(Publicado em Eu&Fimde semana, supl. do jornal Valor econômico, São Paulo, 4-6 de
janeiro, 2013)
Luiz
Costa Lima
Odo Marquard é um filósofo contemporâneo que os trópicos
desconhecem. Em um texto datado de 1989, “A Arte como antificção”, ele teve uma
ousadia só comparável às que, em vida, tornaram Nietzsche um marginal: propor
que vivemos em um mundo que chegou a tal grau de artifício e fantasia que se
impõe a tese por ele assim enunciada: “Onde a própria realidade se transforma
em um conjunto de fictícios, a arte, de sua parte, converte-se em antificção”.
A formulação era uma
provocação. Ela chega a tal grau que, embora eu a tenha traduzido, só a fiz
circular entre uns poucos amigos. Dela, contudo, agora me lembro pela surpresa
que causa o livro de estreia de Antonio Geraldo Figueiredo Ferreira (Editora
Iluminuras, 2012).
Mas que razão justifica a
lembrança? Ela está em que seu modo de composição mostra uma ficção que parece
evitar ser reconhecida como ficção. É certo que o leitor mais atilado se dirá:
ora, vejam só, com nossa tradição “documentalista”, incentivada pela moda
internacional dos “testemunhos” de situações incomuns, aquela e esses
rapidamente convertidos em mini-séries televisivas, de que surpresa se estará
falando?
Permitam-me responder: o não
fictício de As Visitas não tem nada a
ver com nossa tradição naturalista de romances documentais e de testemunhos.
Tem sim a ver com a ausência de dois ingredientes comuns na obra romanesca: o
enredo e a unidade de dicção. O enredo é tradicionalmente o meio pelo qual o
escritor coordena as ações, impede que elas se descaminhem ou se tornem
semelhantes a um curso d’água que, na ausência de um leito, extravasam pelas
margens. Ora, neste sentido, As Visitas
não têm enredo. Se o livro então não cai nos defeitos apontados é porque seus
personagens são os anônimos de toda uma comunidade. Qual comunidade? Aquela que
é coberta pela quebra da unidade de diçcão. Ou seja, a ausência de um
ingrediente usual se acompanha da ausência do outro. Com efeito, a unidade de
dicção, com frequência entendida como “estilo”, é substituída por uma dualidade
de dicções: a dominante é a de cunho rural-interiorano, a dominada é a dicção
culta, que remete à fala do próprio autor.
Comecemos pela primeira. A
dicção rural-interiorana, fiel mas nem por isso especular à fala da gente do
interior, por isso absolutamente inédita na literatura brasileira, é a razão
porque a contracapa do livro fala que o autor possui um “ouvido absoluto”. A
expressão, usada na música, para executantes de qualidade excepcional, é por
certo adequada, com a diferença de que, no caso da expressão verbal, precisa de
uma unidade, a palavra, a que não basta o som. E aqui está o mais surpreendente
em As Visitas. Na grande maioria dos
casos, a dicção no livro de estreia de Antonio Geraldo é extraída desta espécie
de “língua geral” que cobre as zonas rurais do Rio, São Paulo, Minas, a
estender-se pelo Mato Grosso, pelo nordeste baiano-cearense, até onde não sei.
Não se pense, entretanto, em uma variante da lição de Guimarães Rosa. Neste, a
linguagem interiorana seguia uma direção anti-Euclides, porque, em lugar da
palavra rara e erudita, posta sobre o
sertanejo, recolhia o vocabulário do homem do povo, para dele puxar, por um
lado, sua força neológica, de outro, sua dobradura filosofante (cf. “A Terceira
margem do rio” ou “A Menina de lá”). Ora, nenhuma das duas direções aparece em
Antonio Geraldo. Tal ausência, contudo, não significa, como foi e é frequente,
que ele se fixe em um estrato naturalista, com o qual o texto funcionaria como
documento, testemunho ou espelho do falar e da mentação do homem de
proveniência rural. A presença dessa extração é mostrada de outro modo. Desde
logo, pela figura copiosa de provérbios e construções aforismáticas – “não sou
escada, sou queda”, “Deus às vezes faz as coisas chuviscarem, mas noutras vezes
despeja a tromba d’água”, “aprende no chicote, acha a salmoura doce”, “a agonia
é a recompensa dos que teimam em não desistir”, etc. A seguir, a alusão não
menos frequente a Deus e ao diabo – “se Deus anda meio surdo, o negócio é
sapecar um dízimo mais gordo”; “deus não é pras curvas (…) fica, mas sim, nas
retas descidas da vida, com o talão de multas na mão”; “e esse povo todo que dá
certo na vida não existe de verdade, está aqui por obra do demônio, só pra
cutucar melhor as nossas feridas” – que manifesta uma religiosidade difusa,
supersticiosa e fatalista, bem diversa da que difundem, nas cidades de agora,
as igrejas evangélicas.
