domingo, 6 de janeiro de 2013

Uma grande surpresa


(Publicado em Eu&Fimde semana, supl. do jornal Valor econômico, São Paulo, 4-6 de janeiro, 2013)

                                                                                  Luiz Costa Lima

Odo Marquard é um filósofo contemporâneo que os trópicos desconhecem. Em um texto datado de 1989, “A Arte como antificção”, ele teve uma ousadia só comparável às que, em vida, tornaram Nietzsche um marginal: propor que vivemos em um mundo que chegou a tal grau de artifício e fantasia que se impõe a tese por ele assim enunciada: “Onde a própria realidade se transforma em um conjunto de fictícios, a arte, de sua parte, converte-se em antificção”.
  A formulação era uma provocação. Ela chega a tal grau que, embora eu a tenha traduzido, só a fiz circular entre uns poucos amigos. Dela, contudo, agora me lembro pela surpresa que causa o livro de estreia de Antonio Geraldo Figueiredo Ferreira (Editora Iluminuras, 2012).
   Mas que razão justifica a lembrança? Ela está em que seu modo de composição mostra uma ficção que parece evitar ser reconhecida como ficção. É certo que o leitor mais atilado se dirá: ora, vejam só, com nossa tradição “documentalista”, incentivada pela moda internacional dos “testemunhos” de situações incomuns, aquela e esses rapidamente convertidos em mini-séries televisivas, de que surpresa se estará falando?
  Permitam-me responder: o não fictício de As Visitas não tem nada a ver com nossa tradição naturalista de romances documentais e de testemunhos. Tem sim a ver com a ausência de dois ingredientes comuns na obra romanesca: o enredo e a unidade de dicção. O enredo é tradicionalmente o meio pelo qual o escritor coordena as ações, impede que elas se descaminhem ou se tornem semelhantes a um curso d’água que, na ausência de um leito, extravasam pelas margens. Ora, neste sentido, As Visitas não têm enredo. Se o livro então não cai nos defeitos apontados é porque seus personagens são os anônimos de toda uma comunidade. Qual comunidade? Aquela que é coberta pela quebra da unidade de diçcão. Ou seja, a ausência de um ingrediente usual se acompanha da ausência do outro. Com efeito, a unidade de dicção, com frequência entendida como “estilo”, é substituída por uma dualidade de dicções: a dominante é a de cunho rural-interiorano, a dominada é a dicção culta, que remete à fala do próprio autor.
  Comecemos pela primeira. A dicção rural-interiorana, fiel mas nem por isso especular à fala da gente do interior, por isso absolutamente inédita na literatura brasileira, é a razão porque a contracapa do livro fala que o autor possui um “ouvido absoluto”. A expressão, usada na música, para executantes de qualidade excepcional, é por certo adequada, com a diferença de que, no caso da expressão verbal, precisa de uma unidade, a palavra, a que não basta o som. E aqui está o mais surpreendente em As Visitas. Na grande maioria dos casos, a dicção no livro de estreia de Antonio Geraldo é extraída desta espécie de “língua geral” que cobre as zonas rurais do Rio, São Paulo, Minas, a estender-se pelo Mato Grosso, pelo nordeste baiano-cearense, até onde não sei. Não se pense, entretanto, em uma variante da lição de Guimarães Rosa. Neste, a linguagem interiorana seguia uma direção anti-Euclides, porque, em lugar da palavra rara e erudita, posta sobre o sertanejo, recolhia o vocabulário do homem do povo, para dele puxar, por um lado, sua força neológica, de outro, sua dobradura filosofante (cf. “A Terceira margem do rio” ou “A Menina de lá”). Ora, nenhuma das duas direções aparece em Antonio Geraldo. Tal ausência, contudo, não significa, como foi e é frequente, que ele se fixe em um estrato naturalista, com o qual o texto funcionaria como documento, testemunho ou espelho do falar e da mentação do homem de proveniência rural. A presença dessa extração é mostrada de outro modo. Desde logo, pela figura copiosa de provérbios e construções aforismáticas – “não sou escada, sou queda”, “Deus às vezes faz as coisas chuviscarem, mas noutras vezes despeja a tromba d’água”, “aprende no chicote, acha a salmoura doce”, “a agonia é a recompensa dos que teimam em não desistir”, etc. A seguir, a alusão não menos frequente a Deus e ao diabo – “se Deus anda meio surdo, o negócio é sapecar um dízimo mais gordo”; “deus não é pras curvas (…) fica, mas sim, nas retas descidas da vida, com o talão de multas na mão”; “e esse povo todo que dá certo na vida não existe de verdade, está aqui por obra do demônio, só pra cutucar melhor as nossas feridas” – que manifesta uma religiosidade difusa, supersticiosa e fatalista, bem diversa da que difundem, nas cidades de agora, as igrejas evangélicas.
