o poema V
acrescenta: “cine alvorada/ Bergman/um velho a comer morangos/ entre silvas/ me olhando/sentado no cine alvorada/uma mulher de maiô/ a mergulhar no lago copacabana”.

Aí, de novo se entretecem vida e arte para mobilizar um sujeito poético que de leitor passa a espectador de cinema. Em ambos os casos, sua voz parece surgir como efeito de uma experiência de silêncio e deslumbramento humildes que paradoxalmente ativa a força afetiva e estética que desloca limites temporais e espaciais com vistas a uma escrita vivificante do presente. No sintagma “estação piedade”, não por acaso escolhido para título do livro, concentram-se índices do potencial significativo desse duplo deslocamento. Pois ele remete tanto ao nome de uma cadeia contemporânea de cinemas cult, característica da zona sul da cidade do Rio de Janeiro, e de sua elite intelectual, quanto a uma distante e suburbana parada de antigos trens, num bairro de gente pobre, misturando estética e afetivamente referências comumente antagonizadas. Essa mistura resulta bem instigante, na medida em que convida a problematizar formas unívocas de identificação e valorização do poeta, da poesia e de sua inscrição social – hoje tão em voga.

Assim, a série de poemas sobre a memória ao mesmo tempo emotiva e culta do cinema se desdobra naqueles que convocam cenas de brincadeiras populares antigas como os jogos de bola de gude e amarelinha, ou a corrida atrás de doces de Cosme e Damião, ao lado de perspectivas de janelas, cozinhas e jardins que agora contrapõem sua sobrevivência anacrônica à atualidade urbana de grandes edificações e aglomerados humanos – sem idealizações, no entanto. No poema “laços”, por exemplo :“a torneira da pia da cozinha da minha casa/ lembra-me um laço de fitas/ daqueles que as raparigas traziam presos aos cabelos/ lembranças de um tempo em que te via passar/ com um cântaro/a caminho da fonte”; já em “mulher à porta da casa”:“ a vizinha que mora em frente/ abriu a porta de casa/ estava de azul/ viu-me à janela/ acenou-me/ olhou para um lado/ olhou para o outro lado/ entrou/fechou a porta”.
Nesse cenário o leitor/espectador de cinema se identifica a uma subjetividade anônima, como pode ser a de qualquer um, em qualquer lugar, afetado por uma experiência de fragilidade e de incerteza – como aparece também nos poemas dedicados à mulher amada. A esta, o poeta nomeia como namorada, amiga, rapariga - opção de novo anacrônica face ao coloquial brasileiro contemporâneo, que representa ainda uma sobrevivência do coloquial lusitano, atualizando assim as origens familiares e culturais do poeta. Diz o poema “concordância”: “ a minha namorada não deve gostar de mim/ tem lá suas razões/ é doutora por cá e pós por lá/ poliglota fala inglês francês e português/ não sabe cozinhar/ propus-lhe um trato/ eu cozinho e tu lavas o prato/ não aceitou/ medo da louça lhe estragar as unhas/ definitivamente não sei”; ou ainda o poema “caprichos”: “é muito mimada a minha amada/ está sempre se queixando da falta de atenção/ amanhã de manhã vou lhe mandar flores/ amanhã de tarde vou-lhe mandar flores/amanhã de noite vou-lhe mandar flores/ à noite levo-lhe flores/ para que se lembre das flores o dia inteiro.

O movimento de atualização tardia se concretiza também na forma predominantemente narrativa dos poemas. Esta atesta o vínculo do poeta com tendência dominante da poesia contemporânea, associada a uma aproximação da realidade vivida do poeta e de um leitor comum sobre o qual pouco se pensa, ou se pensa, na maioria das vezes, a reboque de clichês. No entanto, ao associá-la à opção pelo tardio, a poesia de Elesbão convida a pensar que essa atualização narrativa pode ter sua força derivada justamente do fato de encenar o inevitável descompasso entre o sujeito e sua própria experiência.

