Oswaldo Martins. Poeta e professor de literatura. Autor dos livros desestudos, minimalhas do alheio, lucidez do oco, cosmologia do impreciso, língua nua com Elvira Vigna, lapa, manto, paixão e Antiodes, com Alexandre Faria. Editor da TextoTerritório
quinta-feira, 30 de janeiro de 2014
com a nudez de henry miller
nas esquinas à sombra
de tanizaki
o corpo que ferve
desvenda um hai-kai
de banheiro japonês
Prosa do dia
"Eu disse que ela tinha um
físico maravilhoso, essa mariposa noturna. É verdade. Era cheia e flexível,
sinuosa, macia como uma foca. Quando corro a mão por suas nádegas, esqueço
todos os problemas... Mas no instante em que comecei a fazer comparações entre
seu corpo e o de Mona, percebi que era inútil prosseguir. Por mais carne e
sangue que ela tivesse, não passava de carne e sangue. Nada mais havia nela
além do que se podia ver e tocar, ouvir e cheirar. Com Mona, a história era
completamente outra. Qualquer porção do seu corpo era capaz de me inflamar. Sua
personalidade jazia tanto em sua teta esquerda, a bem dizer, quanto em seu dedo
mindinho direito. A carne falava de todas as partes, de todos os ângulos.
Estranho, o corpo dela não era perfeito. Mas era melodioso e provocativo. O
corpo correspondia a suas disposições de espírito. Ela não tinha necessidade de
exibi-lo ou espicaçá-lo, tinha apenas de habitá-lo, de sê-lo.
Havia ainda mais acerca do corpo
de Mona: mudava constantemente. Bem me lembro dos dias em que vivíamos com o
médico e sua família no Bronx, quando tomávamos sempre juntos um banho de
chuveiro, trocávamos carícias, trepávamos o melhor possível - sob o chuveiro -,
enquanto as baratas subiam e desciam pelas paredes qual exércitos em debandada.
Seu corpo, então, embora eu o amasse, estava fora de forma. A carne pendia-lhe
da cintura, em dobras, os seios caíam frouxos, as nádegas eram muito chatas,
demasiado infantis. No entanto, aquele mesmo corpo, envolvido num vestido
engomado de bolinhas, dava-lhe todo o encanto e fascínio de uma camareira de
comédia. O pescoço era cheio, um pescoço colunar, como sempre o chamei, e
combinava com a voz rica, escura, vibrante, que dele saía. À medida que corriam
os meses e os anos, esse corpo sofria toda espécie de mudanças. Às vezes ficava
tenso, esbelto, esticado como um tambor. Quase demasiado tenso, demasiado
esbelto. E então ele mudava novamente, cada mudança registrando uma
transformação interior de Mona, suas flutuações, seus estados de ânimo, ânsias
e frustrações. Mas permanecia sempre provocativo - inteiramente vivo,
suscetível, latejante, pulsando de amor, ternura, paixão. A cada dia, ele dava
impressão de falar uma nova linguagem.
Que poder, então, poderia exercer
sobre mim o corpo de outra mulher? Quando muito, somente um poder débil, transitório.
Eu encontrara o corpo, nenhum outro me era necessário. Nenhum outro jamais me
satisfaria plenamente. Não, o tipo risonho não me satisfazia. Penetrava-se
neste tipo de corpo como uma faca que atravessa o papelão. O que eu almejava
era o ilusório. (Esse basilisco ilusório, como eu o definia). Ilusório e
insaciável ao mesmo tempo. Um corpo como o de Mona, que, quanto mais se
possuía, mais se ficava possuído. Um corpo que trazia em si todas as desgraças
do Egito - e seus milagres, suas maravilhas...."
Trecho retirado do livro Nexus,
de Henry Miller.
Poema do dia 2
quero uma vida em forma de espinha
Quero uma vida em forma de espinha
Num prato azul
Quero uma vida em forma de coisa
No fundo dum sítio sozinho
Quero uma vida em forma de areia nas minhas mãos
Em forma de pão verde ou de cântara
Em forma de sapata mole
Em forma de tanglomanglo
De limpa-chaminés ou de lilás
De terra cheia de calhaus
De cabeleireiro selvagem ou de édredon louco
Quero uma vida em forma de ti
E tenho-a mas ainda não é bastante
Eu nunca estou contente
boris vian
canções e poemas
tradução de irene freire nunes e fernando cabral martins
assírio & alvim
1997
Poema do dia
arte
Aqui o tempo está à frente do tempo
E esse caso incomparável
Só acontece entre os profetas.