  Ser a linguagem coloquial-interiorana altamente predominante não impede que surja aqui e ali a dicção elevada. Escolho pequena passagem, em que o sermo nobilis é marcado pelo macabro irônico. Seu título é importante: “o freguês em primeiro lugar”:
“Como ia adivinhar? Era um jeito de puxar conversa, é preciso cativar o cliente, falar do tempo?, do calor?, não dá, não deviam deixar o caminhão de carniça entrar na cidade, disse, fiz careta, olha que fedor dos infernos, não é? ela quieta, acho que até concordou, depois que saiu é que me contaram que era ela, câncer adiantado”.
  Outros poucos exemplos aparecem em “gravitação”, “oitenta anos” ou na excelente apreensão contrastante da “alta roda”, em “com espírito”. Na impossibilidade de me estender sobre a última, observo apenas ser nela que prima a ironia refinada do autor. Um chefe de empresa escolhe, para o “ritual de fim de ano”, alguns empregados, para que, participando de seus festejos familiares, se admirem de seu “modo de vida” e o contem aos outros: “é, isso mesmo, quem não ostente é como se não tivesse”. A frase do autor é mais eficaz, mesmo porque retoma o ritmo da frase oral e apenas virgula, ou seja faz pausas no exibicionismo do chefe e na “gagueira dos gestos” dos subalternos. “Trabalho social”? Pergunta-se o anfitrião, para que logo responda: isso “não passa de travesseiro ortopédico”; “o nome disso é antigo, o nome disso é poder”.  
  Entre uma e outra dicção, arma-se uma peça teatral que, não contando as declaradas “páginas arrancadas” e passagem em que se fala em retirar as frases demasiado literárias, tem Naum e Cora como protagonistas. A peça aparece em três partes separadas, sempre anunciadas por “os olhos de jussara”, nome da boneca da criança retardada.  Por que entre si desgarradas e com marcação de teatro? Suponho que para neutralizar o clima potencial de dramalhão, acentuando-se, ao contrário, a desgraça costumeira entre miseráveis, desempregados, doentes ou dos que vivem de favores ou bicos eventuais. A narrativa é, em si, de uma vida cotidiana, pouco noticiada e terrível. Cora, a mulher do homem, deixara a casa ao descobrir que o marido engravidara a filha, que tivera gêmeas, uma das quais retardada. Cora volta para casa e insiste com Naum para que a receba. Não é outra sua razão: é uma doente terminal e não tem onde ficar. Viera para rever as netas e espera que o câncer termine sua devastação. A filha termina por convencer o pai-marido para que a aceite; encarrega-se de cuidar da enferma e levá-la ao hospital público, onde o leitor previamente sabe o tratamento que receberá.
  Espalhada pela narrativa, a peça teatral como que oferece um suporte ante a falta de intriga. Mais ainda, se atentamos para seu desenrolar, vemos que ele parte de personagem que, antes de suicidar-se, a envia pelo correio ao personagem-narrador. (O suicida ainda aparece em capítulo autônomo  como autor de aforismos) Os capítulos, ora mais longos, ora muito curtos, se não reduzidos a uma frase, lidam por excelência com uma enciclopédia de espoliados pela vida. São velhos de juntas capengas, “sem girar certo a dobradiça dos ofícios”, enfermos, ladrões, mendigos, toda espécie imaginável de Lúmpen  magotes de moleques, candidatos a trombadinhas, um raro descendente que consome o resto de herança, em suma, o “povinho alastrado pelo brasil”, aqueles que sabem, sem disfarces, nem coloridos televisivos, que aprender a viver é acostumar-se com as perdas. Pois “o fim da gente começa lá no começo”.   

Um comentário: