terça-feira, 19 de janeiro de 2016

Aprendi com você

a deixar o cabelo crescer
cobrindo
os ombros em sombra
mas nunca te contei

um segredo de amizade
contido
por conta de pontas
antes mal retalhadas

no movimento que inspira
essa vontade de ser
um pouco mais igual
a você, me visto

se fôssemos homens,
irmãos, nosso feminino
um abrigo
com gola alta, partida

ao dobrar o filtro de café
e esperar a fumaça avisar
da poça preta no fundo
o futuro pode ser lido

não no líquido
mas no vapor
algo que você não disse
e soprou
a superfície do vidro
a alma, meu ouvido.

(Lúcia Leão)

até onde se sabe

de onde água foge
e nada viceja
acabando por só restar areia
eles chamam deserto

de uma casa modesta
pendurada no barranco
dizem que é barraco

aos felinos, nada gentis
a essa gente emplumada
que voa e ostenta bico
sempre denominam bicharada

árvores que resolvem
nascer juntinhas
levam nome de floresta

para registrar essas coisas
muito bem explicadinhas
eles traçam rabiscos
- palavras, é o nome que dão


(Ricardo Tollendal)

quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

oswaldianas de fim de noite

1
avariado de sintaxes
o equilíbrio

do corpo vivo

2

quem em teu abismo
senão a mortalha

limítrofe entre marte
e dioniso

3

músculo teso
no estado

a algaravia dos tecidos

4

coisa besta
cortar os beiços

com cerveja

5

de vestido grená
vizinhas são salutares

aos ouvidos

6

deixa a rigidez
para os cadáveres

praqui ó

a malemolência
sem entraves

7

imitação da rosa
fagocitose

8

quem morre antes
é defunto velho

9

era uma vez um peru bêbedo
que nem um gambá

maricota bem que alumbrava

10

toma um fósforo
acende teu cigarro

o resto é apenas
escrotidão e parnaso

(oswaldo martins)

antiode para as marias antonietas

as marias pretas com seus carrões
suas prisões
suas botas, fuzis e porrada
fizeram anna sofrer
silenciaram sua voz

mas anna viveu ali onde seu povo estava
à sombra distante do amor de amadeo

as botinas dos gendarmes paulistas
as botinas dos polícias comandos pelo conforto dos palácios
pelo conforto do superfaturamento dos transportes públicos
pelo conforto dos bem nascidos de helicópteros
sentam porrada e fuzis
silenciam as vozes ali bem ali
à sombra do amor dos estudantes
à sombra do amor que toma os cinemas
que toma os bondes
que toma as esquinas
que toma as escolas

as botinas dos rotas dos bopes
amam os estudantes
amam os professores
amam os manifestantes em geral
por isso sentam a pua
senta o cacete
como os pais desavisados castigavam seus filhos
com surras homéricas
e castigos ferazes

os bopes os rotas são filhos da puta
de filhos da puta maiores
e como filhos da putinha
agem truculentos como os filhos da candinha
agem às escondidas em suas redomas de paraíso fiscal
junto aos deuses junto aos preceitos sagrados do primeiro
o meu o meu o meu o meu
com o que carnificinam as estruturas da sociedade

estes senhores e oficiais do hades moderno
buscam calar a rua
buscam calar as inquietações
buscam calar geral
que não há outra possível para as ordens
para os costumes
senão o dissabor da pimenta e da borracha
senão o dissabor da navalha na carne
o dissabor das desclassificações sociais
puta bicha sapata traveco desocupado

vândalos das minhas neblinas frias!

balancem a pemba
balancem o saco
requebrem a bunda
siririquem o xibiu

que a ordem se treme toda quando
a nu é posta nua
quando lhes resta apenas a ação acanalhada

dos urubus de gravata

(oswaldo martins)

dois poemas de Forough Farrokhzad

The Captive

I am thinking that in a moment of neglect
I might fly from this silent prison,
laugh in the eyes of the man who is my jailer
and beside you begin life anew.

A Cativa

Estou achando que em um momento de negligência
Eu poderia voar desta prisão silenciosa,
rir nos olhos do homem que é meu carcereiro
e ao seu lado começar uma nova vida.

