segunda-feira, 26 de novembro de 2018

Benin


1

Os olhos de JM estavam imersos na máscara dos reis do Benin. Eram apenas os olhos, o resto do corpo viajava nas caravelas portuguesas. Quando os olhos não viam Benin, plantavam nas sementes, que ele espalharia/espelharia, uma imagem de pavor e resistência. Os olhos de um negro retinto retingiria o rio niger de vermelhos rudes e tons de verdes esquecidos; por mais estranhos que os olhos não se punham nas paisagens, o horror, o horror era cobrado por aqueles olhos de não estarem, desachegados aos chás, às cinco horas cujo extermínio soará como um machado cortando perpendicularmente as cabeças das rainhas de copas.

quinta-feira, 22 de novembro de 2018

O novo romance brasileiro



João Guimarães Rosa, ao escrever Grande Sertões: Veredas, revisita toda a tradição brasileira do romance regional, que se inicia com Alencar, passa pelo Realismo, pelo Sertões, de Euclides, e pela tradição regionalista de 30. A obra do escritor mineiro é ao mesmo tempo o ápice e a sepultura de toda esta tradição, de toda uma linguagem. O sertão, que está em toda parte, se faz mundo, se faz universo e se insere nos voos que a literatura pós-roseana alça.
Machamba, da escritora Gisele Mirabai, alça seu voo após a lição de Rosa, isto é, o que há de sertão no romance se coloca como destituição, vazio a ser preenchido pelas vicissitudes de uma personagem que deve conviver com a morte deste sertão, por isso ele é uma presença ausente em toda a narrativa. Uma lembrança que se necessita confrontar.
As linhas buscadas pela narrativa levam-na dos belos horizontes à busca incessante de outros horizontes nos quais se encontra a bifurcação dos amores perdidos, desde a África até as civilizações antigas. O mundo se divide, nas andanças da personagem, entre o mundo comezinho das palavras e vivências diárias ao mundo vasto, vasto mundo, em que se navega, sem se saber porque, pelas esferas universais a abeirarem-se da percepção do sublime proposta por Kant.
Como um tiro no peito, ou o peso das patas de um boi no centro do coração, Machamba se propõe discutir essa linha obscura que nem as ciências, nem os juízos, são capazes de entender e que apenas a linguagem desprovida de significado neste mundo pequeno pode-se revelar como entendimento através do silêncio, um silêncio tanto mais curioso por ser ele, o silêncio, quem narra o mundo denominado grande e por isso inatingível.
As narrativas, em geral muito precárias no Brasil, em todos os tempos, excetuando aqui e ali um Machado, um Graciliano, um Cornélio Pena, um Rosa, sempre contaram demais, permitindo ao leitor pouca margem de leitura, e com isso fazendo com que o romance fosse uma dadivosa aula enciclopédica, como em Apesar de dependente, universal, nos alerta Silviano Santiago, esse grande outro grande prosador de nossos dias. São, diríamos com Gisele, narrativas do mundo pequeno.
Em Machamba esse enciclopedismo, aprendido do pai, está no romance como rota de fuga, como a ironia constituidora dos sentidos a não serem alcançados ou por impossíveis ou, melhor hipótese, porque impedem ao leitor as facilidades de um mundo fechado e autocentrado, como soem ser as narrativas da chamada auto-ficção. Os sentidos, se os há, estão em outro lugar. Só será capaz de alcançá-los o leitor que responder ao convite sutil à reflexão feito pela narrativa deste belo romance.

(oswaldo martins)

terça-feira, 20 de novembro de 2018

talvez ainda samba

3

O requebro agressivo era uma velha canção em seus ouvidos, como se não Chicago, não Nova Iorque, mas ainda assim a perna requebrava com fúria e plantava pés, joelhos, mãos e cabeça desconjuntadas pelas ruas de um país que não era o seu, mas que plantava nas roças de algodão a fúria encapuzada sobre essa música que ouvia e se havia fruto poderoso cuja seiva escorria pelas valas, pelos filetes de sangue, pelos corpos torturados e desaparecidos.

matadouro

as despregadas peças do corpo humano
podem ser vistas já postas em exposição
como na prateleira do mercado o frisson
desde um guardanapo à lata de elastano

ataca o frege da beócia beatitude
daqueles que vão ao gozo por uma perna
este petisco sem igual cujas úrsulas
deixam sobrar no que sobeja desta hérnia

uns pelinhos aclarados em tal água
que oxigena e os pentelhos doura
nas gôndolas dos gandolas aos gandulas

da glândula pituitária desregulada
hipófise a oscular tonta de desejos
a satisfação das peças recém obtidas

(oswaldo martins)

quarta-feira, 14 de novembro de 2018

estudo para alguns tons


2

Quando não esteve em Paris, JM visitou os bairros mais distantes onde recolheu uma série de madeira de construções devolutas. Viu os realistas da revolução, visitou museus, os andrajos do braço da vênus e os usou nas séries temáticas de suas composições. O braço ficou vagando, ora aparecia de cabeça pra baixo, ora de cabeça pro lado, ora oblíquo ao pano de fundo no qual faltava o corpo da deusa. De Aquiles roubou o calcanhar. De da Vinci, a máscara mortuária e o estudo da anatomia humana. De Coubert, a boceta.

Quando voltou da cidade em que nunca esteve, se pôs a trabalhar tão freneticamente que era possível àqueles que morte visita cedo enxergá-los dispersos pelos muros contra os quais se dançava uma coreografia quebrada, ao som do haxixe.

quarta-feira, 7 de novembro de 2018

o sangue e o leite


cena 1

no cárcere as mães
acalentavam os filhos

os algozes vigiavam-lhe os seios
expostos para fora das grades

os pais esperavam híspidos
para levá-los a casa

aguardavam-nos as amas
e a água das sarjetas

cena 2

as mães expunham os seios
por um copo de vinagre

acendiam um mata-rato
para inebriar os sentidos

e se riam máscaras
no teatro de horrores

3

para os homens à sombra
da carceragem dançavam

deusas desdentadas
que o baixo ventre intuía

e os devoravam como se de cronos
esperassem outra ordem

para que pudessem devorá-los
os filhos

(oswaldo martins)

terça-feira, 6 de novembro de 2018

os gorilas também amam



para o guta

os gorilas ocidentais das terras baixas
andam perdendo o sono
não comem mais a folha
nem o sumo dos frutos tragam

os gorilas ocidentais das terras baixas
preferem a canabis
que lhes cura as dores
e os faz escapar à realidade

os gorilas ocidentais das terras baixas
vestem roupas estranhas
um estrondo de cores
que inventa o atual requebro

os gorilas ocidentais das terras baixa
caçados a fuzis e pretzels
invernam nas matas
para voltarem triunfantes

ao azul de suas matas