quinta-feira, 7 de novembro de 2019

No blog do Lúcio Autran

Resenha no blog do Lúcio Autran

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MANTO EMINENTE – Oswaldo Martins e Arthur Bispo do Rosário – os aedos desencantadores das palavras – ou “os planos da arte”.

“a voz na falha das mãos
os lenho-laços
os fios

os planos da arte”
sianinha – Oswaldo Martins
Ao menos para mim, é muito difícil fazer da loucura objeto da poesia, aliás, mais do que isso, difícil falar da loucura, poeticamente ou não. Tudo nesse assunto é estigma, até porque quem vivenciou alguma forma de... e aqui o problema se evidencia, como chamar a “loucura”? Doença mental, alienação? E seu sujeito, doido? Ou, carinhosamente, que por vezes é possível, principalmente nas lembranças mais remotas da infância, doidinho?
Melhor nomeá-lo assim do que apedrejá-lo ou dele rir, ou cuspir-lhe a face transtornada, pois a loucura nada tem de lírica, muito menos de divertida, ao contrário, ela dói, rasga de angústia seu portador e os que com ele convivem, pois a sociedade, se melhorou no trato com ele, foi muito pouco, e ainda está presente em nós, navega no nosso preconceito, a “Nau dos Insensatos”, o escondê-lo na vergonha dos segredos da família, medo talvez de que sobre nós recaia o fatal estigma, como certa vez arrisquei: “No fundo das grutas, esperando adormecerem / os filhos e os vizinhos, para saírem pelos fundos. / Como a nudez, é melhor escondê-los nas serras / de Barbacena, ouro podre do limite das grutas”.
É o medo de um estigma infelizmente ainda presente, pois quem, como dizia e as palavras me fizeram desviar, conviveu com alguma forma de loucura sabe como é tênue a membrana que separa a doença de uma suposta, e apenas suposta, “normalidade”, citoplasma mental.
Mas toda sinonímia é precária, senão impossível. Qual a abordagem possível da loucura, se mesmo a abordagem “científica”, médica, ainda padece de irremediáveis precariedade e desconhecimento, salvo, aberta e honestamente, confessar esses mesmos desconhecimento e precariedade?
Talvez a poesia seja a única forma possível, pois permite a desconstrução, permite a (in) significação, o (não)significado, o desprezo ao significante, a partir do estigma / enigma onde o encarceram.
Como reconstruir a linguagem dos loucos? E o chamemos assim, por estranho que pareça, pois ainda acho “louco” a palavra de menor força estigmatizante. Como nos aproximar de sua sintaxe, que sintaxe é essa e como se recria no nada?
O poeta nos explica o “visgo desse silêncio”:
“palavras de avaras possibilidades e desconexas / patas a roer o mundo que Arthur quis em direta / descomunhão de uma sintaxe visgo do silêncio” (pg 56 – barbante).
Como fica claro, Oswaldo, poeta na acepção plena do termo, teve a percepção que talvez a melhor forma fosse a de apropriar-se dessa mesma linguagem, dessa mesma sintaxe, e falar da perspectiva, não do objeto / tema de sua poesia, nem de seu discurso, de resto tão impossível quanto inútil, mas dos seus paradoxos, valendo-se de uma construção / desconstrução / reconstrução / desconstrução, por meio de um artista de múltiplas e facetadas linguagens, exatamente como a sintaxe da loucura: de Arthur Bispo do Rosário falo. Mas quem foi Bispo?
Era um artista plástico? Reduzi-lo a isso talvez seja pouco mais do que uma pobreza conceitual indigente.
Poeta? Era também, porque usou a palavra com meio de não-dizer, em frases e construções aparentemente desconexas.
Gênio? Não gosto de chamá-lo gênio, não porque não o fosse, no cenário das artes plásticas brasileiras - tão pobrinho, não nos enganemos quanto a isso, inventando gênios - é um dos poucos a merecer tal definição, o problema é que, aqui, o gênio vem, mais uma vez, como compensação do estigma, era louco, “mas” era um gênio, sempre o “mas”, sempre a loucura colocando-se antes da linguagem, enfatizada como tentativa de dar a essa linguagem uma lógica que nunca teve, nem nunca pretendeu ter, pois inexistente.
Tenho por hábito ler qualquer livro, mesmo de poesias, página após página, passo a passo, talvez porque seja esse o roteiro que o autor quis dar, ao menos eu, quando escrevo, o faço pensando como gostaria que o leitor se aproximasse e apreendesse o livro; talvez seja conservadorismo, mesmo. Todavia, se a leitura caminhou por uma ordem lógica, escrever sobre “Manto”, envolveu um necessário (mas involuntário) ir e vir, uma ordem / desordem, uma desconstrução / reconstrução que assim o exigiu.
Oswaldo, e isso é ótimo, não tenta “explicar” a personagem, nem vitimizá-la, esconjuro, antes, se veste dela, (re)“nasce” nela com tudo que traz de enigma: “a sombra se estende ao longo do poste / do cão do eu sob a precariedade do sol” (Não por acaso chamada “nascimento 1” – pg 15), conseguindo o mais difícil, por perigoso, falar da loucura a partir da perspectiva do sujeito, evitando o paradoxo do discurso, e assim o enfatizando, criando novos e incessantes paradoxos.
Esse mergulho no universo de Bispo se faz a partir dos fatos e das palavras usadas pelo próprio (pelos próprios?) artista, pois engana-se quem vê Rosário como apenas um artista plástico, antes, era um artista de múltiplas linguagens, que desfia (literalmente) imagem e palavra num longo e doloroso e lúdico rosário, e Oswaldo, poeta que é, faz uso da palavra para apreender a forma de sua arte, e o conteúdo da mente de Arthur.
Não, não há delicadeza na loucura, o louco, como já disse acima, e talvez repita, nada tem de “engraçado”, de lirismo babaca, mas antes tem na alma “o dente podre incita dor voejam mosquitos / amarelos que suas asas de cordel noticiam” (“da cidade 2” - pg 18), que, como se acaba de ver, Oswaldo apreende (e veste) em sua essência, desprezando artigos, preposições, adereços, que sua poesia é crua como a angústia, a angústia de quem jamais foi entendido, salvo quando pode sofrer livremente, novo paradoxo, preso num manicômio, “a vida livre dos homens tortos” (idem - pg 18).
A poesia de Oswaldo, acompanhando o desenho da poesia plástica de Bispo, desconstrói a própria linguagem, para depois tentar reconstruí-la, como imagino que tenha sido na arte que Arthur recompôs alguma linguagem / ordem possível: “os deuses // empilham em mundos os objetos / sujeitos à desordem // constroem construtos exatos / tão à das mãos // que alfabetizam os nomes / das coisas que se perderam” (“hospício” – pg 23).
