O link para a revista que discute os problemas que envolvem a Literatura e o Autorismo, no qual está na íntegra o texto de Fernanda Fernandes, encontra-se no link abaixo.
3. Os limites da leitura
Em
artigo publicado na Folha de São Paulo, Costa Lima retoma a reflexão sobre o
arbítrio justamente a partir do caso de Oswaldo Martins, professor de português
e poeta, demitido, em 2008, da Escola Parque, no Rio de Janeiro, em função de
poemas tidos como pornográficos. O crítico tece um painel sobre a sociedade
atual e a dimensão da arte reificada e mostra que não basta identificar o fato
de que tudo é tratado como “coisa” no mundo capitalista, para o qual os olhos
adornianos encontrariam hoje um panorama bem diferente nas ações reguladoras
humanas.
Pois, se os
dejetos orgânicos e industriais podem ser reutilizados, é na medida que são matéria,
algo passível de reaproveitamento. Essa regra não se aplica ao que supõe um investimento
valorativo. Um valor que agonize pode, no melhor dos casos, ante condições favoráveis,
converter-se em outra coisa.
Que adianta
especularmos sobre o que poderá ser a transformação da arte dita autônoma,
quando nem sequer sabemos se a humanidade ainda conhecerá condições que a favoreçam?
Se acima está a reflexão de imediato despertada pela questão da reciclagem, passemos
mais rapidamente para um fenômeno sobre o qual pouco nos detemos. (LIMA, 2008)
Ora,
a poesia pode constituir na contemporaneidade um possível exemplo do que o
crítico indica como “um valor que agonize”. Esta agonia estaria diretamente
relacionada à capacidade de leitura e compreensão das perspectivas autônomas e,
por isso, críticas e desviantes da hegemonia dos valores materiais que
constituem a base da civilização e de seu mal-estar na leitura freudiana. Sobre
os limites dessa capacidade de leitura vale citar o comentário do próprio poeta
quando se refere aos equívocos na recepção do texto literário:
embora a
literatura não use a linguagem utilitária, ela tem um poder de despertar as
pessoas, abrir um espaço de percepção que linguagem utilitária vedava. A partir
do momento em que se abre essa percepção, necessariamente o choque se dá. As duas
linguagens passam a ser confrontadas, a do troca-troca do cotidiano e a
intencional. Além do mais isso está também relacionado à forma de se perceber o
que é literatura. As pessoas têm a impressão de que a literatura é o retrato fidedigno
da realidade, e ao criar o seu discurso, que se contrapõe ao discurso utilitário,
abre-se um fosso entre o indivíduo e a ação pública. Se a ação pública é
normativa, a literatura busca desnormatizar os comportamentos. (apud SETOR X, 2011, p. 12)
Na
mesma entrevista, o poeta cita os conflitos gerados pela recepção problemática
de um de seus textos, o Lições Oswaldianas:
as professoras
dariam nuas as de história
por sua vez
alunas e alunos também nus
assimilariam o
que a história nos roubou
a celebração
do corpo e do espírito assim
recolocados
permitiriam a nossos jovens
a experiência
dos ferozes tupinambá
(MARTINS,
2008, p. 34)
E
comenta:
Um poema como
esse obviamente não propõe que ninguém dê aula nu. Ao retomar a antropofagia de
Oswald de Andrade, intenciona perguntar quem somos nós, qual é a nossa capacidade
de pensar o mundo dentro de uma tradição que é muito maior que nós? Eu acho que
é dando aula nu – metaforicamente, senão
vão me entender errado de novo
(risos).