Pensar sobre esse descompasso é pensar o prosaico e o cotidiano, sem simplismo, em sua riqueza e dificuldade cujo reconhecimento convida a repensar a experiência ética e estética do estar em comum. Para concluir esta breve leitura, talvez se possa considerar exemplar dessa força comunicativa desterritorializante, o uso da imagem da lavadeira que o poeta, de modo emblemático, escolhe para abrir e encerrar o livro. Na epígrafe, ela serve para recuperar de Graciliano Ramos a vontade de escrever “da mesma maneira como as lavadeiras lá de alagoas fazem seu ofício”. No último poema, o título de inflexão cabralina, metapoética, “lavar palavras”, introduz uma associação em que o infinitivo de tom didático e imperativo é modalizado por um subjuntivo condicionalizante, assim como o valor de clareza e limpeza do trabalho poético é modalizado pela referência lírica a antigas e imprecisas paisagens de aldeias e riachos. Assim, em sua simplicidade, a imagem da lavadeira dribla imediatismos sentimentais ou realistas, fazendo da leitura um gesto em que a concretude de imagens vistas e/ou lembradas, apresenta-se simultaneamente próxima e distante, evidente e imprecisa, contemporânea e tardia - como toda experiência de convívio. Leiamos então o poema: “pudesse fazer com as palavras/ aquilo que faziam antigas lavadeiras/ em riachos antigos/ de antigas aldeias/ molhar as palavras/ ensaboar as palavras/ bater as palavras contra a pedra/ e recolhendo-as/ das águas límpidas do rio/ deitá-las na relva”.

Celia Pedrosa é professora do Programa de Pós-graduação em Estudos de Literatura da UFF, onde coordena os grupos de pesquisa "Poesia e contemporaneidade"e "Pensamento teórico-crítico sobre o contemporâneo". Publicou, entre ouros, os livros Ensaios sobre poesia e contemporaneidade (EdUFF, 2011) e Antonio Candido: a palavra empenhada (EdUSP/EdUFF, 1995).

O livro Estação piedqade, de Elesbão Ribeiro - poeta editado pela TextoTerritório - pode ser adquirido no seguinte endereço: 

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Paul Celan

DER GAST

Lange vor Abend
kehrt bei dir ein, der den Gruß getauscht mit dem Dunkel.
Lange vor Tag
wacht er auf
und facht, eh er geht, einen Schlaf an,
einen Schlaf, durchklungen von Schritten:
du hörst ihn die Fernen durchmessen
und wirfst deine Seele dorthin.  


O HOSPEDEIRO

Dista já a noite
entra em tua casa, o que trocou abraços com o sombrio.
Dista já o dia
ele desperta
e esperta, mesmo antes vai-se, em um sono,
um sono, desviar de passos:
tu o ouves fender distâncias
e lanças tua alma ali.                            


Tradução: Piero Eyben

Três

TRÊS

1

O cantor de rua está doente

agachado na fachada, segurando o coração.


uma canção a menos na ruidosa noite.



2

Fora do muro

o envelhecido jardineiro planta suas tesouras

Um novo jovem

veio podar a cerca viva



3

A Morte chora porque a Morte é humana

passa o dia todo no cinema quando morre uma criança.



Gregory Nunzio Corso (1930)

Poema do dia

O ROSTO DE UMA MULHER

Eu morava no rosto de uma mulher
que mora numa onda.
A maré cheia trouxe-a até à praia
cujo porto desapareceu nas suas conchas .
Eu morava no rosto de uma mulher
que me assassinou, que no meu sangue de navegador
até ao fim da loucura amorosa
quer ser um farol, que se apaga.


(Adônis)

domingo, 16 de fevereiro de 2014

Leucipo de Ábdera

cantam estrelas
entre o silêncio e a medição
que a distância finca

um princípio primeiro por natureza
como se amor se desse no espanto
do um que existe por outro não

existente 


(oswaldo martins)

Rogério Batalha

o corpo
todo
solto
o resto
decoro.

(Cidade fundida)

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

orgânico

quando faço pão
com as minhas mãos
ele nunca fica igual
um dia são as amêndoas
no outro as avelãs

a massa e o seu peso

quando olho para você
de lado
a luz pode quebrar
o ritmo da respiração
nas veias as variações

de azul e de vermelho
das formas que levamos
ao calor.


