quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

tríptico para calder

 

calder I

 

a desimitação da árvore

 

florestas se fazem

folhas

 

não

 

estruturas mais lógicas

se põem

 

nos distratos dos olhos

planam em invertidos

caules

 

como se elas, as folhas,

voassem impulsionadas

pelo vento

 

 

calder II

 

é curioso:

 

as folhas quando caem

secam como os animais

 

tal morfologia entretanto

fazem-nas voar nos fios

da lucidez

 

calder III

 

o beijo de arthur

 

línguas se afagam

entre lógica e ilucidez

 

línguas entre lógica e

ilucidez se afagam

 

lógica e ilucidez entre

línguas se afagam

 

lógica e ilucidez afagam

se entre línguas

 

lógica e ilucidez se entre

afagam línguas

terça-feira, 29 de dezembro de 2020

candeia

Gerard Dou


um rasgo rompe

há cães entretanto

à luz do enquadramento

 

uma sombra emerge

sua força lúdica

explode a dilação

 

dos que nela

se fecham

 

(oswaldo martins)

 

quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

Leituras de 2020 , seleção de oswaldo martins

 

Dentre os mais de cem livros lidos durante esse ano, fazer uma seleção mínima, que contivesse apenas os dez livros de que mais gostei, sempre um critério subjetivo, foi uma tarefa ingrata. De toda forma vão aí, litados por leitura e releitura, divididos em prosa, verso, e livros esparsos, cujo nome, por falta de outro melhor, nomeei afins e paralelos e dizem respeito a teatro, teoria ou escritos de escritores sobre escritores, como verão:

 

Leituras prosa:

1 - A ordem do dia – Éric Vuillard;

2 - Uma noite com Sabrina Love – Pedro Mairal;

3 - A ocasião – Juan José Saer;

4 - UTZ – Bruce Chatwin;

5 - A honra perdida de Katharina Bulm – Heinrich Boll;

6 - Berlim Alexanderplatz – Alfred Doblin;

7 - Em má companhia – Vladimir Korolenko;

8 - Artigo 353 do Código Penal – Tanguy Viel;

9 - Minotauro – Benjamim Tammuz;

10 - Sonhos em tempo de guerra – Ngugi Wa Thiong’o;

11 - O que ela sussurra – Noemi Jaffe;

12 - O homem sem qualidades -Robert Musi;

13 - Sombrio Ermo Turvo – Veroniva Stigger;

14 - Tsugumi – Banana Yoshimoto;

15 - As benevolentes – Jonathan Littell.

 

Leituras poesias:

 

1 - Rio sem Margem – Zetho Cunha Gonçalves;

2 - Os fantasmas inquilinos – Daniel Jonas;

3 - Poesia Jorge Luis Borges;

4 - Primeiras poesias – Jorge Luis Borges;

5 - Arredores – Elesbão Ribeiro;

6 - O tempo adiado – Ingeborg Bachmann;

7 - Caminho de Marahu – Max Martins;

8- Os passos em volta – Herberto Helder;

9 - Mil sóis – Primo Levi;

10 - Alejandra Pizarnik – Poesia completa;

11 - Homo Sapiens Sexualis – Marcelo Frazão e Paulo Vilela

12 – Soda Cáustica Soda – Lúcio Autran.

 

Afins:

 

1 - O inominável atual – Roberto Calasso;

2 - El enigma de la luz – Cees Nooteboom;

3 - Sobre os escritores – Elias Canetti;

4 - Ensaios Recentes – J. M. Coetzee;

5 - O que é o Contemporâneo? E outros ensaios – Giorgio Agamben;

6 - Falo no Jardim – João Ângelo Oliva Neto;

7 - Literatura Europeia e Idade Média latina – Ernest Robert Curtius;

8 - Um mais além erótico: Sade – Octavio Paz;

9 - Aias – Sófocles;

10 - As bacantes – Eurípedes.