Ser a linguagem coloquial-interiorana
altamente predominante não impede que surja aqui e ali a dicção elevada.
Escolho pequena passagem, em que o sermo
nobilis é marcado pelo macabro irônico. Seu título é importante: “o freguês
em primeiro lugar”:
“Como ia adivinhar? Era um jeito de puxar conversa, é preciso
cativar o cliente, falar do tempo?, do calor?, não dá, não deviam deixar o
caminhão de carniça entrar na cidade, disse, fiz careta, olha que fedor dos
infernos, não é? ela quieta, acho que até concordou, depois que saiu é que me
contaram que era ela, câncer adiantado”.
Outros poucos exemplos
aparecem em “gravitação”, “oitenta anos” ou na excelente apreensão contrastante
da “alta roda”, em “com espírito”. Na impossibilidade de me estender sobre a
última, observo apenas ser nela que prima a ironia refinada do autor. Um chefe
de empresa escolhe, para o “ritual de fim de ano”, alguns empregados, para que,
participando de seus festejos familiares, se admirem de seu “modo de vida” e o
contem aos outros: “é, isso mesmo, quem não ostente é como se não tivesse”. A
frase do autor é mais eficaz, mesmo porque retoma o ritmo da frase oral e
apenas virgula, ou seja faz pausas no exibicionismo do chefe e na “gagueira dos
gestos” dos subalternos. “Trabalho social”? Pergunta-se o anfitrião, para que
logo responda: isso “não passa de travesseiro ortopédico”; “o nome disso é
antigo, o nome disso é poder”.
Entre uma e outra dicção,
arma-se uma peça teatral que, não contando as declaradas “páginas arrancadas” e
passagem em que se fala em retirar as frases demasiado literárias, tem Naum e
Cora como protagonistas. A peça aparece em três partes separadas, sempre
anunciadas por “os olhos de jussara”, nome da boneca da criança retardada. Por que entre si desgarradas e com marcação
de teatro? Suponho que para neutralizar o clima potencial de dramalhão,
acentuando-se, ao contrário, a desgraça costumeira entre miseráveis,
desempregados, doentes ou dos que vivem de favores ou bicos eventuais. A
narrativa é, em si, de uma vida cotidiana, pouco noticiada e terrível. Cora, a
mulher do homem, deixara a casa ao descobrir que o marido engravidara a filha,
que tivera gêmeas, uma das quais retardada. Cora volta para casa e insiste com
Naum para que a receba. Não é outra sua razão: é uma doente terminal e não tem
onde ficar. Viera para rever as netas e espera que o câncer termine sua
devastação. A filha termina por convencer o pai-marido para que a aceite;
encarrega-se de cuidar da enferma e levá-la ao hospital público, onde o leitor
previamente sabe o tratamento que receberá.
Espalhada pela narrativa, a
peça teatral como que oferece um suporte ante a falta de intriga. Mais ainda,
se atentamos para seu desenrolar, vemos que ele parte de personagem que, antes
de suicidar-se, a envia pelo correio ao personagem-narrador. (O suicida ainda
aparece em capítulo autônomo como autor de aforismos) Os capítulos, ora mais
longos, ora muito curtos, se não reduzidos a uma frase, lidam por excelência
com uma enciclopédia de espoliados pela vida. São velhos de juntas capengas,
“sem girar certo a dobradiça dos ofícios”, enfermos, ladrões, mendigos, toda
espécie imaginável de Lúmpen magotes de moleques, candidatos a trombadinhas,
um raro descendente que consome o resto de herança, em suma, o “povinho
alastrado pelo brasil”, aqueles que sabem, sem disfarces, nem coloridos
televisivos, que aprender a viver é acostumar-se com as perdas. Pois “o fim da
gente começa lá no começo”.
O livro "as visitas que hoje estamos" é imperdível.
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