*

Call to Arms

Only you, O Iranian woman, have remained
In bonds of wretchedness, misfortune, and cruelty;
If you want these bonds broken,
Grasp the skirt of obstinacy.

Convocada

Só você, ó mulher iraniana, manteve-se
Em laços de miséria, infortúnio e crueldade;
Se você quer esses laços quebrados,
agarre a saia da obstinação.

(Forough Farrokhzad)

(Trans: Maryam Dilmaghani, September 2006, Montreal)


(trad. Fernanda Limão)

segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

Mulher Faladeira - Zeca Pagodinho e Chico Buarque

Duas indicações em forma de pilulinha cinematográfica

1

Ilha no Milharal, o belo filme de George Ovashvili, é uma das maiores obras que assisti nos últimos anos. A narrativa concisa, o silêncio, que só é quebrado quando se torna absolutamente necessário, o aproximam do conceito do poético; as interpretações seguras constroem o lirismo impecável do filme; a pouca ação, a noção ética do trabalho, que traduz um mundo que vai a morrer, colocam-no num ponto extremo da arte cinematográfica.

2

Táxi Teerã, do cineasta iraquiano Jafar Panahi, de quem assisti estupefato o belíssimo “isto não é um filme”, é uma divertida e sábia viagem a Teerã, esta terra que fica entre a mística desconhecida do mundo mais moderno entre os mundos árabes e a mítica ocidental de um lugar de ferocidades inexplicáveis. Ao rodar pela cidade dentro do táxi de Jafar, percebem-se os cheiros, as dicções das conversas e a dificuldade de se viver em uma sociedade fechada, sujeita aos diversos tipos humanos. A capacidade do diretor de fazer rir e meditar profundamente sobre o motivo – nem sempre edificante – do riso é uma das qualidades fortes do filme. Quem for assistir ao filme observe o vendedor de filmes proibidos, tipo impagável de todos os lugares do mundo.


(oswaldo martins)

pilulinha 45

Submissão, o livro de Michel Houllebecq, é um romance de um cinismo triste. Ao construir um narrador em primeira pessoa, professor universitário, se permite analisar os rumos a que chegaria a sociedade ocidental, europeia e francesa, em particular, caso houvesse uma islamização deste mundo. A questão central não se coloca, entretanto, numa simples rejeição de um padrão religioso, mas, sobretudo na capacidade de adaptação do homem aos meios sociais a que são “obrigados” a aderir.  

A adesão se torna tão ignóbil quanto cínica. Às minissaias e ao amor livre, pretenso e ainda nos seus restolhos, substituem-se os véus, as saias compridas e a poligamia masculina. Substituem as roupas que permitem ver as coxas, delinear as bundas, altear os seios, por um mercado de roupas íntimas fadado a vestir as esposas do neoconvertidos ao islã.

A reflexão de Houllebecq expõe ainda a incapacidade de produção dos meios universitários, voltados para questões que desligam o chamado intelectual, do mundo real, social ou político. Tanto se pode verificar este afastamento quanto maior é o nível de adesão e de submissão aos valores que, a partir de uma frente ampla encabeçada pelo partido da Fraternidade Mulçumana e acompanhada pelos partidos tradicionais do mundo político francês, par derrotar a iminente vitória de Lê Pen, se tornam moeda de troca.

Destruidor, o romance é obrigatório para os que se sentem perdidos ante a vertiginosa mudança que o mundo contemporâneo tem sofrido.

(oswaldo martins)


quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

Bordado de bandeiras e sacis dissonantes

Nos fim de tarde livres de trabalho, gosto mesmo é de escurecer a sala de casa, colocar uma boa música, uma dose generosa de uísque e me entregar ao espaço mágico que a quietude permite. Uma mesma música pode ser ouvida, nestas condições, milhares de vezes. Ouve-se o canto, a orquestração, a música, enfim. Num segundo momento, ouve-se apenas, por exemplo, o violão; noutros, os instrumentos de percussão. Se se ouvir uma dezena de vezes a mesma música as divisões ficam inumeráveis. Uma delícia.

