VILMA COSTA
Venta não, de Alexandre Faria,
reúne noventa poemas subdivididos em dois grupos. O primeiro, “tudo muito
sempre”, possui oitenta e um poemas. O segundo, “o pai era um”, agrupa os nove
restantes, cada qual formado por nove versos. Há uma estrutura diferenciada
entre os dois blocos, tanto do ponto de vista formal quanto de conteúdo
semântico. A numeração desses textos, e não as páginas do livro, chama a
atenção pelo rigor linear e crescente do primeiro bloco (1 a 81), enquanto os
nove últimos se apresentam em ordem inversa (de 90 a 82). Podemos considerar
que a ordem numérica quebrada com a segunda parte do livro, além de estabelecer
um corte entre as duas, põe em questão a equação matemática. Sugere que o livro
é para ser lido não apenas do início ao fim, mas do meio ao fim, do fim ao
início, do fim ao meio — como deve ser lida qualquer intrigante coletânea de
poesia.
Uma breve consulta virtual aponta
a ligação com o livro chinês Tao te ching (O livro do caminho e da virtude),
atribuído a Lao Tzi, uma das mais conhecidas e importantes obras da literatura
da China, supostamente escrita entre 350 e 250 a.C. do calendário ocidental,
dividida também em oitenta e um fragmentos e ensinamento filosóficos. Alguns
destes elementos são re-semantizados, outros confrontados com questões
contemporâneas e mesclados com novos conteúdos, ou reafirmados através do
tempo, nesse aqui e agora. Homenagem, reiteração, paródia, pastiche? Talvez um
pouco de tudo, ou nada disso. Sobrevivem nos poemas de Faria, além do número de
capítulos da primeira parte, algumas questões sobre o tempo, a busca inútil de
origem, a simplicidade, a contenção de paixões intempestivas, a crítica à
pretensão de controlar o inexorável da vida. São também fragmentos sem títulos,
sem letras maiúsculas (como no alfabeto chinês), econômicos de pontuação e
conectivos.
Os poemas de “tudo muito sempre”
carregam entre si uma estreita relação, mas se distanciam dos de “o pai era
um”, como se o mesmo livro contivesse dois. Contudo, no seu conjunto a obra
busca uma unidade. Do ponto de vista temático, há uma multiplicidade de
questões que abordam conteúdos filosóficos, sociais, existenciais e estéticos —
fundamentalmente humanos, demasiado humanos.
Sabedoria e silêncio
A leitura da primeira parte
começa pela busca de um sujeito lírico que parece se esconder de sua
individualidade através de uma voz coletiva. Esta, dirigindo-se a um
interlocutor, paira, contém-se concisa, quebra a sintaxe e, conseqüentemente,
priva-se por vezes da própria comunicação do que pretende dizer. Trata-se de
uma dicção fragmentada pelos silêncios, não meras pausas, mas que funcionam
como elementos estruturais dos textos. O primeiro desafio para ser encarado é a
página em branco e, sobre ela, dar nome ao que vem desse vazio existencial ou
natural que, filosoficamente, manifesta-se nessa voz, como que ausente de
identidade pessoal. No poema 15: “como se tocasse/ o silêncio// a sintonia dos
olhos/ não cabe na boca”; ou no 12: “(…) será também no vazio/ o gozo/ das
coisas”.
É no vazio das páginas que o gozo
da poesia se realiza. As palavras brincam, buscam-se e perdem-se na apologia do
aquiagora, reincidente em muitos momentos, por um sujeito que se ausenta,
exime-se, “e silencia/ dentadura na pele/ do infinito”. Afinal, “o mapa do
tesouso/ silencia”. O que podemos cogitar é que esse sujeito lírico que tece
sabedorias a um interlocutor desdobra-se nesse outro a quem se dirige. Antes do
sábio que recomenda, é o humano que precisa do outro para se conter e seguir o
caminho incerto desse aqui e agora do nosso tempo, consciente de sua condição.
que nada
!
sabe
Esta consciência, apesar de
remeter à falsa modéstia colocada na boca de Sócrates — “Só sei que nada sei”
—, representa uma convicção quanto ao tema: “sabedoria/ a avó analfabeta// o
resto/ erudição e velhice”.