(Lúcia Leão)

domingo, 9 de fevereiro de 2014

Anna Świrszczyńska

Mátame

Mátame
No me beses, mi amor.
No me abraces, mi amor.
Si me amas
mátame, mi amor.

 Anna Świrszczyńska

Yo no puedo

Te envidio.
En cualquier momento
puedes irte de mí.

Y yo no puedo
irme de mí.


Anna Świrszczyńska

ANNA AKHMÁTOVA

RÉQUIEM

Não, não foi sob um céu estrangeiro,
nem ao abrigo de asas estrangeiras –
eu estava bem no meio de meu povo,
lá onde o meu povo infelizmente estava.

(1961)
.
NO LUGAR DE UM PREFÁCIO

“Nos anos terríveis da Iéjovshtchina, passei dezessete meses fazendo fila diante das prisões de Leningrado. Um dia, alguém me ‘reconheceu’. Aí, uma mulher de lábios lívidos que, naturalmente, jamais ouvira falar meu nome, saiu daquele torpor em que sempre ficávamos e, falando pertinho de meu ouvido (ali todas nós só falávamos sussurrando), me perguntou:

– E isso, a senhora pode descrever?

E eu respondi:

– Posso.

Aí, uma coisa parecida com um sorriso surgiu naquilo que, um dia, tinha sido o seu rosto.”

(Leningrado, 1º de abril de 1957)
.
DEDICATÓRIA

Diante dessa dor, as montanhas se inclinam
e o grande rio deixa de correr.
Mas os muros das prisões são poderosos
e, por trás deles, estão as “tocas dos condenados”
e a saudade mortal.
É para os outros que a brisa fresca sopra,
é para os outros que o pôr-do-sol se enternece –
mas nada sabemos disso: somos as que, por toda parte,
só ouvem o odioso ranger das chaves
e o passo pesado dos soldados.
Levantávamo-nos como para o culto da madrugada,
arrastávamo-nos por esta capital selvagem,
para nos encontrarmos lá, mais inertes do que os mortos,
o sol cada vez mais baixo, o Neva mais nevoento,
enquanto a esperança cantava bem ao longe…
O veredicto… e as lágrimas de súbito brotam.
E ei-la separada do mundo inteiro
como se de seu coração a vida se arrancasse,
como se com um soco a derrubassem.
E, no entanto, ela ainda anda… cambaleando… sozinha…
Onde estão, agora, as companheiras de infortúnio
desses meus dois anos de terror?
O que estarão vendo, agora, na neblina siberiana?
A elas eu mando a minha última saudação.
(Março de 1940)
.
PRÓLOGO

Houve um tempo em que só sorriam
os mortos, felizes em seu repouso.
E como um apêndice supérfluo, balançava
Leningrado, pendurada às suas prisões.
E quando, enlouquecidos pelo sofrimento,
os regimentos de condenados iam embora,
para eles as locomotivas cantavam
sua aguda canção de despedida.
As estrelas da morte pairavam sobre nós
e a Rússia inocente torcia-se de dor
sob as botas ensanguentadas
e os pneus das Marias Pretas.
.
I
Levaram-te embora ao amanhecer.
Atrás de ti, como quem acompanha um carro fúnebre, eu segui.
No quarto às escuras, as crianças soluçavam
e a vela gotejava diante do ícone.
Teus lábios estavam gelados como uma medalhinha.
Do suor mortal em tua fronte nunca me esquecerei.
Como as viúvas dos Striéltsi, eu também
irei gritar diante das torres do Kremlim.
(1935)
.
II

Lento flui o Don silencioso.
Amarela a lua entra em casa,

entra com seu boné enviesado,
a lua amarela, e depara com uma sombra.

Esta mulher está doente,
esta mulher está sozinha.

