Há muitos anos desejava conhecer a cidade de Goiás – com querem os moradores de lá – ou o Goiás Velho nome que ouvi um dia e desde então consagrei como o nome de uma cidade encantada. Goiás Velho fica a 140 km de Goiânia, moderna capital do estado. É uma cidade agradável, de casario antigo e – como me disse uma historiadora que trabalha no IPHAN – data do início do século XVIII como as cidades mineiras antigas. Fruto do mesmo labor e assassinato cometido pelos Bandeirantes. Talvez por mais distante e por não ter sido disputada pelos portugueses baianos, a presença dos traços indígenas se tornou mais presente. Suas mulheres são bonitas, graciosas e ostentam frutuosos corpos. Uma mistura que deu certo. A elegância paulista de antes dos italianos e japoneses e a preguiça macunaimaica do índio faz sonhar no corpo de seus habitantes a voluptuosidade e o prazer. A cidade, que guarda parentesco com as cidades preservadas de Minas – especialmente com Tiradentes – uma vila simples que o turismo infausto complicou – não apresenta, entretanto, o peso do pecado que estreitam as casas mineiras e seu povo.
A busca por Goiás Velho nasceu da necessidade de encontrar uma outra deriva para a vida. O peso mineiro nunca me foi confortável, assim como a incapacidade de me livrar totalmente dele nunca tenha alcançado sucesso. Tenho o corpo travado para a dança, os músculos me doem pela tensão do cotidiano, retesados pela lição – uma porca lição – que as cidades fechadas de minha província me legaram. Goiás Velho me trouxe a perspectiva de ser quem sou – sem que tivesse de obedecer aos tramites da dor, do pecado, da maceração cristiana das ladainhas.
Na cidade viveu Cora Coralina, de cuja poesia não gosto. Sua casa é linda, agradável, remansosa. Ali corre constante e desde os tempos imemoriais uma água límpida de uma fonte que brota em seus porões, nos quais abrigava-se Maria Grampinho – uma espécia de Isabelinha barbacenense – uma louca mansa que vivia indagando pelos lindos passarinhos azuis e tocava piano e recitava seu francês como uma dama. Dizem que fruto de uma desilusão amorosa. As loucas de Minas são mais fechadas e metafísicas, como as cidades que as demenciam.
Nesta casa morou Cora Coralina – de cuja poesia desgosto, talvez por que seja palmar demais para meus olhos de lonjuras e mergulhos, mineiro que luta para afastar as diatribes da Santa Madre – daí me vem o amor pelos corpos em cópula e não o amor por seus doces fervendo nos tachos de cobre.
Em Goiás velho morreu Cora Coralina que legou, no museu em que se transformou sua casa, o retrato de seu pai morto – um lindo morto em sua vestimenta de brocado com flores negras – na elegância de velho magistrado. Um inesquecível morto e a possibilidade de fazer viver o fazer poético mesmo nas distâncias mais longínquas – mesmo nas dificuldades mais atrozes – como revela a parca biblioteca deste país iletrado.
A existência de Goiás Velho e da poesia de Cora Coralina – de que não gosto – compõem um mosaico tão único de simplicidade e distinção que agradeço à cidade e às suas moças vistosas a alegria com que ali passei algumas horas.
Oswaldo Martins
Linda crônica, como o poeta é bom de prosa! Adorei a vontade de encontrar uma "outra deriva da vida" que não seja aquela forjada pelos rigores de Minas. A possibilidade de achar algo parecido - uma cidade densa, antiga, mas que não tenha o mesmo peso, que nos seja mais leve, que nos des-culturalize um pouco das nossas raízes, essas raízes que no fundo formam o que somos até no corpo.
ResponderExcluirA crônica faz a poesia deslizar...Parabéns pelos versos escondidos, pela visita ao gênero do qual gosto muito. abs
ResponderExcluirMagnífica crônica, Oswaldo. Há justiça na sua leitura de Cora, como é justa a compreensão que seu texto traz de certa (e significativa) expressão literária iletrada brasileira.
ResponderExcluirQuero conhecer Goiás Velho!
Te escrevo.
bela crônica, Oswaldo. Esse país interior e suas entradas e bandeiras sujas de sangue, silêncio e reza.
ResponderExcluirAbraço
Cesar
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ResponderExcluirAdoro Goiás Velho, único lugar onde se pode comer alfenim e deslizar na colina do chafariz com as crianças numa mesma tarde.
ResponderExcluirBernardo Élis tem conto antológico sobre a antiga capital: o primeiro de "Apenas um Violão".
Abraço