1 – Há alguns aspectos a se
considerar quando se pensa no ensino da literatura e na organização curricular
que o dirige. O primeiro deles é o lugar de onde parte o professor, pois há
duas formas de considerá-lo:
· A empatia que o professor tem com a literatura,
sua bagagem de leitura, seu trato pessoal com o texto literário, levando-se em
conta os aspectos técnicos do ensino e da teoria que serão enfocados em sala de
aula;
· A necessidade de se ater à burríssima divisão
histórica de que a maioria das grades do ensino da literatura parte. Barroco,
Arcadismos, Romantismos, Parnasianismo etc.
O professor meramente técnico
pode até “ensinar” ao aluno as fases, o significado do que é literatura e
fazê-lo entender os períodos e suas relações com a história, com a filosofia,
com a sociologia ou com a matemática. Entretanto, um dos aspectos mais densos
que a literatura traz é a capacidade de localizar o sujeito no seu mundo e a
partir daí poder fazer a crítica da linguagem do senso comum – que é a do uso
habitual da própria linguagem. Esta capacidade só pode ser oferecida ao
aluno-leitor se se faz compreender o deslocamento mimético produzido por essa
outra linguagem – nada usual – que é a linguagem literária. Sem este
deslocamento, é impossível ao aluno-leitor perceber a potência contida no texto
literário.
Atingir essa potência,
demonstrá-la e fazer com que seja possível senti-la é, pelo que me parece, uma
das possibilidades que tem o professor de literatura, em quaisquer níveis da
educação. Em outras palavras, é preciso fazer com que o aluno-leitor ponha a
mão na massa.
Na minha prática de sala de aula
algumas proposições são constantes. A começar por abrir espaço para a teoria,
mesmo que sejam árduos os caminhos da compreensão da matéria teórica – como diz
Luiz Costa Lima, teorizar não é aplicar
uma receita de bolo ou dominar um conjunto de regras fixas e imanentes, mas é
sobretudo fazer dançar o pensamento, com o rigor e a precisão que uma passista
tem ao adentrar a avenida ou o poeta grego que fazia dançar o seu dançado.
Explico-me: é necessário deixar o pensamento assentado sobre um ajuste rigoroso
e frouxo ao mesmo tempo, como uma peça de encaixe que, ao se acoplar a um
suporte, mantenha com ele uma relação de desconfiança, pra que se possa ajustar
e modificar os ajustes, quando a mobilidade de pensamento assim o exigir.
O passo seguinte é o da leitura,
muita leitura, sem querer saber se leitor-aluno goste ou não de determinado
livro. O que o aluno tem de compreender não passa pelo gosto, mas pela
capacidade que determinados livros possuem de fazer com que as situações do
cotidiano sejam refletidas e postas sob suspeição, mesmo as características
mais caras ao processo civilizatório. O império da lei foi construído e suas
verdades naturalizadas. Ao ler os seguintes versos de Baudelaire, deve o aluno
compreender que todo o processo civilizatório está sob suspeição e que a
radicalidade expressa pelo poeta tem como visada um outro ponto.
Se o veneno, a paixão, o estupro,
a punhalada
Não bordaram ainda com desenhos
finos
A trama vã de nossos míseros
destinos,
É que nossa alma arriscou pouco
ou quase nada.
As percepções contemporâneas
devem se assustar, com o texto literário. Podem se perguntar: mas dar isso para
um adolescente, meu Deus? Sim, é isto e não outras expressões o que se deve dar
a ler. Os aspectos de certos romantismos, hoje, apenas tentam dar ao construto
literário um lugar aceitável na ordem do mundo. É preciso rejeitá-los. Nada
pior do que os ai que saudades que eu tenho, que abundam como o modelo de
literatura, ainda que pese a radicalidade modernista.
O terceiro passo está em fazer
com que o aluno-leitor ponha a mão na massa e recrie a linguagem a traduza em
atos concretos, que nunca podem ser uma prova; são preferíveis os debates, os
trabalhos de desnudamento dos textos feitos pelos alunos-leitores.
Passo a relatar algumas
experiências vivenciadas em sala de aula:
· A formação de um parque de diversões a partir e
de textos.
· A recriação do Rio do século XIX, a partir da
leitura de Machado de Assis, Aluísio Azevedo e Manuel Antônio de Almeida.
· A criação de um manifesto literário, criado e lido
em praça pública pelos alunos.
· A criação do Cortiço físico, em que as pessoas
pudessem entrar e vivenciar, não o cortiço, mas a sua mímesis e assim compreender que o que Aluízio Azevedo faz não
é o retrato de um cortiço, mas a sua emulação
· A criação de um jogral com poesia.
É preciso ressaltar que quem
torna possíveis essas experiências são os alunos e não o professor que, quando
muito, dá uma de songa-monga e reutiliza o vivenciado como reflexão sobre o
texto literário, fechando o círculo.
Gostaria de ler um poema do
Cosmologia do Impreciso, está na parte que se nomeia arte da deseducação na
qual tento pensar a questão da sala de aula:
tertúlias
Nas aulas todo domínio é cínico
Inventam-se nomes para profissão
nenhuma
nas aulas mente-se desde o que
não se sabe ao que deixarão de
saber
nas aulas a correção absoluta
ensina o desconforto
a tristeza
a traça que corrói todas
as conquistas
e abismos
(Oswaldo Martins)
Parabéns pelo excelente texto!
ResponderExcluirAbraços,
Luciana