O marido morto, o filho preso.
Digam por mim uma oração.
.
III

Não, esta não sou eu, é uma outra qualquer que sofre.
Não posso suportar o que aconteceu,
deixem que uma negra mortalha o cubra
e que levem embora os lampiões de rua…
Anoitece…
(1940)
.
IV

Se te tivessem mostrado – a ti, a zombeteira,
a estimada de todos os amigos,
a alegre pecadora de Tsárskoie Seló –
o que a tua vida te reservava:
como, tricentésima da fila, com teu pacotinho na mão,
ficarias diante da Kriesty,
e tuas lágrimas escaldantes
derreteriam o gelo do Ano Novo…
Lá longe, o álamo no pátio da prisão balouça.
Não se ouve um só som – lá, quantas vidas
inocentes estão acabando…
.
V

Há dezessete meses choro,
chamando-te de volta para casa.
Já me atirei aos pés de teu carrasco.
És meu filho e meu terror.
As coisas se confundem para sempre
e não consigo mais distinguir, agora,
quem a fera, quem o homem,
e quanto terei de esperar até a tua execução.
Só o que me resta são flores empoeiradas
e o tilintar do turíbulo e pegadas
que levam de lugar nenhum a parte alguma.
E bem nos olhos me olha,
com a ameaça de uma morte próxima,
uma estrela enorme.
(1939)
.
VI

As semanas leves vão-se embora.
O que aconteceu eu não entendo.
Como a ti, meu filho, na prisão,
vieram contemplar as noites brancas,
e ainda te contemplam,
com seus ardentes olhos de falcão,
e da tua alta cruz
e de tua morte falam.

(1939)
.
VII

O VEREDICTO

E a pétrea palavra caiu
sobre o meu peito ainda vivo.
Pouco importa: estava pronta.
Dou um jeito de aguentar.

Hoje, tenho muito o que fazer:
devo matar a memória até o fim.
Minha alma vai ter de virar pedra.
Terei de reaprender a viver.

Senão… o ardente ruído do verão
é como uma festa debaixo da janela.
Há muito tempo eu esperava
por este dia brilhante, esta casa vazia.

(22 de junho de 1939, Casa Fontanka)
.
VIII

À MORTE

De qualquer jeito virás – então, por que não vens já?
Estou te esperando: tudo para mim ficou difícil.
Apaguei a luz, abri a porta
para ti, tão simples, tão maravilhosa.
Para isso, toma o aspecto que quiseres:
entra como um obus envenenado,
ou sorrateira qual hábil bandido,
ou como as emanações do tifo,
ou sob a forma daquela fábula que tu mesma inventaste
e que todos já conhecem até a náusea –
na qual torno a ver o topo do quepe azul e,
por trás dele, o zelador pálido de medo.
Para mim dá na mesma. O Ienissêi corre turbulento.
A Estrela Polar brilha no céu.
O brilho azul dos olhos que eu amo
é recoberto por esse terror.

(19 de agosto de 1939, Casa Fontanka)
.
IX

Já a loucura com as suas asas
envolveu-me toda a alma,
me encharcando em seu licor,
levando-me ao vale das sombras.

Ouvindo o meu delírio
como se fosse o de outra,
está certo, sei que devo
admitir que ela venceu.

Eu sei que não deixará
que eu leve nada comigo
(por mais que eu lhe peça,
por mais que eu lhe implore):

nem os olhos do meu filho
que a dor petrificou,
nem o dia do terror,
nem o dia da visita,

nem o frio de suas mãos,
nem o tremular dos álamos,
nem o som que vem de longe,
últimos sons de consolo.

(4 de maio de 1940, Casa Fontanka)
.
X

A CRUCIFICAÇÃO


Não chores por mim, Mãe,
no túmulo estou
.
1

O coro dos anjos glorificou esta hora terrível
e os céus partiram-se em abismos de fogo.
Ele perguntou ao Pai: “Por que me abandonaste?”.
Mas à Mãe disse: “Oh, não chores por mim…”

(1940, Casa Fontanka)
.
2

Madalena batia no peito e chorava.
O discípulo favorito convertera-se em pedra.
Mas para lá, onde a Mãe, em silêncio, se erguia,
ninguém ousava erguer os olhos e olhar.

