quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Pés

pés servem à paixão medida ao espaço
delineado pelos números com quantos
se vão daqui à china ou bagdá ou mantos
que os ocupam pés de flanar pelas sós

ruas prados rios os esparsos terrenos
que os pés tenteiam para repor objetos
de amurada e desvios embora a cidade
seja uma uno o pátio que passeio em pés

medidos contando a simetria a cacos
rearmados como numa flor maldita
corola de plástico brilhante – o arco

do pensamento reduz pequenas putas
à escrita infame de que fujo e alcanço
nos quês afiados de fulgor e demência

(Oswaldo Martins)

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Três hai-kais de Bashô

1

Imensa calma.

Penetrando as rochas

o canto das cigaras


2

Sobre o mar, a tarde:

Voz de pato vem

vagamente branca


3

Vamo-nos, vejamos

a neve caindo

de fadiga.


(Trad. Olga Savary)

sábado, 19 de fevereiro de 2011

Extraordinário Lixo

para Felipe David Rodrigues
Lixo extraordinário filme que retrata o trabalho feito pelo artista plástico americano-brasileiro, Vik Muniz, é um belo filme. Forte e emocionante, pertence às manifestações contemporâneas que buscam, através da carga emocional neles colocada, atrair a atenção do público e impactá-lo. É impecável sua conquista da boa vontade do espectador, quando intensifica a possibilidade cristã de resgatar do lixo as pessoas que vivem à margem do sistema consumista, seja da arte, seja dos amores, seja dos bem eletrônicos.
A fórmula é consabida desde o extermínio dos índios, pelas missões dos primeiros tempos europeus das Américas, das populações ribeirinhas,rurais e urbanas que aos poucos vão se “civilizando”, pela presença maciça da emocionalidade televisiva das novelas e faustões ou pela profusão de bispos também televisivos da nova religiosidade.
Tais fórmulas são de conhecimento geral e servem para aplacar nossa consciência culpada ante a incapacidade de repensar o trabalho, a moradia e a inclusão dos membros da sociedade. Ensinar que se pode resolver a situação de uma comunidade, através da emoção, é no mínimo fazer com que a ação seja paliativa e improdutiva. A arte ao entrar nos campos sociais deve tomar muito cuidado consigo mesma, pois que pode deixar de se afirmar como arte e desandar em ações que deveriam estar por conta dos governos e das escolas. Com isso, antes que alguém acuse, não se quer dizer que a arte não possa ser social nem contribuir para que a sociedade possa usufruí-la, mas deve manter a lucidez e pensar sobre seus pressupostos para que possa ser considerada arte.
A questão é secundária no filme, em momento algum o artista ou as pessoas que são postas em contato com os retratos feitos questionam o fazer – dá-se como importante de antemão e o autor dos quadros toma – contra talvez ele mesmo – ares de grande herói e pai, que deve cuidar de seus rebentos perdidos e salvar a sociedade – como um super-homem pós-moderno – da vida.
Ao emoldurar as personagens na fixidez da fotografia finge ser uma outra coisa que não o produto da reflexão que leva à arte, mas a arte assegurada por um mercado que vai render frutos para além da obra. As imagens finais do filme são exemplares e formulares. O lugar comum do destino das pessoas – fórmula fulano terminou assim, beltrano assado – é ilustrativo do que se busca dizer. Vik volta ao seu estúdio com cara de dever cumprido e os personagens – embora tenham abandonado o extraordinário lixão – estão sem emprego ou esperam com dezenove anos o terceiro filho e vivem às expensas de um marido até serem novamente abandonadas e se verem sem emprego. A máxima de que a arte transforma é em tese verdadeira, mas essa transformação não se dá conforme o filme tenta passar – como solução de um problema social.
A transformação que a arte opera se dá em dois níveis, a do alargamento da leitura – seja visual ou escrita – e a da percepção da vida e não da sua transformação no que é outro. O filme se salvaria da medianidade se a comunidade de catadores de lixo passasse a ter a opção de ser dignificada como catadores e a partir daí passasse a ser fonte produtora de expressões culturais válidas e profundas. Retirá-los do limbo e jogá-los em outro não menos cruel é transformá-los em novos índios.
Em tempo. São lindas e sensuais as duas moças. Nenhuma é desdentada ou tem a bunda caída, o que ajuda a identificar o público com a emoção que o filme busca. Um filme – mesmo um documentário – é sempre um filme feito de escolhas e montagem e de um público que a ele se destina, uma moça muito diferente tornaria o filme caricato – como é a presença do senhor analfabeto, pouco explorado no filme – e quem sabe mais digno, embora não se destinasse aos prêmios que ganhou. Serve apenas para dar um toque da tão presente “cor local” de triste e longa utilização por nossos diretores, escritores e artistas plásticos.
Por fim, o impacto na conta bancária do artista é desigual com o impacto na conta bancária? Dos personagens que emolduram a mitologia Vik Muniz.