 

Releituras prosa:

 

1 - Com o diabo no corpo – Radiguet (francês)

2 - Ópera dos Mortos – Autran Dourado

3 - Mrs Dalloway – Vírgínia Woolf

4 - Os Ratos – Dyonélio Machado

5 - À espera dos bárbaros - J. M. Coetzee

6 – Judas – Amós Oz

7 - Urubus em círculos cada vez mais próximos – César Cardoso

8 - Juventude – Joseph Conrad

9 - No país das últimas coisas – Paul Auster

10- É isto um homem? -  Primo Levi

11 - Modesta proposta – Jonathan Swift

12 - Diário de um ano ruim – J. M. Coetzee

13 - Nada – Carmen Laforet

14 - O melro – Robet Musil

15 - Tônio Kroger – Thomas Man

 

Releituras poesia:

 

1 - Poesias -Murilo Mendes;

2 - Moldura da pele – Rute Gusmão;

3 - Algo:pretro – Jacques Roubaud;

4 - Cecília Meirelles – Obra completa;

5 – Poemas de Christian Morgenstern, na tradução de Sebastião Uchoa Leite;

6 – O livros de Cesário Verde – Cesário Verde;

7 – Mínima Lírica – Paulo Henqiques Britto;

8 - Alguma poesia – Carlos Drummond de Andrade;

9 - Poemas François Villon;

10 – As flores do mal – Baudelaire – na tradução de Júlio Castañon

 

terça-feira, 15 de dezembro de 2020

A leitura e o poema de Al Berto - febre


 

febre

 

sopra um vento pelo peito do mareante – vento

cinzento capaz de apagar os gestos que restam e

de limpar os passos incertos pelas ruas do cais

 

vento

um vento que te sacode as veias os tendões

faz vibrar os músculos e a mastreação – como a árvore

que se desprende das entranhas do mar

 

corre

corre um vento pelas fissuras da pele – vento

de pó enferrujado abrindo feridas nos animais vivos

colados à memória onde

uma serpente mergulhou no sangue e

desata a fulgurar

 

sopra um vento pelo peito do mareante

desperta a florescência pálida do plâncton – varre

a noite e lava as mãos dos condenados à morte

 

corre um vento

vento de febre – sismo de orquídeas que acalma

quando acendes a luz e abres as asas

vibras e

levantas voo

 

Al Berto


quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

Elogio da usina e de Sophia de Mello Breyner Andersen

 

O engenho banguê (o rolo compressor,

mais o monjolo, a moela da galinha,

e muitas moelas e moendas de poetas)

vai unicamente numa direção: ida.

Ele faz quando na ida, ou ao desfazer

em bagaço e caldo; ele faz o informe;

faz-desfaz na direção de moer a cana,

que aí deixa; e que de mel nos moldes

madura só, faz-se: no cristal que sabe,

o do mascavo, cego (de luz e corte).

 

2

 

Sophia vai de ida e de volta (e a usina);

ela desfaz-faz e faz-desfaz mais acima,

e usando apenas (sem turbinas, vácuos)

algarves de sol e mar por serpentinas.

Sophia faz-refaz, e subindo ao cristal,

em cristais (os dela, de luz marinha).

 

(João Cabral de Melo Neto – A educação pela pedra)

terça-feira, 8 de dezembro de 2020

O tempo - Denise Levertov

 

Os velhos degraus de madeira da porta da frente

onde eu estava sentada naquela manhã de outono

quando você veio descendo as escadas, acabando de acordar,

e minha alegria em contemplá-lo (emergindo

num dia dourado —

o orvalho ainda congelado)

puxando-me pelos meus pés para te dizer

o quanto eu te amava:

aqueles degraus de madeira

se foram agora, apodrecidos

trocados por granito,

duros, cinzentos e elegantes.

Os velhos degraus vivem

somente em mim:

meus pés e minhas coxas

se lembram deles, e minhas mãos

ainda sentem suas lascas.

 

Tudo o mais sobre e em torno daquela casa

traz lembranças dos outros — do casamento

de meu filho. E os degraus provocam a mesma coisa:

eu me lembro

de me sentar ali com minha amiga e seu filhinho que morreu,

ou será que foi o segundo, que vive e está bem?

E me sentar ali ‘na minha vida’,

frequentemente sozinha ou com meu marido.

Ainda assim naquele instante,

seu alegre, destemido, juvenil, ‘eu também te amo,’

a calma sem ser quebrada por nenhum passarinho,

nenhum grilo, folhas douradas

caindo, girando, em silêncio sem

qualquer brisa que as levassem

são o que ata

minha cabeça e meu corpo àquelas tábuas de madeira

que um dia foram cálidas, veneráveis, e agora

esperam, em um lugar qualquer, para ser queimadas.

 

Tradução de André Caramuru Aubert.

 

A TIME PAST

 

The old wooden steps to the front door

where I was sitting that fall morning

when you came downstairs, just awake,

and my joy at sight of you (emerging

into golden day —

the dew almost frost)

pulled me to my feet to tell you

how much I loved you:

those wooden steps

are gone now, decayed

replaced with granite,

hard, gray, and handsome.