(1943, Tashkent)
.
EPÍLOGO

1

Aprendi como os rostos se desfazem,
como o pavor dardeja sob as pálpebras,
como a dor sulca a tabuinha do rosto
com seus rugosos caracteres cuneiformes,
como os cachos negros ou cinzentos
de um dia para o outro se pranteiam,
como em lábios submissos o sorriso fenece
e, com um risinho seco, como se treme de medo.
E não é só por mim que rezo,
mas por todas as que estiveram lá comigo,
no frio selvagem, no tórrido mês de julho,
em frente à muralha rubra e cega.
.
2

Uma vez mais volta o Dia da Lembrança.
Vejo, ouço, sinto por vocês todas:

aquela que mal conseguiu chegar ao fim,
aquela que já não vive mais em sua terra,

aquela que, balançando a bonita cabeça,
disse: “Volto aqui como se fosse o meu lar”.

Gostaria de poder chamá-las, a todas, por seus nomes,
mas levaram a lista embora, e onde posso me informar?

Para elas teci uma ampla mortalha
com suas pobres palavras que consegui escutar.

Sempre e em toda parte hei de lembrar-me delas:
delas não me esquecerei, nem numa nova miséria.

E se tamparem a minha boca fatigada,
através da qual jorra um milhão de gritos,

que seja a vez de todas elas me lembrarem,
na véspera do meu Dia da Lembrança.

E se, neste país, um dia decidirem
à minha memória erguer um monumento,

eu concordarei com essa honraria,
desde que não me façam essa estátua

nem à beira do mar, onde nasci –
meus últimos laços com o mar já se romperam –,

nem no jardim do Tsar, junto ao tronco consagrado,
onde uma sombra inconsolável ainda procura por mim,

mas aqui, onde fiquei de pé trezentas horas
sem que os portões para mim se destrancassem;

porque, mesmo na morte abençoada, tenho medo
de esquecer o som surdo das Marias Pretas,

de esquecer como os odiosos portões estalavam
e como a velha gemia qual animal ferido.

Das pálpebras imóveis, das pálpebras de bronze,
deixem que corram lágrimas qual neve fundida,

deixem que as pombas da prisão arrulhem na distância
e que os barcos deslizem em silêncio sobre o Neva.


(Março de 1940)

Ossip Mandelstam

Vivemos sem sentir o país sob os pés,
Nem a dez passos ouvimos o que se diz,
e quando chegamos enfim à meia fala
O montanheiro do Kremlin lá vem à baila.
Dedos gordurosos como vérmina gorda,
as palavras certas como pesos de arroba.
Riem-se-lhe os bigodes de barata,
reluzem-lhe os canos da bota alta.

À volta a escumalha - guias de fino pescoço-
Nas vênias da semigente ele brinca com gozo.
Um assobia, o outro geme, aquele mia,
só ele trata por tu, escolhe companhia.
Como ferraduras, lei "trás de lei ele oferta,
em cheio na virilha, olho e sobrolho e testa.
Cada morte que faz - crime malino
e o peitaço tem amplo, ossetino.

A insignia da poesia

INFERNO

(extraído de A DIVINA COMÉDIA)

Canto I

Nel mezzo del cammin di nostra vita
mi ritrovai per una selva oscura
ché la diritta via era smarrita.

Ahi quanto a dir qual era è cosa dura
esta selva selvaggia e aspra e forte
che nel pensier rinova la paura!

Tant'è amara che poco è più morte;
ma per trattar del ben ch'i' vi trovai,
dirò de l'altre cose ch'i' v'ho scorte.

Io non so ben ridir com'i' v'intrai,
tant'era pien di sonno a quel punto
che la verace via abbandonai.

Ma poi ch'i' fui al piè d'un colle giunto,
là dove terminava quella valle
che m'avea di paura il cor compunto,

guardai in alto, e vidi le sue spalle
vestite già de' raggi del pianeta
che mena dritto altrui per ogne calle.

Allor fu la paura un poco queta
che nel lago del cor m'era durata
la notte ch'i' passai con tanta pieta.

E come quei che con lena affannata
uscito fuor del pelago a la riva
si volge a l'acqua perigliosa e guata,

così l'animo mio, ch'ancor fuggiva,
si volse a retro a rimirar lo passo
che non lasciò già mai persona viva.