Hoje foi o dia de ouvir, especificamente, duas músicas: uma música Moacyr Luz e Aldir Blanc. Cachaça, árvore e bandeira. Homenagem ao grande e esquecido Carlos Cachaça. Outra o saci de Guinga e Paulo César Pinheiro, na gravação primorosa de Guinga e Francis Hime. Piano, violão e vozes estupendas.

A primeira me leva para os tempos distantes de nós mesmos, cariocas ou adotados por essa cidade – como é o meu caso – tempo em que era possível vestir o rosa da aurora bordadeira! Se os sons trazem a sugestão de uma leve melancolia e a letra a confirma, há, entretanto, um país imaginário que ainda está para se construir, nas bases do que foi, mas que paradoxalmente houve apenas como anúncio do que virá a ser.

A segunda me leva também a tempos distantes, mais rurais, e traz uma estranheza muito peculiar. Uma temática rural que rompe com sua própria base harmônica, quando cria uma dissonância bastante acentuada e coloca este saci num entretempo que é ao mesmo tempo pertinente ao passado e ao presente. As vozes de Guinga e Francis Hime se casam, como se casam o violão de um e o piano de outro.


(oswaldo martins)

quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

flor

florir espécimes raros
se encanta aos olhos
o talhe do belo

melhor seria abrir-se
abismo de meia água
na casa a debruçar-se

sob o abismo da flor
inumada


(oswaldo martins)

Poesia espanhola 2

OVILLO

Como una cucaracha boca arriba, roza la voz las cosas,
tocándolas en vano.
Como madeja sucia de hilo negro, la voluntad baldía.
Soñar y deshacerse.

Y lejos el fantasma que condena. El látigo apagado.
Los naufragios.

(Ana Gorría)

BEMOL

Con los ojos clavados en el techo,
ignorar
              por qué pesan los párpados,
cuánto tiempo perdido
y cómo despertar de la parálisis.


(Ana Gorría)

Poesia espanhola

Expulsados del paraíso

Era necesario explorar los límites para sobrevivir.
Nadie dijo que la noche cotidiana

no permitiera emboscados en su orilla.
En sus labios nunca se deshizo la escarcha
porque tenía la espesura de los arroyos extranjeros.

El tiempo respira en mis frases cortas,
todo pasa por mí sin armadura.
La lengua hundida en los batiscafos,
hundida sin argumento,
codiciosa de luciérnagas
                              y de cartografías interiores.

La lengua no saciada de otros ojos extraños
se desposa con el miedo para ascender,
se disfraza para salir de la ficción en otra parte.

Remotas islas nos reciben todavía,
guardan nuestros deseos residuales.
El día feliz se desvanece en todas direcciones.
Volvemos a comer las manzanas más amargas del paraíso.

Nuestro pecado es una predisposición genética.


(Amalia Iglesias)

segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

fragmento

1

as espirais de fogo
como dardos vituperam

2

quem celebra poemas
planifica tempestades
no corpo

3

a língua do poema se reduz
ao arco mínimo das palavras

4

um corpo estranho baila entre
os entres que se dizem, e calca

5

corpo: o quem
dilema a frase

6

mais o espanto
do corpo de palavras
escrito à beira chão

7

todo abismo provém de ti
de resto, o imperativo do corpo

8

em teu umbigo a vírgula
é um comentário de acasos

9

no abdômen o traço mais escuro
abre em tinta branca quando sobe
até o sovaco

10

te enredo no pescoço
o poema afaga
entre terno e violento
o assalto do desejo


(oswaldo martins)

sábado, 2 de janeiro de 2016

Duas dicas de início de ano 2:

1ª - O clube – o belo e violento filme sobre a pedofilia na igreja católica, é mais um filme sobre o humano destruído e sem finalidade.


2º Chico – um artista brasileiro – as belas canções e a história particular do músico e escritor, que é também a história de cada um e de todos nós.

Duas dicas de início de ano

1ª Contos de Kolimá (volume 1) Varlam Chalámov – o livro traz uma descrição crua e pesada dos campo de trabalho forçados da Rússia stalinista.


2º K: relato de uma busca, de Bernardo Kucinski – o livro relata a busca de uma das desaparecidas do regime militar brasileiro, descrevendo os horrores e a crueldade vivenciados pela sociedade brasileira.