Obviamente as
pessoas não sabem ler – não falo de literatura – não sabem ler o mundo. Ler no
poema uma proposta de nudez na sala de aula é um absurdo tão grande que a gente
só pode designar as pessoas que leem assim como analfabetas. E o pior é que
isso nasce dentro de uma escola. (SETOR
X, 2011, p. 12-13)
O
poema citado compõe a série “Arte da deseducação”, que pode ser lida como um
longo poema, dividido em 11 partes com certa autonomia. Para uma leitura
completa, seria necessário abordar não apenas a série, como toda a Cosmologia
do impreciso, que constitui um livro uno. Faremos, entretanto, um pequeno
recorte a fim de testar a articulação dos poemas com as ideias ligadas à
questão desenvolvida neste trabalho.
No
poema 9, intitulado “tertúlias”, há um desvelamento de um dos processos de
instituição da cultura (e do mal-estar) - a educação formal/escolar: “nas aulas
a correção absoluta / ensina o desconforto / a tristeza” (MARTINS, 2008, p.
39). O princípio da correção é denunciado como a fonte do mal-estar. Mais que
isso, a reflexão poética avança para demonstrar que tais mecanismos sistêmicos
de controle invalidam inclusive o que pode ser compreendido como conquista: “a
traça que destrói todas / conquistas / eabismos” (MARTINS, 2008, p. 39).
É
claro que, na perspectiva autônoma da cosmovisão do poeta, as conquistas
humanas não podem ser dissociadas dos abismos. Um mundo sem abismos é o que os
ideólogos-programadores do Facebook, ou diretores de escolas-modelo, buscam
engendrar, reproduzindo a lógica que sustenta as estruturas de poder da cultura
ocidental. E se esses abismos são denunciados, o sujeito portador da
idiossincrasia da leitura crítica, autônoma e incômoda, deve ser expurgado e
fica sem defesa:
A medida foi
tomada pela instituição ante a reclamação de pais de alunos, que acharam que
escrever poemas eróticos não é tarefa para um professor de seus filhos. Não
chamo nem sequer a atenção para o fato de que tal colégio foi fundado com uma
plataforma liberal, que, ao ir crescendo, etc. etc.
Pergunto-me,
sim: que defesa tem um poeta que, para sobreviver, precisa dar aulas de
português, caso sinta a necessidade de escrever poemas eróticos? Não adianta atentar
para a cegueira desses pais ou para a covardia hipócrita de tal direção. A
questão concreta é como pode alguém, no caso o poeta-professor, defender-se
ante uma decisão arbitrária que interfere em sua sobrevivência material? (LIMA,
2008)
Indagado
sobre o que leva um escritor a sofrer as sanções sociais, econômicas e morais
em função de sua obra, o próprio poeta responde:
é, em primeiro
plano, o retrato grotesco com o qual ele faz o grupo social se ver e, em
segundo plano, o como ele o faz, isto é, a linguagem que o autor em prega para
dessacralizar o lugarde onde fala, a própria escrita. O que leva à estigmatização
e à punição do escritor em parte está neste correr contra, nesta profanação a
que submete a linguagem corrente e mesmo a que se estabilizou em uma certa
época, como foi o caso do romantismo no Brasil, ou como é a consideração do
amor desde o aparecimento da subjetividade como valor. O amor como um fim em si
é invenção burguesa para justificar a herança e sua divisão. A ele submeteu-se
a sexualidade e a hipocrisia desta sexualidade deve ser combatida. A sociedade privatizada,
todos com os seus apartamentos, com seus computadores pessoais, suas questões
individuais – o sexo entre quatro
paredes onde tudo vale, segundo o lugar comum mais cínico – deve ser rechaçada,
destruída. O lugar da arte, da poesia, é perceber como fazê-lo – descobrir o
sexo livre dos entraves do quarto em uma linguagem também sem entraves.
(MARTINS apud SETOR X, 2011, p.
13)
É
neste sentido que as imagens ou os temas ligados à sexualidade que levaram a
rotular o poeta como pornográfico revelam os equívocos da recepção, uma vez que
a motivação das referências sexuais está ligada à intenção de desestruturar ou
de alargar os limites da própria percepção pública quanto aos valores humanos.