(oswaldo martins)

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Medidas

côvado

desmedido senão dos mínimos detalhes
esse que vês atulhado de cortes suspensas
pontes entre o que se permite e minha voz
aparelhos de torturar a sã certeza pensa

tudo – essas medidas de polegares
pés e antebraços essas as medidas
do nada em centímetros e metros
postos em desvios

para a composição da arte
supõe-se o destroçado olho
e objetos rasos um quê
para as palavras para a tontura

desviada do que se pode
e nem sequer duvida
esquecido o abismo ronda
a mortalha ronda

e os fios dos cabelos caos
como calvas elétricas
mais que a matéria
indicam o ingente silêncio

que faz falar a língua

(oswaldo martins)

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

A indesejada das gentes

A leitura da A indesejada das gentes no blog de Cesar Cardoso, o belo PTAVINA'S, é obrigatória. Ali estão reunidos, como em uma antologia, alguns dos melhores poemas sobre a morte e sua variedade de estilos. Morre-se de todo jeito e maneiras! Escolha a que mais lhe convier, mas não deixe de lê-las todas, que ali estão iluminadas pelo olhar entre sério e galhofeiro, como se deve tratá-la. Ave, Cesar!

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Poema do dia

ANTIODE
(CONTRA A POESIA DITA PROFUNDA)

A

Poesia te escrevia:
flor! conhecendo
que és fezes. Fezes
como qualquer,

gerando cogumelos
(raros, fragéis, cogu-
melos) no úmido
calor de nossa boca.

Delicado, escrevia:
flor! (Cogumelos
serão flor? Espécie
estranha, espécie

extinta de flor, flor
ão de todo flor,
mas flor, bolha
aberta no maduro)

Delicado, evitava
o estrume do poema,
seu caule, seu ovário,
suas intestinações.

Esperava as puras,
transparentes florações,
nascidas do ar, no ar,
como as brisas.

B

Depois, eu descobriria
que era lícito
te chamar: flor!
(Pelas vossas iguais

circunstâncias? Vossas
gentis substâncias? Vossas
doces carnações? Pelos
virtuosos vergéis

de vossas evocações?
Pelo pudor do verso
- pudor de flor -
por seu tão delicado

pudor de flor,
que só se abre
quando a esquece o
sono do jardineiro?)

Depois eu descobriria
que era lícito
te chamar: flor!
(flor, imagem de

duas pontas, como
uma corda). Depois
eu descobriria
as duas pontasda flor:

as duas
bocas da imagem
da flor: a boca
que come o defunto

e a boca que orna
o defunto com outro
defunto, com flores,
- cristais de vômito.

C

Como não invocar o
vício da poesia: o
corpo que entorpece
ao ar de versos?

(Ao ar de águas
mortas, injetando
na carne do dia
a infecção da noite).

Fome de vida? Fome
de morte, frequentação
da morte, como de
algum cinema.

O dia? Árido.
Venha, então, a noite,
o sono. Venha,
por isso, a flor.

Venha, mais fácil e
portátil na memória,
o poema, flor no
colête da lembrança.

Como não invocar,
sobretudo, o exercício
do poema, sua prática,
sua lânguida horti-cultura?

Pois estações
há, do poema, como
da flor, ou como
no amor dos cães;

e mil mornos
enxertos, mil maneiras
de excitar negros
êxtases, e a morna

espera de que se
apodreça em poema,
prévia exalação
de alma defunta.

D

Poesia, não será esse
o sentido em que
ainda te escrevo:
flor! (Te escrevo:

flor! Não uma
flor, nem aquela
flor-virtude - em
disfarçados urinóis).

Flor é a palavra
flor, verso inscrito
no verso, como as
manhãs no tempo.

Flor é o salto
da ave para o vôo;
o salto fora do sono
quando seu tecido

se rompe; é uma explosão
posta a funcionar,
como uma máquina,
uma jarra de flores.

E

Poesia, te escrevo
agora: fezes, as
fezes vivas que és.
Sei que outras

palavras és, palavras
impossíveis de poema.
Te escrevo, por isso,
fezes, palavra leve
,
contando com sua
breve. Te escrevo
cuspe, cuspe, não
mais; tão cuspe

como a terceira
(como usá-la num
poema?) a terceira
das virtudes teologais.