Apesar disso torna-se necessário
Que o nosso impulso para abeleza
Se manifeste em todos os instantes.
Porque já, ó surpresa,
Na pedreiras de mármore
Se trabalha o monumento de amanhã.
Nicolai Kantchev
Trad. Egito Gonçalves
quarta-feira, 29 de janeiro de 2014
Konstantinos Kaváfis
aπολειπεν o θeoς antωnion
Σάν ἔξαφνα, ὥρα μεσάνυχτ’, ἀκoυσθεῖ
ἀόρατoς θίασoς νά περνᾶ
μέ μoυσικές ἐξαίσιες, μέ φωνές –
τήν τύχη σoυ πoύ ἐνδίδει πιά, τά ἔργα σoυ
πoύ ἀπέτυχαν, τά σχέδια τῆς ζωῆς σoυ
πoύ βγῆκαν ὅλα πλάνες, μή ἀνωφέλετα θρηνήσεις.
Σάν ἕτoιμoς ἀπό καιρό, σά θαρραλέoς,
ἀπoχαιρέτα την, τήν Ἀλεξάνδρεια πoύ φεύγει.
Πρό πάντων νά μή γελασθεῖς, μήν πεῖς πώς ἦταν
ἕνα ὄνειρo, πώς ἀπατήθηκεν ἡ ἀκoή σoυ.
μάταιες ἐλπίδες τέτoιες μήν καταδεχθεῖς.
Σάν ἕτoιμoς ἀπό καιρό, σά θαρραλέoς,
σάν πoύ ταιριάζει σε πoύ ἀξιώθηκες μιά τέτoια πόλι,
πλησίασε σταθερά πρός τό παράθυρo,
κι ἄκoυσε μέ συγκίνησιν, ἀλλ’ ὄχι
μέ τῶν δειλῶν τά παρακάλια καί παράπoνα,
ὡς τελευταία ἀπόλαυσι τoύς ἤχoυς,
τά ἐξαίσια ὄργανα τoῦ μυστικoῦ θιάσoυ,
κι ἀπoχαιρέτα την, τήν Ἀλεξάνδρεια πoύ χάνεις.
Konstantinos Kaváfis
O deus abandona Antônio
Quando, pela meia-noite, de improviso ouvires
passar, invisível, um tíasos
com música soberba e cânticos,
a sorte que afinal te abandona, tuas obras
falidas, teus planos de vida
– tudo ilusório – com nênias vãs não lastimes.
Como um bravo que, há muito, já se preparava,
saúda essa Alexandria que te está fugindo.
Não, não te deixes burlar, dizendo: “foi sonho”,
ou: “meus ouvidos me enganaram”;
desdenha essa esperança vã.
Como um bravo que, há muito, já se preparava,
como convém a quem é digno desta pólis,
aproxima-te – não hesites – da janela
e escuta comovido, porém
sem pranto ou prece pusilânime,
como quem frui de um último prazer, os sons,
os soberbos acordes do místico tíasos:
e saúda Alexandria, enquanto a estás perdendo.
Trad. Harroldo de Campos
terça-feira, 28 de janeiro de 2014
timeu
a tribo dos pássaros contempla
a lua de safo
dada ao estudo das coisas celestes
deixa crescer penas de amor
nas cabeleiras humanas
(oswaldo martins)
segunda-feira, 27 de janeiro de 2014
às bacantes
para julia fernandez
evoé,
clamo, estrangeira que sou, em meus bárbaros cantos!
(as
bacantes, eurípedes)
na cabeça coroadas flores
sol sobre os pés de corça
desenha de uma bacante
a silhueta da dança
néctar e ambrosia
sob a relva das deusas
e o canto bárbaro
que estraçalha os homens
(oswaldo martins)
domingo, 26 de janeiro de 2014
Três poemas do Elesbão
lira
romantiquinha
pergunta-me admirada a minha amada
por que lhe beijo as sapatilhas
então não foram por elas
que chegaste a mim
elesbão ribeiro
26/01/14
Didascália
13
encontra gregório de matos guerra
poeta barroco libertino e baiano na cona da preta francelina a redenção que
tanto procurara
eras só um lanho
lanho que lambia
lanho por onde entrava em teu corpo
lanho de gozo
mas esse teu rosto sorridente
esses teus olhos coniventes
essas tuas mãos bondosas
esse teu jeito cuidoso de mim
és lanho em que me guardo
elesbão ribeiro
modificado em 26/01/14
maluco
beleza 6
organdi azul
para manuel bandeira
quando se lembrava dela
lembrava-se dela em decúbito
ventral
os pelos lhe cresciam nas mãos
mas ela só se mostrava
só se oferecia a ele em decúbito
dorsal
um dia foi embora enquanto ela se
encantava diante do espelho
experimentando o vestido que lhe
levara
elesbão ribeiro
22/01/14
quarta-feira, 22 de janeiro de 2014
arte
a cura talvez fosse pintar
de esmalte vermelho
as sobrancelhas e esperar
curar
mas no úmido espelho do olhar
o líquido não escorre nem fica
nada seca
em tanto brilho.
