sexta-feira, 22 de maio de 2020

leitãozinho de domingo


o terno algodão te cobre o corpo
desanda em amarrotados gestos
o mármore e o esgar do tortuoso
memento fixam a linha e o resto

em teu queixo baba com sutil
descaso – a batata de véspera
preparou-se com denodo o débil
recheio dos acepipes da ópera

bufa dos nutridos familiares
as oferenda dos nenúfares
à roda das quais o belo porco

embebido com a fuça de borco
e a maçã a entubar lhe a boca
ri da justa sega dos azares


(oswaldo martins)


A negra gorda indo às compras


Comprar no inverno londrino
é um porre para uma mulher negra
indo de loja em loja
em busca de roupas confortáveis
e tão frio lá fora

Observa os manequins gelados e magricelos
olhado para ela sorrindo
e os lindos rostos das vendedoras
trocando rápidos olhares
achando que ela não percebe

O senhor está injuriado
nada macio, reluzente e volumoso
para fluir a luz do sol ventosa
quando ela passa

A negra gorda xinga em Suahili/Iorubá
e línguas nacionais sob sua arfada
toda essa pernada

A negra gorda chega à conclusão
que quando se trata de moda
a escolha é esguia
nada além do 42.

(Grace Nichols)

quarta-feira, 20 de maio de 2020

nevermore


além da esquina de casa
trincam dentuças

os estultos cães babam
raiva

estrondeiam desertos
bem ali no meio

na testa do menino
que desamanhece

para o nunca mais

(oswaldo martins)

baudelaire


nos jardins versailhes
usávamos óculos escuros

ao cruzarmos olhares

nem a cor jocosa das meias
nem o micro vestido

distraiu-nos do objeto
à mão


(oswaldo martins)

segunda-feira, 18 de maio de 2020

O QUE MAIS DÓI


O que mais dói não é sofrer saudade
Do amor querido que se encontra ausente
Nem a lembrança que o coração sente
Dos belos sonhos da primeira idade.

Não é também a dura crueldade
Do falso amigo, quando engana a gente,
Nem os martírios de uma dor latente,
Quando a moléstia o nosso corpo invade.

O que mais dói e o peito nos oprime,
E nos revolta mais que o próprio crime,
Não é perder da posição um grau.

É ver os votos de um país inteiro,
Desde o praciano ao camponês roceiro,
Pra eleger um presidente mau.

(PATATIVA DO ASSARÉ)

Antologia 39


quinta-feira, 14 de maio de 2020

as sintaxes


fecharam-se nas sintaxes das paredes
os cavos os ecos sabem ao nascer do
lodo a gosmas-gozo a noites-sêmen

um paralelepípedo em si mesmo crosta
antes da pedra o desafio das linhas nega
o talvez anverso com que se faz língua

de dioniso os perplexos deuses dançam
nas setas das hetairas do balacobaco
enquanto perfuram-na mantras-manha

cria um mundo-nada cujas palavras
e o deslocamento dos sentidos grifa
um pé de serra dançados emblemas

e velhas paredes


(oswaldo martins)

sábado, 2 de maio de 2020

Yosano Akiko

      aqui agora
                paro    para recordar
                       da minha paixão
           sem medo da escuridão
          eu vivi      como um cego

                            *

                            flor de camélia
           também a flor de ameixa
                     ambas são brancas
            mas     meu pecado vejo
              só    na cor do pêssego

                                     *

                             mamilos duros
             revelam-se os mistérios
                            tão docemente
                uma flor    desabrocha
               vem tingida de carmim

   
                                   *

                            ontem   à noite
              sob a luz    de uma vela
                            longos poemas
            palavras    que trocamos
          foram prolixos     demais?


sexta-feira, 1 de maio de 2020

Fotografia

oswaldo martins



Fotografia

Uma das mais belas coisas a se fazer, quando se gosta de fotografia, está em tirar instantâneos das cidades com que o fotógrafo se identifica. Dela retira certos ângulos, certos registros humanos, razão de ser das cidades. As pessoas ocupam as ruas e, anônimas, desfilam por elas, cônscias ou inscientes de que ocupam um lugar que é caro à paisagem com que se está acostumado. As cidades vazias também possuem um espaço de recolha para aqueles que a observam para delas extrair uma possibilidade que muitos não veem, seja pela pressa do dia a dia, seja pela falta de costume de olhar, desacostumado que se está com a própria vida. O foco buscado da cidade vazia não é o mesmo que se tem quando a cidade está abandonada das pessoas, por obrigação da preservação pública. Uma cidade vazia é como um vidro estilhaçado.

Um vidro estilhaçado não revela a razão de ser do copo, mas a memória do copo age naqueles cacos. Uma cidade é antes de qualquer coisa essa memória, que se reconstitui, quando por ela se anda com o intuito de apreendê-la; não importa se é um pedaço de um vitral que caiu e se quebrou, se um naco de azulejo abandonado numa esquina, uma carroça que passeia por ela, desafiando o poder dos possantes carros, numa avenida como a Brasil. São flagrantes essas belezas, ao serem capturadas pela lente de uma máquina; quase como uma flor, espalham sua fragrância eternizada no clique de uma fotografia. Essa flor, passageira como em um carpe diem, se revela como pessoas que circulam – águas dos rios em que não se banha duas vezes – pelas ruas buscando esse ócio de olhar atento para o mínimo movimento, para a mínima possibilidade de olhares que se cruzam como clarão e depois noite.

Para eternizar esse clarão necessita-se da multidão e da possibilidade de abraçá-la, beijá-la, beber no mesmo copo a mesma cerveja, fumar as vinte de um cigarrinho que passou de mão em mão; para eternizar esse clarão necessita-se da possibilidade da paixão, passageira ou não, enfim de uma cidade plena de suas possibilidades.

Assusta uma cidade vazia. Esse monstro cuja razão de ser são as pessoas que a habitam, que a humanizam e constroem e destroem relações, como se destroem construções feitas de tijolo e cimento, do suor dos que a habitam – insista-se – anônimos, mas plenos de possibilidades humanas, plenos para ver o clarão com que a vida se justifica e se distribui em igual medida para todos.

Uma fotografia é como uma greve que paralisa a cidade e a guarda gloriosa.

(oswaldo martins)