Com constante tecer / destecer (e a referência à Odisseia é proposital, pois quem será o aedo de Bispo?) Oswaldo nos faz acompanhar, tanta vez dolorosamente, a incessante busca por alguma referência exterior à própria loucura, a salvação da personagem será, como não o ser? já que o mundo só existe partir de nós mesmos: “a salvação do mundo / para sempre embriagada // de mim” (Sem Título, pg 31). Bispo / Oswaldo salvando-se, a todos nos salva pela estética única e pela dicção personalíssima.
Mas nada é estável ou linear - nem poderia ser, passe a obviedade – o que lentamente se (re) construía, tecia, destece-se, pois a arte de Oswaldo / Bispo é feita da tecitura dos tecidos possíveis, melhor diria, dos panos e das linhas desprezadas (de sua vida), e desses fiapos dos panos decompostos recompõe no tear possível da palavra e da forma plástica, nos estandartes que nos fazem fluir no prazer estético a angústia de existir como um pano roto e inútil, que somos. E o que era tentativa de reconstrução, frágil tentativa, se desfiará novamente, pois não existimos fora da circularidade de nós mesmos, com dor e urgência(s): “a pega desafio fios contra fio / as caixas a urge de urgências / os lençóis-agulha e ponteiras / nomes qs entre um além e ar” (“arrastão” - pg 49).
Oswaldo vai, como Bispo, recompondo na poesia, na linguagem, alguma lógica possível, embora improvável, e há momentos em que a linguagem / linhas de ambos se entrecruzam, intercalando-se, entretecendo-se, o poeta se apropriando da língua / linha do artista, nos mostrando, ou mais precisamente, nos fazendo vivenciar as tentativas de reconstrução desesperadas de Arthur: “fianda os calos da mão agulha os pensamentos / afina a acordeona toca o improvável das artes”.
Entretanto, como dito, nada é linear ou tranquilo nesse processo de reconstrução da alma e da língua, e o que parecia construção constante, constância que emprestava uma impossível lógica, subitamente se desconstrói, e a poesia oswaldiana a tudo destece em “aforismos” (pgs. 60 e seguintes), e, a meu ver, embora tentador, se enganará brutalmente quem vir aqui algum surrealismo, o que temos é tão somente ruína de uma lógica arduamente tentada, mas impossível: “cavalinhos armados na praça / servem de cadeira para o espanto” / (pg 62) pois o surrealismo, na maior parte das vezes, é um falso delírio, racionalização afetada para iludir incautos, poucos foram os surrealistas que realmente libertaram os demônios do inconsciente, o que só é possível (rara altitude) quando o “pincel não só pinta quando / desconstrói linhas para o pensamento” (pg 64).
A lucidez desfez-se em cacos de vidro, cacos que são mais importantes do que os muros que nos cercam, são eles nossa construção refeita cacos: “cacos de vidro no fundo de minha casa / são para construir muros” - (pg 68).
Mas, com o passar das palavras dos poemas de Manto (uma espécie de rio de Heráclito borgeano) ainda temos uma esperança de que a cela que nos aprisiona será o estúdio que nos libertará, e Oswaldo / Bispo nos acena no capítulo (nada é, nada pode ser acaso no livro de Oswaldo): “aprendiz de aventuras o torna / cela e estúdio” (monóstico – pg. 95).
Ainda esperamos recompor / reconstruir em nós o Universo (o verso), e assim Oswaldo / Bispo novamente tentam recompor a lógica impossível (não se reconstrói o que fora há muito perdido), e destacam um capítulo do livro para fazê-lo, elaborando uma “teoria das partes do universo”, que, num quase quasar, num quase apocalipse, nos recomporá numa outra nova ordem cósmica e poética: “o caco da obra o todo da parte quadra / faz com que cesse este universo findo” (“teoria três das partes do universo” – pg. 113).
Nessa recomposição minimamente possível, reconstrói-se também o mundo passado (mais feliz? quem o saberá?), recompõe-se a vida no passado precário do internado, nos sonhos e lembranças carregados de erotismo. E Oswaldo não se furta a vivenciar os desejos de Arthur, as reminiscências femininas refeitas numa “boneca de pano”, cujas medidas ele enuncia as preferências: “bunda / a boa tem que ser sempre maior / um bocadinho que o peito”.
Contudo, bonecas de pano, como os panos e as palavras, serão sempre insuficientes para recompor os desejos reprimidos numa cela, e Bispo tem que recorrer à esfacelada memória de quem vive sob o cárcere de um hospício, tem que recompor, entre palavra e fios e panos as imagens perdidas daquelas que já se foram, talvez mortas, ao menos nas lembranças da pele, tem que manusear uma “fotografia de cadáveres” onde reencontrará os corpos em decomposição no tempo da memória: “ tripa buceta bíceps (...) glúteo mão trapézio” como se uma “lição de anatomia” reconstruísse o amor possível e a lógica das “partes do universo”.
E talvez você já esteja perguntando que leitura essa a minha, que leitor eu, que se anuncia reconstrução possível e ele próprio se desconstrói?
Nenhuma estranheza, amigo, assim é o livro de Oswaldo, essa a sua maestria, a leitura, se caminhou na lógica precária das páginas numeradas, se desfaz ao escrever sobre ela, como se um terceiro vértice na geometria Bispo / Oswaldo se reconstruísse num triângulo onde o leitor é o vértice faltante, essa a única forma de tentar falar sobre esse livro, no limite, inquietante, só assim poderemos apreendê-lo como ele nos apreendeu, tecendo e destecendo da / na nossa memória os ecos que ficaram tatuados na alma, com a agulha com que, penélopes, tedestecemos na obra de Arthur um manto de rara nobreza, eminente, recompondo sua moradia universal (a teoria é sobre as partes do Universo) na cela de um estúdio: “eis os panos os grafites a memória / eis os emblemas da torta moradia” (pg 123).
Eis a poesia, o convite de Oswaldo: “pegue desse fio leitor, e tente retecer a sua própria (im)possibilidade no caos”.
Assim, me foi impossível, logo eu, de prosa em regra tão racional, cuidadosa, não me perder na poesia de “manto”, e você mesmo leitor, após esse livro raro, recomponha seu próprio universo nas celas de seu cotidiano, “por ordem de palavras e reta (...)azul a arte como se faz retalhar o mundo e surgir outro / em seu lugar” (“estandarte da sensatez” – pg 127).
Essa a única (e pessoal) possibilidade de sensatez que cada leitor terá que buscar reconstruindo-se e reconstruindo a obra de Bispo na poesia de Oswaldo, só com esse desprendimento você terá entendido quem é, como perguntei acima, o aedo – Homero e Orfeu se alternando - de Arthur Bispo do Rosário:
Oswaldo Martins, é seu nome