(João Cabral de Melo Neto)

Do livro psicologia da composição

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Quitandeiro - Monarco

Quitandeiro, leva cheiro e tomate
Pra casa do Chocolate que hoje vai ter macarrão
Prepara a barriga macacada
Que a boia tá enfezada e o pagode fica bom
Chega só 30 litros de uca
Para fechar a butuca
Desses negos beberrão

Chocolate, tu avisa a crioula
Que carregue na cebola e no queijo parmesão (BIS)

Mas não se esqueça
De avisar a nêga Estela
Que o pessoal da Portela
Vai cantar partido alto
Vai ter pagode até o dia amanhecer
E os versos de improviso
Serão em homenagem à você

Quitandeiro, leva cheiro e tomate
Pra casa do Chocolate que hoje vai ter macarrão
Prepara a barriga macacada
Que a boia tá enfezada e o pagode fica bom
Chega só 30 litros de uca
Para fechar a butuca
Desses negos beberrão
Chocolate, tu avisa a crioula
Que carregue na cebola e no queijo parmesão

(Monarco)

Monarco - O quitandeiro

MÚSICO MORANDO SOZINHO

Músico morando sozinho
a si também absorve.
Na rexa dessa lógica
que move o movimento

A ele correm espíritos
segundo o repertório.
Tanta música estampe
ao rés dos músculos.

Convergem em si notas
todos os incêndios.
Inda mais quando ele
explora os siLêncios.

Silêncio nas cordas
como se esperasse.
A ele correm espíritos
com não instrumentos.

E quanto som se perca
mais puro resultadao.
De canção ou negócio
que em zero ficasse.

(Edimilson de Almeida Pereira)

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Dr. Orlando

Mudou uma turquinha nova
Lá pros lados da estação
Eu fui na loja da turca
Comprar panos de algodão

Ai ai ai ai

Eu fui na loja da turca
Comprar pano de algodão
Olhei na cara da turca
Esqueci da obrigação

Ai ai ai ai

Filha do Dr. Orlando
Chegou na porta e falou
Quem matar essa turquinha
Um conto de réis eu dou

Ai ai ai ai

Filha do Dr. Augusto
Chegou na porta e falava
Que matar essa turquinha
Muitos olhos sossegava

Ai ai ai ai

( Recolhido por Oneyda Alvarenga)
O texto acima é a letra de uma moda, ou modinha (gênero musical praticado no sudeste Rio, Minas Gerais e São Paulo). Foi recolhida por Oneyda Alvarengae gravada por Renato Teixeira, para a belíssima produção de Marcos Pereira, trabalho único de documentação das raízes da música brasileira. A letra acima demonstra a especial economia com que o poeta popular trabalhava, insinuando mais do que dizendo, como a poesia deveria ser. Compositor renomado brasileiro que disso sabia e praticava em suas composições foi Dorival Caymmi. Resolver os versos em poucas linhas, com o pouco dito que diz muito é arte para poucos.
(oswaldo martins)

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

um momento

há dias em que sentada à minha sombra
senta-se a sombra do que nunca fomos
e juntas na escuridão passageira
viajamos de mãos justas e entrelaçadas

do modo como nunca fizemos
era uma fantasia de carnaval
porém sem máscaras
o nosso brilho, poeira quase fatal

é o sol que no seu ciclo
vem
e zomba de mim
com sua pose natural

vem
e retira de mim
a noite funda desta paisagem

eu peço, quase sem remorso,
há dias.

(Lúcia Leão)

sonhos de arthur

2

vaga dupla eu e outros a cada vez
pares que não pois subsisto – eu – neste
tecido de múltiplas faces árduo
ofício de desencantar o infausto

diálogo do eu com outros os quês
da pergunta que disfarço reposto
nos comichões dos deuses dos alvores
do cerebelo ou infante pressuposto

do pensar ingente as obras do ocaso
calidoscópio e azares e conexas
disjunções dúbias aos pares simétricos

que escondo e mostro no aziago azo
destas cordas que deixaram arestas
pendidos ês nos quês dos desarquétipos

(oswaldo martins)

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

esquife

a Alvares de Azevedo


foi embora
a minha amada morreu

foi embora
eu estava fora
só agora me disseram

eu estava fora

não a guardaram pra mim

e que faço eu com este meu desejo
de beijar-lhe os lábios frios


elesbão ribeiro
(26/ 01/11)