The old steps live

only in me:

my feet and thighs

remember them, and my hands

still feel their splinters.

 

Everything else about and around that house

brings memories of others — of marriage

of my son. And the steps do too: I recall

sitting there with my friend and her little son who died,

or was it the second one who lives and thrives?

And sitting there ‘in my life,’ often, alone or with my husband.

Yet that one instant,

your cheerful, unafraid, youthful, ‘I love you too,’

the quiet broken by no bird, no cricket, gold leaves

spinning in silence down without

any breeze to blow them,

is what twines itself

in my head and body across those slabs of wood

that were warm, ancient, and now

wait somewhere to be burnt.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

retrato 1

 os olhos azuis

desfrutam


enquanto pousa


a fugidia amiga

com quem certa vez


trepou 


Kama Sywor Kamanda - Congo

Eu venho de longe, tendo atravessado o país,

raças, continentes e culturas.

Derramei a minha alma, lágrimas, suor,

e o sofrimento das gerações.

Eu amei, odiei, mas nunca trai.

Do príncipe ao rei, o profeta do mago.

Eu conheci guerras,

experimentei o nascimento de desertos

e os reinos dos faraós.

Meu sangue é feito de mares do mundo.

Eu vi lagos, rios de nascimento e nações.

Sou um viajante do infinito,

o mensageiro do invisível

e o poeta de fontes interiores.


(Kama Sywor Kamanda – escritor congolês)

Vatapá


 

quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

padrão

o esforço é grande e o homem é pequeno.

(fernando pessoa – mensagem)

 

nunca juízo algum alto e profundo, 

nem cítara sonora, ou vivo engenho, 

te dê por isso fama nem memória

 

(camões – os lusíadas)

 

1

janelas em precoce alinhamento

a moça que de bruços se olha

ao espelho cego cava mais funda

na imagem do apaziguamento nulo

 

a sucessão dos olhos que suspensos

deixam cair no vazio a rua ou mesmo

os grãos de asfalto ao fulgir do tempo

por soltarem aos poucos os reflexos

 

do que se move imperceptível e seca

a sensibilidade das mãos obreiras

a trançar validas essas cantigas

de amigo enquanto a barcarola

 

singra pelos intangíveis mares

e toda essa gente acostada

através das ruas do novo restelo

da janela se olha em desespero

 

(oswaldo martins)

domingo, 29 de novembro de 2020

degas

 

o delírio

toca

a leveza

 

enquanto o pincel

se nega

 

irrealista

à nudez

da pintura

 

(oswaldo martins)

domingo, 22 de novembro de 2020

Hardcore - Poesia peruana

 HARDCORE

                           Para ti, loco

Desde aqui puedo decir:

Estoy lamiendo tus nalgas com desenfreno


Y las tias, puaj, y la muchachas, puaj,

Y nadie sabe qué sentir


Entonces te volteo

Y continúo

Lamiendo

Con desenfreno.

(ROCÍO SILVA SANTISTEVAN)


HARDCORE

                  Para  ti, maluco


Desde aqui posso dizer:

Estou lambendo tuas nádegas com desespero.


E as tias, bah!,  e as moças, bah!,

E ninguém sabe qual sentir


Então te volteio

E continuo

Lambendo

Desenfreadamente .

(tradução Antonio Miranda)


sexta-feira, 20 de novembro de 2020

Perene viagem

Opaco objeto

Luz em Sombra 

Distorce

 

Empoeirados enganos

Na escura câmara  

Esconde

 

Relevo do ego

Sob o buril da dor

Sucumbe

 

Tempo e desvelo

A densa substância

Esvanece

 

Feixe resplandecente

Pelas frestas

Irrompe

 

Passo a passo

Até que a desilusão

Finde

(Roberta Tanabe)

Leitura de poemas de Lúcia Leão


 

quarta-feira, 18 de novembro de 2020

poros

para dora sampaio


delícias 

fremem sutilezas


desse estar além 

e não


os sobejos

de uma casa


que se abandona 

ao vento


irremido da elocução

(oswaldo martins)

terça-feira, 17 de novembro de 2020

Dois poemas de Dora Sampaio

 

este nome de mundo & de

céu

nasce na marinharia

na sua rede de histórias

e espelhos

 

todos os

seus amantes

sabem dessa

mudável língua

de fogo

que se prepara a cada dia

 

poros e

pez

se alimentando

de um

desespero

muscular

caldoso

e completo

 