DANTE ALIGHIERI


INFERNO

(extraído de A DIVINA COMÉDIA)

Canto I

No meio do caminho desta vida
me vi perdido numa selva escura,
solitário, sem sol e sem saída

Ah, como armar no ar uma figura
dessa selva selvagem, dura, forte,
que, só de eu a pensar, me desfigura?

É quase tão amargo como a morte;
mas para expor o bem que eu encontrei,
outros dados darei da minha sorte.

Não me recordo ao certo como entrei,
tomado de uma sonolência estranha,
quando a vera vereda abandonei.

Sei que cheguei ao pé de uma montanha,
lá onde aquele vale se extinguia,
que me deixara em solidão tamanha,

e vi que o ombro do monte aparecia
vestido já dos raios do planeta
que a toda gente pela estrada guia

Então a angústia se calou, secreta,
lá no lago do peito onde imergira
a noite que tomou minha alma inquieta;

e como o náufrago, depois que aspira
o ar, abraçado à areia, redivivo,
vira-se ao mar e longamente mira,

o meu ânimo, ainda fugitivo,
voltou a contemplar aquele espaço
que nunca ultrapassou um homem vivo.

DANTE ALIGHIERI

Versão em português por Augusto de Campos.


Nel mezzo del camim...

Cheguei. Chegaste. Vinhas fatigada
E triste, e triste e fatigado eu vinha.
Tinhas a alma de sonhos povoada,
E alma de sonhos povoada eu tinha...

E paramos de súbito na estrada
Da vida: longos anos, presa à minha
A tua mão, a vista deslumbrada
Tive da luz que teu olhar continha.

Hoje segues de novo... Na partida
Nem o pranto os teus olhos umedece,
Nem te comove a dor da despedida.

E eu, solitário, volto a face, e tremo,
Vendo o teu vulto que desaparece
Na extrema curva do caminho extremo.

Olavo Bilac


No Meio do Caminho

No meio do caminho tinha uma pedra
Tinha uma pedra no meio do caminho
Tinha uma pedra
No meio do caminho tinha uma pedra.

Nunca me esquecerei desse acontecimento
Na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
Tinha uma pedra
Tinha uma pedra no meio do caminho
No meio do caminho tinha uma pedra.

Carlos Drummond de Andrade

Jornada
para oswaldo martins

iam já cansados e tristes
pelos caminhos andados

(Elesbão Ribeiro)


quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Do língua nua

20
modelo

desta mão sopesando os peitos
desta mão divina
que adensa

diria

quanto mais a outra decai
ao longo das ancas

as ásperas delícias
do deslize

para que se cumpram
da arte


traço e tapeçaria

20

vê a paisagem – foi por ela que me despi
nudez a minha que lhe empresta, madrugada
o branco da tela antes do quadro antes da imagem

em movimento

vê paisagem de mil olhos a mim. antes de ti
o espaço que eu sou se entrega suspira ritmos
danças e sutilezas – como outrora helena

helena

que fiz requebrar sob meu peso
e se dissolveu em bruma na insubmissa
paisagem de meus dedos que anunciaram

a rósea flor das madrugadas

(oswaldo martins)

cantigas para ninar raparigas românticas tanto quanto eu

13


foi o príncipe
conhecer a princesa

tinham ambos a mesma idade
estavam os dois encalhados
ela entretanto aparentava ser
bem mais nova e era mulher bonita


o rei ao ver o filho a retornar só
não te casaste não gostaste
de tão bela princesa

faltam-lhe rugas meu pai
bastava uma que fosse

elesbão ribeiro

05/02/14

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Haicai

A foto mostrava bem
que ela poderia mudar
e se tornar qualquer coisa.

Estávamos nos jardins japoneses,
ela usava uma saia vermelha,
a blusa amarela
e nenhum sapato
para combinar com a simplicidade.

O jeito como ela sorriu para o meu celular,
que toca agora e me conta que ela se foi,
deixou uma mensagem para os amigos,
levou o filho também.

Katmandu, talvez,
Tailândia, Vietnã.
Algo oriental nos olhos dela,
uma estação.


(Lúcia Leão)