(Lúcia Leão)
no escuro
um gato chora e pede
no meio da noite
que alguém abra a porta
o menino caminha descalço
até a beirada do sono
sem saber por onde começar
a batalha com o abandono.
(Lúcia Leão)
Xenófanes de Colofão
andou pelas estradas
a coorte dos sábios
o tempo se deixava
nos espaços do andarilho
absolutos fundiam-se
em instâncias unas
que paralisavam os pés
do amor erradio
(oswaldo martins)
AS ARANHAS
Tão lindas as aranhas
Tão belas, tão ternas
Pois caem do teto
E não quebram as pernas!
(Qorpo Santo)
Livros
Se os meus livros – abrires,
Muito acharás – para rires;
Muito também tem – para chorar;
E muitíssimo – pra lamentar!
Algum tanto há que aprender;
E muito talvez para saber!
(Qorpo Santo)
segunda-feira, 13 de janeiro de 2014
Anaxímenes de Mileto
em sua bolha sintética
o ar tremula
amor de leve passa
a brisa eriça
a terra una
com ares de bailarina
(oswaldo martins)
domingo, 12 de janeiro de 2014
Jane Hirshfield
UM PERFUME DE CEDRO
Jane Hirshfield
Mesmo agora,
décadas depois,
lavo meu rosto com água fria –
Não por disciplina
nem pelas lembranças,
nem pelo tapa gelado que me desperta,
mas como um exercício
em escolher
tornar querido o que não desejei.
Tradução de Lúcia Leão
A CEDARY FRAGRANCE
Jane Hirshfield
Even now,
decades after,
I wash my face with cold
water –
Not for discipline,
nor memory,
nor the icy, awakening
slap,
but to practice
choosing
to make the unwanted
wanted.
Uma das poetas norte-americanas mais importantes da sua geração, Jane Hirshfield é autora de sete livros de poesia. Os mais recentes são Come Thief (Knopf, 2011) e After (Harper Collins, 2006), que foi considerado o melhor livro do ano pelo The Washington Post, San Francisco Chronicle, e Financial Times, da Inglaterra. É autora também de um volume de ensaios e de quatro livros que traduziu em parceria e nos quais apresentou poetas de tempos imemoriais. Seu trabalho é apresentado frequentemente nas principais publicações literárias dos Estados Unidos e seus poemas já foram selecionados para sete edições da série The Best American Poetry. Ela é membro do conselho da Academia de Poetas Americanos (Academy of American Poets) e foi artista residente na Universidade da Califórnia, em San Francisco, onde trabalhou com um grupo de pesquisa em neurociência. Hirshfield já apresentou seu trabalho em festivais de poesia na América do Norte, China, Polônia, Inglaterra, Irlanda, Coreia, Lituânia e Japão. Ela mora no sopé de uma montanha, ao norte da Baía de San Francisco, Califórnia.
sexta-feira, 10 de janeiro de 2014
Anaximandro
há um princípio que não há
de onde derivam todas as coisas
na janela um deus bulia com o
cabelo
do amor e no que lhe permitia
o tempo sem limites
algo como a finitude da matéria
a ele se interpôs
(oswaldo martins)
quinta-feira, 9 de janeiro de 2014
A simplicidade como correlato
A simplicidade
não é necessariamente simplória naquilo que diz. Pode, pelo contrário, atingir
um grau elevadíssimo de interpretação do mundo. A ciranda, manifestação
cultural do nordeste brasileiro, tem essa característica ímpar, quando se dá na
voz de Lia de Itamaracá. Na reflexão sobre a passagem dos anos, a presença do
desejo, para além do tempo, se aplica na afirmação de que agora, com a idade
chegada, entretanto, ainda se vive na beira do mar, quando o viver a cirandar é
o correlato do desejo imorredouro.