...
UM POSFÁCIO A UM POSFÁCIO:
Como disse no corpo de minha leitura, “Manto” é um livro, mais do que outros, pois todos, de certa maneira o são, que demanda a formação de um triângulo irregular - e me é tentador falar numa cabala de triangular ordenação, mas evito, e me calo: Bispo no vértice mais alto, Oswaldo, num vértice uma pouco acima daquele a quem dirigirá o convite para compor essa figura hermética que nos aprisiona numa “cela” de linhas falsamente retas, uma geometria dos trapos que nos libertará numa reconstrução de nós mesmos, mas que somente será possível se reduzida à própria e pessoal perspectiva do leitor.
Assim, foi feliz o autor em colocar a leitura, de resto, como sempre excepcional, de Silviano Santiago, mestre de todos nós, como posfácio, sucedendo à nossa própria leitura, pois seria introduzir, a partir da pena gabaritada de um mestre da crítica literária e romancista de primeira linha, introduzindo um quarto – e talvez condutor – ângulo, impossibilitando ao leitor a fruição absoluta desse livro que merece ser conhecido, tanto por aqueles admiram a obra de Arthur Bispo do Rosário ou a poesia de Oswaldo Martins, quanto por quem quer que seja que ame a arte e boa poesia.

Resende, outubro / novembro de 2019

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