Amor que serena, termina? e Com/posições
são dois livros de poesia do poeta argentino Juan Gelman, traduzidos
para o português por Eric Nepomuceno e Andityas Soares de Moura. Gelman nos dois
pungentes livros trabalha até a exaustão essa mescla curiosa de expressão
pessoal, ligada aos sentimentos da hora ou da vida inteira por que todos nós somos
tocados, mesmo sem a necessidade de expressá-los e de regrá-los, expandindo-os
até o limite do dizer mais além do que a língua permite, e a expressão do
próprio poema como expressão antiga e constante da cultura humana.
Em Com/posições a presença constante do outro é a medida
da própria expressão que os subverte, os torna seus; em Amor que serena, termina as experiências vivenciais do exílio, da
morte e do desaparecimento são construídas sem a elas fazer referências diretas
– perpassam mesmo todo o sentido do livro, mas deslocam-se as vivências para a
reflexão mordida e reativa.
O poema de Judá
Halevi, nascida em 1075 e morta em 1141, tendo vivido entre Tudela, Granada,
Toledo, Córdoba e Alexandria, e a com/posição feita por Gelman revelam o
processo do poeta. A morte do filho e da nora nas prisões argentinas, o
sequestro da neta nascida na cadeia da ditatura portenha determinam certa
contenção de sentidos que se revelam mais amplos quando o poema desloca os
sentidos e explodem como uma granada na voz da própria poesia.
Judá Halevi
Ofra lava sus
vestidos em el agua de mis lagrimas
Y los pone a
secar al sol de su hermosura.
No necessita el
agua de las fuentes, pues tiene la de mis ojos
Ni outro sol que
el de su beleza.
Lavar
em minhas
lágrimas lavo as roupas do amor/
estendo-as ao
sol de tua beleza/
não necessitam
de fonte: estão meus olhos/
nem de manhã: só
de teu resplendor/
Anoto apenas: este
verso “não necessitam de fonte” cria uma perspectiva nova para o belo poema de
Halevi. Aqui, tocado pela ausência da manhã, pela impossibilidade de que surjam
manhãs, a poesia fala de uma ausência entranhada neste eu que lava as roupas do
amor. Vê de dentro. A primeira pessoa neste poema é tudo e o diferencia do de Halevi.
Há um movimento muito bonito de distensão e contenção dos símbolos demarcados pelo
poema primeiro.
PRESENCIA DEL OTOÑO
Debí decir te
amo.
Pero estaba el
otoño haciendo señas,
clavándome sus
puertas en el alma.
Amada, tú,
recíbelo.
Vete por él,
transporta tu dulzura
por su dulzura
madre.
Vete por él, por
él, otoño duro,
otoño suave en
quien reclino mi aire.
Vete por él,
amada.
No soy yo él que
te ama este minuto.
Es él en mí, su
invento.
Un lento
asesinato de ternura.
A última estrofe
do poema reconstrói o significado do poema, a partir do vazio que se revela
nestes belos versos finais, que retiram do amor sua mesquinhez burguesa e o
ampliam para a precisão da linguagem que
Juan Gelman faz percorrer em toda sua obra.
(oswaldo
martins)
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