Na orelha do livro, Alexandre Faria chama a atenção para o fato de que tais
referências funcionam como estratégia de reafirmação da vida e da liberdade
através do
erótico em sua
fortuidade mais (ex-/im-)pulsiva: a
buceta, sintomaticamente grafada com u, ratificando o gesto transgressor,
a sedição da poesia. “Dobradura-porta / aberta ao absurdo”, como diz a “antimetafísica
das apreciações”, é a buceta, mas também são os quadros e livros que “buscam /
o que de buceta / são”. (in MARTINS, 2008)
O
poema citado por Faria é de outra série da Cosmologia do impreciso, a
“Antimetafísica das apreciações”,
conjunto de 11 textos que
estabelecem diálogos com quadros, livros e músicas, que talvez representem
aquilo que o poeta referiu em uma das entrevistas citadas como “uma tradição
muito maior que nós” (apud SETOR X, 2011, p. 13). Ler sua poesia obriga ao
conhecimento ou à investigação dessas alusões. Permitimo-nos aqui, ler o poema
3, citado por Faria, como uma recriação do quadro de Courbet.
quando quadros
e livros
bucetas são
não são
bucetas que se levam
aos livros e
quadros
senão que
quadros e livros
buscam
o que de
buceta
são
(MARTINS,
2008)
4. Considerações finais
Distantes
no tempo e nas artes em que se exprimem, o pintor realista Courbet e o poeta
contemporâneo Oswaldo Martins aproximam-se não apenas pela temática erótica,
mas pelo tratamento cosmológico expresso no título de suas obras. A origem do
mundo e Cosmologia do impreciso refletem sobre a gênese e a evolução de nossa
sociedade e, longe de tratarem-na como um cosmos no sentido dicionarizado de
“conjunto organizado e harmônico”, trazem à tona o universo ambíguo e
desestabilizador em que vivemos, propondo uma cosmogonia crítica através da
arte.
Nesse
sentido, as reações que os leitores contemporâneos manifestam contra tais obras
de arte carregam-se de conotações morais que, se não permitem afirmar que os
tempos de hoje são de exceção, pelo menos indicam perigosa propensão a se
aceitar passivamente reações de intolerância e violência, unilaterais, o que
sugere forte inclinação para que a repressão
se instale oficialmente. As obras analisadas, então, apresentam o poder
de desestabilizar recepções conservadoras, não exatamente pelo suposto teor pornográfico
que encerrariam, mas pelo fato de que, ao produzirem tais reações de censura,
deslocam sua recepção da esfera privada para a pública, promovem o debate, a
polêmica, e, com isso, colaboram para acentuar a percepção dialética dos
valores constituintes do homem e da sociedade.
É
principalmente na ágora, na praça pública, no espaço onde se confrontam as
diferenças, que os valores morais podem ser tensionados, relativizados,
revistos e, quem sabe, transformados. Dificilmente, se circular e for consumida
no âmbito privado, a crítica social surtirá os desejados efeitos de transformar
a sociedade. Assumindo uma perspectiva de análise bourdiana, a leitura sociológica
rompe com o encanto, mas também busca romper com preconceitos que estabelecem
lugares imutáveis para os valores da arte.
Diante
do panorama apontado neste trabalho, se faz necessário manter acesa a demanda
por investigações que procurem encontrar caminhos para a ampliação do
repertório de possíveis comportamentos e escolhas do interator. Nesse sentido,
além de verificar que tipo de arte está sendo
produzida nos meios eletrônicos ou nos tradicionais, há uma demanda por
pesquisas multidisciplinares que tenham como objetivo não apenas a redefinição
de habilidades técnicas de leitura interativa, mas do efetivo poder de ocupação
da esfera pública que tais obras potencializam.
(Fernanda
Pires Alvarenga Fernandes, Doutoranda no PPG Letras Estudos Literários da
Universidade Federal de Juiz de Fora, mestre em Letras e bacharel em
Comunicação Social pela UFJF).
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