Outra
manifestação da simplicidade profunda está no Pastoril do Velho Faceta. Ao
interpretar o senso comum do brasileiro, as músicas que compõem o pastoril
jogam constantemente com o duplo sentido jocoso da cultura de que faz parte.
Neste sentido, O casamento da filha do Seu Faceta cria uma sociologia própria
do imaginário das relações familiares. Por trás da malícia ligeira das
admoestações do pai para filha que quer casar, revela-se a cultura terrível
destas mesmas relações. Ouvir com atenção as duplicidades do texto é mergulhar
neste universo de pavor através das revelações pretensamente despreocupadas que
a voz do Velho faceta traz. Se não, emendem o casamento com a deliciosa e
terrível música que é Bacurinha.
Estas manifestações
revelam características sutis da sociedade brasileira e nos faz entendê-la
melhor.
(oswaldo
martins)
infância
a porta
dos fundos era para o cachorro
e para
as empregadas
na
varanda a rede sobre o piso
que
desenhava flores
em
branco e preto
meu avô
esperava no portão
nós
entrávamos pela porta da frente
minha
avó na cozinha
fazendo
risóles e equilibrando
a
quantidade certa de gotas de limão
para o
suspiro perfeito
da
torta de bananas.
(Lúcia
Leão)
quarta-feira, 8 de janeiro de 2014
lo que eres
Lo que eres
me distrae de lo que dices
Lanzas palabras veloces,
empavesadas de risas,
Invitándome
a ir adonde ellas me lleven.
No te atendo, no las sigo:
estoy mirando
los lábios donde nacieron.
Miras de pronto a lo lejos.
Clavas la mirada allí,
no sé em qué, y se te dispara
a buscarlo ya tu alma
afilada, de saeta.
Yo no mro adonde miras:
yo te estoy vendo mirar.
(pedro salinas)
terça-feira, 7 de janeiro de 2014
Dois poemas de Silviano Santiago
Poema do lá
Dizem: guerra
lá na Europa.
como quem diz:
chove lá fora.
Loucura
Eram muitos os loucos então:
em cada quintal,
correntes para o acesso.
Em cada fundo de quintal,
uma sombra suja entre as árvores,
sombra adulta pastando,
armando arapuca
de pegar passarinho.
A família o protege
e só não o esconde dos íntimos.
(Silviano Santiago - Crescendo durante a Guerra numa Província Ultramarina)
tales de mileto
para
o elesbão ribeiro, que escreveu um poema magistral sobre ele
os filósofos fazem piadas entre si
caem em buracos abertos no chão
porque como lunáticos interrogam
a razão de ser de todas as coisas
cometem enganos tão pavorosos
que deles se diz serem parvos
mas tão parvos que fazem o mundo
girar no calidoscópio das paixões
(oswaldo martins)
sexta-feira, 3 de janeiro de 2014
palimpsesto
Deixava marcas
na pele
súbito
estancou os arranhões
e disse
siga em frente
com outra
sem a minha escrita
Na contra corrente dessa vocação
de leitor de incunábulos
agora ele segue
deambulando
(Luiz Fernando Medeiros de Carvalho)
Maputo, Cidade Índica
a Ungulani Ba Ka Khosa
A geométrica harmonia
que em ti se alonga
projecta a atlântica viuvez
da minha casa
(Conceição Lima - O Útero da Casa)
A geométrica harmonia
que em ti se alonga
projecta a atlântica viuvez
da minha casa
(Conceição Lima - O Útero da Casa)
2014
dizem
que a lucidez chega
como
uma luz que arruma prateleiras,
mas
vejo que a parede de fundo
tem
sempre um tom de escuro
foi por
isso que virando o dia
que
viraria o mês e outro ano vivido
tive a
impressão de que dentro da claridade
haveria
um poço ainda maior,
escadas
caracol, um romance profundo,
arrepio.
(lúcia leão)
(lúcia leão)
heráclito
a fumaça do cigarro
apreende amor
na sarjeta
a fotografia alonga a rua
o devir
como um beco
na imagem fluida
que se refaz
(oswaldo martins)
Zenão de Eleia
o objeto e seu treino
do olhar
pode que um passo
ou a colcha em retalhos
a imprecisa voz
defina
do amor a indecifrável
leveza
como um mozart antigo
que no metrô
faz
do sujeito a aporia
(oswaldo martins)
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