João Guimarães Rosa, ao escrever Grande
Sertões: Veredas, revisita toda a tradição brasileira do romance regional, que
se inicia com Alencar, passa pelo Realismo, pelo Sertões, de Euclides, e pela
tradição regionalista de 30. A obra do escritor mineiro é ao mesmo tempo o
ápice e a sepultura de toda esta tradição, de toda uma linguagem. O sertão, que
está em toda parte, se faz mundo, se faz universo e se insere nos voos que a
literatura pós-roseana alça.
Machamba, da escritora Gisele Mirabai,
alça seu voo após a lição de Rosa, isto é, o que há de sertão no romance se
coloca como destituição, vazio a ser preenchido pelas vicissitudes de uma
personagem que deve conviver com a morte deste sertão, por isso ele é uma
presença ausente em toda a narrativa. Uma lembrança que se necessita
confrontar.
As linhas buscadas pela narrativa
levam-na dos belos horizontes à busca incessante de outros horizontes nos quais
se encontra a bifurcação dos amores perdidos, desde a África até as
civilizações antigas. O mundo se divide, nas andanças da personagem, entre o mundo
comezinho das palavras e vivências diárias ao mundo vasto, vasto mundo, em que
se navega, sem se saber porque, pelas esferas universais a abeirarem-se da
percepção do sublime proposta por Kant.
Como um tiro no peito, ou o peso das
patas de um boi no centro do coração, Machamba se propõe discutir essa linha
obscura que nem as ciências, nem os juízos, são capazes de entender e que
apenas a linguagem desprovida de significado neste mundo pequeno pode-se
revelar como entendimento através do silêncio, um silêncio tanto mais curioso
por ser ele, o silêncio, quem narra o mundo denominado grande e por isso
inatingível.
As narrativas, em geral muito
precárias no Brasil, em todos os tempos, excetuando aqui e ali um Machado, um
Graciliano, um Cornélio Pena, um Rosa, sempre contaram demais, permitindo ao
leitor pouca margem de leitura, e com isso fazendo com que o romance fosse uma
dadivosa aula enciclopédica, como em Apesar
de dependente, universal, nos alerta Silviano Santiago, esse grande outro
grande prosador de nossos dias. São, diríamos com Gisele, narrativas do mundo
pequeno.
Em Machamba esse enciclopedismo,
aprendido do pai, está no romance como rota de fuga, como a ironia
constituidora dos sentidos a não serem alcançados ou por impossíveis ou, melhor
hipótese, porque impedem ao leitor as facilidades de um mundo fechado e
autocentrado, como soem ser as narrativas da chamada auto-ficção. Os sentidos,
se os há, estão em outro lugar. Só será capaz de alcançá-los o leitor que
responder ao convite sutil à reflexão feito pela narrativa deste belo romance.
(oswaldo martins)