A duração da ação trágica é de um
dia, do nascer ao por do sol, neste período deve o personagem trágico passar da
boa para má fortuna ou da má para a boa fortuna, bem como descortinar as
questões políticas e sociais que envolvem a polis. Na ação de No Fio da Noite, Ana Teresa Jardim inverte o preceito
aristotélico e faz de sua personagem elemento noturno. A prostituta argentina
Nena, protagonista da história, vai vivenciar no período de uma noite, do por
do sol ao seu nascer, os problemas que fazem parte da cidade que a mal acolheu.
Além do périplo peripatético de
Nena pela noite do Rio de Janeiro, as descrições da cidade são de beleza
incomum, pois o que se mostra da cidade não é o ambiente edulcorado das praias
e inconteste mitificação tão ao gosto dos nativos que se põem a falar e a discorrer
sobre ela. A cidade aparece inteira, com seu poeta e gravador (as descrições
das gravuras do descendente russo Boris me lembraram as gravuras de Goeldi),
com seus gangsteres e proxenetas, mas sobretudo no seu ambiente mais denso que
é o da noite do cais do porto e das ruas edificadas ao acaso desse delicioso
Rio de 1922, com seus sambistas e artistas ambulantes.
A leitura de um fôlego só, como
se a noite nos obrigasse a vivenciá-la por inteiro e no mesmo ritmo do romance,
demonstra a maestria da composição e as deixas que a narrativa vai plantando
como sucedâneo da irrealização do texto e, ao mesmo tempo, da realização do
imaginário que o preside.
Outro detalhe importante saboroso
da composição de No Fio da Noite está presente nas
páginas finais em que a verossimilhança parece comprovar a adequação e o
equilíbrio da narrativa. Refiro-me aos “quase anexos” que dão conta da
investida ficcional. As receitas, a crônica de Tulio Neves, a carta de Irena e,
sobretudo, a deliciosa notícia publicada na revista A Passarela, de agosto de
1922, na qual se dá conta da moda que toma o Rio de Janeiro – “o uso da capa de
chuva, ou impermeável, de corte masculino, à guisa de vestido” (93). Lançado
por Nena, a moda intervém precisa e determinadamente nos costumes da cidade e sugere
que a moda das mulheres desta cidade e a própria cidade se compuseram através do
contato unisual dos mundos separados e fundidos num mesmo e paradoxal ato de constituir
a própria cidade.
Ana Teresa Jardim sabe, como
afirma o poeta[i],
que a sagacidade está em saber farejar delícias.
(Oswaldo Martins)
Oswaldo, você captou bem várias qualidades da narrativa da Ana, e esse lance da capa de chuva resume bem uma delas. Eu ADORO o jeito como detalhes são importantes no que ela escreve e como ele os coloca ali com aquele jeitinho meio quieto, assim de passagem, e como são eles é que criam a atmosfera, determinando um estilo. O outro livro dela, do menino de Copacabana, faz isso de um jeito maravilhoso, também. Bela resenha!
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