quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

O erótico como formulação da mimesis


Se o erótico emula as relações da natureza; na sua porção escrita, literária, o erotismo se transveste de palavras e não de atos, daí que tomar o texto erótico como formulação da excitação, permissiva do ato em si, solitário ou não, só pode acontecer quando o texto se torna a emulação dos desejos postos à flor da pele, ou seja, quando o texto solapa sua qualidade literária e se propõe não intermediado pela reflexão, mas pelos sentidos.

O texto intermediado pelos sentidos acontece nas flores já sabidas que João Cabral, em o Ferrageiro de Carmona, desconsidera como poesia, isto é, são textos que se escrevem com o mais tênue dos sentidos cotidianos. O texto erótico que se fixa na qualidade da trepada e a incentiva, que se cola nos hábitos das civilizações humanas se desautoriza como texto, como reflexão sobre o estar no mundo. É apenas reflexo animal do existir. Por exemplo, ler Aretino ou Sade querendo usufruir ou mesmo do que eles despertam nos sentidos o incentivo ao tesão, é não ler Aretino ou Sade.

O chamado inventor da poesia pornográfica está preso aos cânones da poesia de sua época e com estes cânones dialoga, propondo uma tensão que o coloca como um poeta metafísico, de estranha metafísica, ao mesmo tempo obediente aos preceitos religiosos e deles desrespeitoso, o ângulo de leitura que se torna adequado está em entender esta tensão que se coloca na fronteira entre um mundo já sido e um mundo que se inaugurava então. Esclareça-se. O mundo religioso da época precedente, que teve em Dante seu maior intérprete, se esfacela e as lutas religiosas entre os luteranos, calvinistas e católicos abrem-se ao palco da representação do mundo. Se essas forças conservadoras da religiosidade são em si conservadoras e apelam para que se entenda o divino na medida de uma imitação baseada em preceitos morais, Aretino toma uma terceira via – a poética.

A poética de Aretino, no sentido de uma ampla reflexão sobre o fazer, levemente desloca as questões postas por sua época e inaugura um pensar sobre a vida cuja simbologia se encontra na vitalidade, no desrespeito e na moralidade invertida com que analisa a vida social através do poema. No poema 1 do I Modi se lê:

Gente aqui há que fode e que é fodida
De conas e caralhos há caudal
E pelo cu muita alma já perdida.

Fode-se aqui com graça sem igual
Alhures nunca assaz reproduzida
Por toda jerarquia putanal.

Ressalto nos versos do poema o último verso do primeiro terceto, que exprime de maneira cordata os preceitos religiosos contra a sodomia, que reverbera em “alma perdida”, e o verso que fecha o último terceto. A palavra jerarquia indica “ordem que existe de forma a priorizar um membro, poderes, categorias, patentes e/ou dignidades de suas organizações: a hierarquia eclesiástica” ao juntá-la a putanal cria-se um amálgama que indica ainda a condenação das práticas conventuais. O tom irônico que se percebe nestes versos terá um desfecho no mínimo inusitado, quando o poeta escreve:

Enfim loucura total
Que até da nojo essa iguaria toda
E Deus perdoe a quem no cu não fode.

Ao pedir perdão para aqueles que se mantêm na regra ditada pela moral, a moralidade invertida se cumpre e a condenação se cala. Não dá tesão, mas faz o leitor refletir. A mimesis ao contrário do estatuto da imitação é produtora de sentido e leva o leitor à reflexão e não ao cumprimento da moral; a mimesis trabalha sobre o tecido ético, como no texto trágico.

A poética de Sade não é menos reflexiva que a de Aretino. Ao aproximar o homem da natureza, como propõe Octávio Paz no seu livro Um mais além erótico: Sade, o erótico vai se afirmar como expressão da animalidade, apagando os ademanes do erótico, que caracterizam as ações da espécie humana e nele, erótico, incentivando os atos desviantes que compõem o sentido último da existência.

Não há em Sade nenhuma complacência em relação ao humano, nenhum preceito que não deva ser desmitificado. A questão que se põe, quando se lê o Marquês, está na dificuldade de situá-lo no longo cabedal de cultura que se criou a partir de um cânone preciso. Entretanto, Sade pertence a sua época, isto é, “Instalar a natureza no lugar central que ocupava o Deus cristão não é uma ideia de Sade, mas de seu século. Porém sua concepção não é a vigente em sua época. Seu libertino não é o bom selvagem e sim uma fera pensante.” (Paz, 1999).

Esse deslocamento provocado por seus textos assustaram e ainda assustam a cultura normativa e moralista. Toda vez que um processo autoritário se instaura, ataca-se aquilo que da cultura como norma se desvia. O governo do inominável pertence a esta moralidade cultural, diga-se de passagem.

A cultura que leva o leitor à reflexão cria seus desvios, deixando o que se punha como certeza sob forte abalo. Percebe-se o que é, mas não se concebe que o que é seja possível, abre-se uma brecha a partir da qual nem o que se afirmava nem o que se afirma encontram um estatuto de vericabilidade. A verossimilhança está como se em posição fugidia e o que semelha difere, produzindo sentidos que não estão ao alcance da mão, mas que só é possível através de um desvelamento dos sentidos, que se velam para de novo se desvelarem, numa dialética do indeterminável, numa dialética cujo resultado nunca se sabe.

A reflexão que se faz acerca da poesia de Aretino e da obra de Sade, teve como substrato teórico os livros de Luiz Costa Lima, principalmente, A Trilogia do Controle (2007), Mímesis e Modernidade (1980), Mímesis: desafio ao pensamento (2000) e Vida e mímesis (1995). Além do livro de Octávio Paz, Um mais além erótico: Sade (1999). A tradução dos versos de Aretino é de José Paulo Paes no livro Sonetos Luxuriosos (1981).

(oswaldo martins)

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