domingo, 9 de janeiro de 2011

Bibliotecas

É curioso verificar as bibliotecas das pessoas que tiveram alguma influência na vida cultural dos países. As bibliotecas pessoais permitem que se possa vislumbrar a formação de seus donos e – porque não são passíveis de influência dos jogos sociais e políticos – permitem ainda que se verifiquem as fragilidades e os gostos que contribuíram para a constituição das opiniões e visões destes indivíduos. Notar a fragilidade de certos figurões sociais, de certos mitos criados não se sabe onde ou porque é particularmente saboroso. Meu gosto particular para o deboche das figuras ilustres casa-se formidavelmente a este evento que é a visita à fragilidade de uma biblioteca.
Há pouco tempo visitei a de Cora Coralina e me encantei com o que, em crônica anterior, chamei de biblioteca iletrada. Ontem no casarão Austregésilo de Ataíde, verifiquei com particular atenção a biblioteca que é dada como sua. Vi poucos e desinteressantes livros. A biblioteca é pífia. Parece-se com a de Cora Coralina. Não sei se essas bibliotecas foram saqueadas ou se correspondem exatamente ao que leram ou tiveram a necessidade de ter perto da mão seus donos. Nos tempos passados, os livros possuíam grande valor econômico, porque eram poucos e ilustravam o bom gosto das famílias aristocráticas. Nos tempos modernos diziam da “sabedoria” de seus donos ou a filiação das famílias, de que faziam parte, à formação intelectual de seus membros. Afirmar-se intelectual – no século passado – era uma forma de manter distância distintiva do corpo da sociedade.
A falta de hábito de freqüentar bibliotecas é uma das características de nosso país. De tal forma que a leitura pessoal se revela pelos livros que se adquirem ao longo da vida e se guardam como galardão pessoal, daí a importância de se estudar o legado das bibliotecas particulares, para aclarar o tipo de formação cultural e principalmente verificar o porquê de sermos um país de pouca ou nenhuma leitura. Quando essa medida se revela pela biblioteca de um dos intelectuais mais influentes da cultura brasileira – não se deve e não se pode esquecer que Austregésilo presidiu a Academia Brasileira de Letras durante longo período – a fragilidade das bibliotecas iletradas se revela com toda a sua força tragicômica.
Além de revelarem a falta de compromisso com a leitura, tais bibliotecas permitem que se veja o caráter conservador da sociedade de que fazemos parte, além da entronização de seus iguais como luminares da República. Pelo que tenho visto, mais da metade dos que se consideraram “cabeças privilegiadas” apenas assim puderam ser considerados pelo cumpadrismo existente na formação social brasileira, que sempre se pautou pela troca de favores e a mínima exposição à necessidade de transformação da leitura. A falta de compromisso social é tão evidente que a eles bastava a troca mútua dos elogios frívolos e o assento nas cadeiras confortáveis onde a sesta é mais importante que a labuta, onde o conforto garantido e sem sustos é mais eficiente que estar no olho do furacão e colocar as próprias deficiências em questionamento.
Parece-me que a fragilidade do ambiente intelectual é fruto do apego aos lugares conquistados que não permitem ao leitor discussões e que transformam os intelectuais em figurinhas carimbadas de álbum de coleção – exatamente como essas bibliotecas iletradas fazem, fingem grandiosidades que não se sustentam, forjam um saber em que não se pode acreditar. Criam um país de bestas astronômicas cujas opiniões são ampliadas até o limite das verdades frugais e histriônicas falas com que berram seus saberes para calarem outros.
(Oswaldo Martins)

5 comentários:

  1. Pois é Ramon. Lia muito também na biblioteca de minha cidade no interior de Minas.

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  2. Acho que podemos encontrar vários exemplos como os relatados por vocês e entre os quais também me incluo. Já li e estudei muito na Biblioteca do CCBB e também na BN, no Rio. Mas entendo isso como movimentos individuais, que não contradizem a regra - parece que as bibliotecas, no Brasil, por parcas e pomposas, ou frágeis e despreendidas, reafirmamnossa tradição oà cultura da oralidade e do analfabetismo. Não é de se estranhar então que tais marcas também incorporem muitas bibliotecas particulares também.

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  3. Em tempo: belo texto e necessária a reflexão, Oswaldo. O que vemos, por exemplo, nas ações públicas como as da Biblioteca Parque de Manguinhos, não seriam indicadores positivos de mudanças no país?

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  4. Olá Oswaldo,

    Como sou também livreiro, minha biblioteca está sempre mudando, com exceção, é claro, de alguns livros.

    Confira o texto de Chico Buarque que saiu na recente prova da Faetec. Ele fala de sua biblioteca, principalmente dos dicionários que eram do seu avô.

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  5. Alexandre,
    creio que a experiência da Biblioteca Parque de Manguinhos pode sim ser uma nova e produtiva maneira de se conquistar leitores. É preciso muito trabalho para que não se seja o Autregésilo do amanhã, não?

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