*

 

via negativa

 

professo a antilogia

como quem escreve

na parede

observando parágrafos

e outras pausas de fôlego

abstrato e natural

 

a linha branca que

sustenta a narrativa

sobe um pouco

desce um pouco

o laivo

se expande

aqui e ali

 

os espaços são

claros

desiguais

e pintam

de sons provisórios

o cão que

atravessa a ponte

 

(Dora Sampaio)

quinta-feira, 12 de novembro de 2020

Sá de Miranda - Esparsa aos tempos

Não vejo o rosto a ninguém

cuidais que são, e não são

homens que não vão, nem vêm,

parece que avante vão

entre o doente e o são

menta cad'hora a espia - 

no meio do clar dia,

andais entre o lobo e o cão.

quarta-feira, 11 de novembro de 2020

Memória - poesia espanhola contemporânea

 

Essa velha dor de esgotos

presa em uma célula de escape.

 

As torres e pássaros legítimos,

tremor antigo de arquitetura

para sonhar com pedras tombadas…

E esconder os três salões ar, já ocupados.

 

Ou três vértebras com luz insuficiente

sustentando os quadris muito curtos.

 

(María Ángeles Pérez López – Trad. Floriano Martins)

segunda-feira, 9 de novembro de 2020

I contenuti / Los contenidos STEFANO DAL BIANCO

I contenuti


Quando si contrappone una luce a un’altra luce,

e per esempio si costringe una lampada

a illuminare una finestra da una scrivania,

o quando si è tentati di distinguere

dal buio il nero,

come nel caso di un quadro e una parete

in una camera notturna,

non si sa mai chi vince,

ma si capisce che sono fratelli

il grande e il piccolo

il contenuto e il contenitore.

E quando capita

vorremmo essere fieri,

di questa casa,

di tutta questa luce.


Los contenidos

Cuando se contrapone una luz a otra luz,

y, por ejemplo, se obliga a una lámpara

a iluminar una ventana desde un escritorio,

cuando se intenta distinguir

en la penumbra el negro,

como el caso de un cuadro en la pared

de un cuarto a oscuras,

no se sabe quién triunfa,

aunque se entiende que ambos son hermanos,

el grande y el pequeño,

el continente y contenido.

Y si esto pasa

quisiéramos sentirnos orgullosos

de esta casa,

de toda esta luz.


quarta-feira, 28 de outubro de 2020

CARIBE Elie Stephenson - poeta da Guiana Francesa


Aquarelas de ilhas

colunatas de montanhas ruidosas

à

ao chamado de sua pele

sol vanguarda                                                       

rios

de açúcar de cana

de sangue.

Abençoaremos

a fruta-pão o inhame e a banana

nas festas populares

e a dança dos terreiros...

Caribe... eu não sei

o sabor de seu suor

mas eu ouço

a fome que me anima.

 

(Elie Stephenson)


terça-feira, 27 de outubro de 2020

Fernando Cazón Vera - Poesia equatoriana

 

MANICÔMIO 1962

 

Os loucos se diplomaram:

de Napoleão o primeiro,

a mais bela de Ofélia,

e o orate maior

chegou a ser General

depois de vencer os seus moinhos.

 

O mais humilde formou-se em cachorro.

 

Outro chegou a ser nuvem

para poder beijar a girafa.         

 

Mas, coisa estranha,

mesmo sendo possível,

ninguém quis ser Deus.

 

*

 

MANICOMIO 1962

 

Los locos se graduaron:

de Napoleón el uno,

la más bella de Ofélia

y el orate mayor

llegó a ser General

después de derrotar a sus molinos.

 

El más humilde se graduó de perro.


Outro llegó a ser nube

para poder besar a la jirafa.

 

Pero, cosa rara,

habiéndolo podido,

nadie quiso ser Dios.

 

(Fernando Cazón Vera - Tradução de Antonio Miranda)

Antonico, Ismael Silva


 

segunda-feira, 26 de outubro de 2020

Dolores Veintimilla de Galindo (1821-1857) Poeta equatoriana

Menos bela que você, Carmela minha,

mando esta rosa, enfeite para tua cabeleira;

no prado eu mesmo a colhera

e com carinho de alma ainda a envio.