No único texto de “tudo muito
sempre” em que o sujeito expressa-se em primeira pessoa, a questão também é
colocada: “não sei/ não quero saber/ e vou aprendendo/ a não ter raiva/ de quem
pensa / que sabe”.
Rede textual
Alexandre Faria não é estreante
na produção poética, pelo contrário, atua regularmente em sites, saraus,
oficinas de poesia, ensaios literários e magistério. O poema a seguir
reporta-se a um outro livro do autor, Lágrima palhaça, que versa sobre o circo
da vida, suas quedas e glórias: “palhaço chora// equilibrista/ trapezista/
malabares/ caem// leão devora/ domador// nesse circo// há glória/ também”.
Enquanto a primeira parte de
Venta não prima pela concisão, a segunda é menos econômica, dando voz à
fluência narrativa de um sujeito presente que se manifesta em primeira pessoa e
ensaia até uma referência autobiográfica: “1970 (quando nasci) me implantaram o
programa/ desde então frutifica cultivar a fé nos dados/ (…)/ mas defeito de
fábrica humana falha/ durou menos que minha vida aquele chip”.
O tempo parece restringir-se ao
agora, o que significa que o passado ficou para trás, são poucas
reminiscências. O espaço é aqui, folha branca tentando dizer o indizível. Um
agora contemporâneo imediato que se contrapõe ao tempo mítico e transcendental
preservado e reincidente no tempo presente: o eterno retorno do mesmo,
privilegiado no subtítulo dessa primeira parte: “tudo muito sempre”.
se eterno
nunca
se eterno
onde?
só o que é com
aqui
agora
Alguns poemas, se lidos
separadamente, parecem herméticos demais, a começar pelo primeiro: “o que é
com/ só/ aqui e agora// goza um enquanto// se insondável// nem sonhes”.
Mas se compreendidos como fios de
uma mesma rede textual, incorporados aos outros, passam a somar a
multiplicidade de sentidos que se entrecruzam neste tecido-texto em permanente
tensão. Esta se estabelece em vários níveis, a começar pelo confronto
filosófico ou cultural de pontos de vista orientais e ocidentais. “pois no
princípio/ o silêncio/ demiurgo.” Mas no princípio não seria o verbo divino?
Não necessariamente: “o verbo/ comprava barulho// silêncio a barganha/ da
criação”.
Conflitam aí a precariedade do
verbo e a teimosia poética compulsiva que atravessa o Lutador, lembrando
Drummond: “lutar com palavras/ é a luta mais vã./ Entanto lutamos…”. A luta
acontece também entre o erotismo e a necessidade de contensão dos impulsos, entre
Dionísio e um Apolo predominante.
paixões
são para errar a mão
salgardem sempre
(…)
Apesar de sugerir “(…) rasga a
receita/ da paixão medida/ não há quem avise”, Apolo predomina com a
recomendação de cautela: “limites: avança/ até serem teus/ então recolhe”.
Enquanto no taoísmo chinês tudo
vem do vazio e o recolhimento é tranqüilo e natural, para o Apolo pagão e
Ocidental a origem era o Caos e “a vida é luta renhida/ viver é lutar”. Segundo
Nietzsche, o apolinismo grego teve de brotar de um fundo dionisíaco: “O grego
dionisíaco tinha necessidade de se tornar apolíneo: isso significa quebrar sua
vontade de descomunal, múltiplo, incerto, assustador, em sua vontade de medida,
de simplicidade, de ordenação à regra e ao conceito”.
mas venta não ê meu povo guenta
aí —
(…)
inventa não meu que o povo inda
há de ver
veredas no garimpo da poesia nas
favelas
(…)
É só desse fundo dionísiaco que
pode brotar a poesia, mesmo que a racionalidade filosófica o tente conter. Na
vida e na arte, neste aqui e agora, uma lágrima palhaça cai no picadeiro do
poeta, homem múltiplo e incerto que, apesar do “trágico desconcerto” de um
“chip que deu pau”, ainda ama, ainda sonha.
(Vilma Costa - Jornal Rascunho)
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