Quando seca e murcha morrer um dia

não a atires, por Deus, à ribeira

guarda-a como lembrança lisonjeira

da doce amizade que nos unia.

 

(Dolores Veintimilla de Galindo)


domingo, 25 de outubro de 2020

FLA-FLUS DA LITERATURA – GRANDES CLÁSSICOS: 

PATATIVA DO ASSARÉ 




 

sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Maria Pawlikowska-Jasnorzewska

A linhagem da bruxa

 

A todos juro amor eterno:

pardas campânulas da loucura, beladona tresmalhada,

coruja, lua nova, sapo, bufo-real e hiena;

tabaco de cor deslavada

e sombria cicuta que o sabugueiro armazena.

Eu, bruxa sem vassoura,

de coração chamuscado,

saudosa de um pobre demo afastado,

fitando o mundo como uma bola de cristal,

amo-te e acolho-te no meu coração leal,

linhagem de bruxa e de maga,

suspeita, desconfiada, amada...


A fogueira

Agarraste-me pela tempestiva cabeleira,

meu mestre do fogo!

Com os teus braços que nem cordas

amarraste ao coração uma fogueira.

Desforram-se as magias e os feitiços!

Ah, não há quem estenda a mão!

O dia ardeu cedendo à noite de carvão,

por entre faíscas e bulícios.

 

Trad. Teresa Fernandes Swiatkiewicz 

quinta-feira, 22 de outubro de 2020

Yolany Martínez - poeta hondurenha

 

Bocejar.

meu corpo estrangula

a cama ainda feita, sem pecado

 

Tudo em seu lugar

menos você

 

Horas perdidas

juntos

desde minha calcinha

até meus pressupostos

 

Uma parede ameaça

A garrafa emudece, derramada pelo canto

segunda-feira, 19 de outubro de 2020

mulheres e sertão

 1

 

as casas cuja densidade

cegou os olhos de orfeu

cavam na desdita o céu

opaco a vagar cidades

 

seus percalços já distam

peri-canto das amadas

surdas orfeu, o danado

açor dos fados cisma

 

abutre sobre o corpo

sua dor ao bico leva

sobe o risco escalavrado

 

à queda em dissabor

do canto cala ceva

de eurídice a ossada

 

(oswaldo martins)

SONETOS A ORFEU (II.12)

Anseia pela mudança. Celebra a chama,

ainda que algo do novo se perca na transformação;

o gênio, mestre dos misteres terrestres, só ama,

na dança, o ponto de mutação.

 

Já é pedra quem estagnado se mantém;

supõe-se protegido quando em cinza se disfarça.

Aguarda: mais duro que o ferro é o aço quem vem do além.

Cuidado - o martelo ausente ameaça!

 

Quem como fonte flui, vem à luz pela percepção;

ela o conduz, feliz, pela criação serenada

que, às vezes, nasce no fim e finda no nascimento.

 

Todo tempo feliz é filho ou neto de separação,

que, pasmos, percorrem. E Dafne, transformada

em loureiro, deseja que te transformes em vento.

 

(RAINER MARIA RILKE - Tradução: Karlos Rischbieter e Paulo Garfunkel)

quinta-feira, 8 de outubro de 2020

O poema de Lawrence Ferlinghetti

 

1

 

Nas melhores cenas de Goya parece que vemos
                                                     as pessoas do mundo
         no exato momento em que
                          pela primeira vez elas ganharam o título
                                                        de ‘humanidade sofredora’

                         Tais pessoas se contorcem na página
                                                       num verdadeiro acesso
                                                                      de adversidade
         Amontoadas
                           gemendo com bebês e baionetas
                                             sob um céu de cimento
        pela paisagem abstrata de árvores bombardeadas
                        estátuas decaídas asas bicos de morcegos
                                                            patíbulos escorregadios
                                             cadáveres galos carnívoros
        monstros finais berrantes todos
                          da
                                        ‘imaginação do desastre’
         tão danados de reais
                                         que até parece que ainda existem
         E existem mesmo
                           Só mudou a paisagem

Todos continuam em fila nas estradas que estão
         infestadas de legionários
         falsos moinhos de vento e grandes galos dementes

E são aquelas mesmas pessoas
                                              apenas mais distantes de casa
        e em estradonas de cinquenta pistas
                         num continente de concreto
                                      demarcado por pencas de cartazes
        que ilustram ilusões imbecis de felicidade
A cena mostra menos carretas para a forca.

 

(Lawrence Ferlinghetti trad. Leonardo Fróes)