Tania T. S. Nunes, doutoranda UFF
O bote é cilada / Adverte à naja
A flauta do encantador
Melhor seduz / Quem se deixa dominar (p. 23)
Em tempos de corpos enrijecidos e descrentes da vida,
o título de um livro de poemas pode soar reticente e desafiador. A princípio, Lágrima palhaça é aquela que o mundo já
não comporta, mas que insiste em rolar. Poderia ser uma lágrima escondida,
envergonhada. Afinal, vivemos tempos duros, um mundo quase destituído de
sentido em que a lágrima sentimental, ingênua ou de alegria já não tem mais
espaço para correr e molhar nossos rostos.
E, por esse caminho, adentremos a
poesia de Alexandre Faria, Lágrima
Palhaça (Aquela Editora, Juiz de Fora, 2012). A edição em formato de bolso
sugere que a poesia seja carregada no dia-a-dia. As letras do título estão penduradas,
estilo bonecos de marionetes. Desconfia-se que algo mais queira dizer... O “G”
invertido aponta para um avesso. Tudo isso são só coincidências ou poderão trazer
sentido para a leitura dos poemas que se oferecem por trás da forte seara verde
da capa? Qual a expressão desse avesso?
O número de poemas da obra integra
um universo mágico. São vinte e cinco. Vinte e cinco foram também os anos de
engavetamento desses escritos, nos diz o poeta em Nota prévia. Mas algo mais se começa a descortinar em Papo de Bilheteiro, texto inicial de
André Capilé e, também, no título do primeiro poema: Circo. A temática aí vai anunciada.
Estamos em terras perigosas que nos aproximam
do mundo encantado da magia circense onde a poesia de Alexandre passeia
subentendida de infância e embutida na memória, na delicadeza dos gestos, no
riso retirado facilmente até na cena mais simples e comum pelo palhaço.
A poesia-criança de ver o mundo com
olhos puros, olhar sonhador de menino ingênuo que ainda não sabe o tempo
porvir, mas vive o presente feliz, crédulo e crente, a acreditar no que vê e no que intui em seu
imaginário.
Hoje tem marmelada?
Hoje tem goiabada?
Tem sim senhor!
Tem poesia. Pão e circo eram de que precisava o povo antigo. Poesia é
alimento, é pão e criação. De poesia e circo, todos precisam. Vamos nos
lambuzar! Vamos “descobrir à vista, o que não havia sido posto à venda”,
anuncia o Bilheteiro. Esse é o ingresso em Lágrima
Palhaça. Essa é a magia para penetrar na mágica das poesias de Alexandre
Faria. Unir os sentidos ao sentido.
A expressão do avesso é o palhaço, a
figura ambígua. “É o avesso da mentira,/
Pintura que se retira/ E desvenda outra mentira, É o verso.” (2012, p. 13).
No primeiro poema, o G invertido da capa sobressai
nos elementos da composição. Lê-se: “O
palhaço/ ... E todos os seus filhos/ São palhaços, / Marionetes dos risos,
/Vedetes do circo,/ Objetos de uma alegria
/ Que o próprio show proporciona,/ Gargalhada
que sempre funciona / Na única vida como vida.// O palhaço / É a lágrima
proibida, /O tempero ardido/ Do seu prato de comida,/ É o verso / desgastado, corroído, / Medo e ira
disfarçados, /Riso e festa plagiados
/ Único verso já escrito”. (2012, p. 13).
Gargalhada desgastada, riso e festa
plagiados: é o verso, é a alegria contida, é a figura ambígua do palhaço. É o
poema. Todos esses elementos, em tempos medrosos de mendicância social e
cultural, insistem em sobreviver. A Lágrima
Palhaça é a lágrima proibida.
E o poeta ao ser indagado sobre se
há sentimentalidade em Lágrima Palhaça
aponta o poema Amor:
O que esfria a mulher do atirador
Não é o risco do milimétrico
desvio
O tiro de venda nos olhos
O rufo o silêncio os ohs dos
vizinhos//
Nem o quanto lhe cabe das
plantas //
Nem o cuidado que ele tem com a
tábua (2012, p. 32).
O que esfria a mulher do atirador? O poema não
responde. Mas não é preciso dizê-lo. Está no título do poema. O cuidado que ele
tem com a tábua e com a arte implica no avesso da vida, o cuidado em preservar
o amor na figuração da mulher entregue às facas. E, ela ante o perigo da vida
entrega-se ao risco, ama e sente-se amada naquele momento.
No entanto, não instile a memória de um adulto
sensível ao falar da infância, do circo, do palhaço, das marionetes e malabares
porque a lembrança refaz-se rapidamente no tempo seja ele em que distância
estiver. São imagens marcadas a gargalhadas no inconsciente coletivo. Isso é Trânsito.
Nesse poema se lê: “São malabares as motos / Do globo da morte” (2012, p.
26). São malabares as nossas lembranças escondidas e, às vezes elas precisam
transitar pelo tempo presente para fazer o homem não esquecer de que está vivo
e a morte espreita a qualquer momento, porque “A criança no retrato/ Uma jaula// E o futuro não era presa / do
adulto” (2012, p. 36).
Lágrima
Palhaça são instantes de poesia. São puras gotas de arte em pequenos
frascos trabalhados com muito amor sobre o verso-criança. Poucos versos, o jogo
da métrica presente no sentido das palavras.
O leitor vai enveredando... a memória vai escavando
momentos e personagens do circo... verso a verso... até a última sílaba: Plantio: “Ri do fim / Que essa lágrima fecunda”. É uma afirmação
contundente. Mas ela surpreende e esvazia o leitor porque deixa o gosto de
quero mais. Assim, a poesia é Sedução,
é cilada. É como comer goiabada e não ter a chance de se lambuzar. E o poeta
torna-se um Bamba. Constrói “pé ante pé / a vara / a sombrinha // Não há
corda entre os extremos da espera”.
Seus versos são “eletrochoques para não esquecer”. Lágrima Palhaça pode até ser uma lágrima
que não tenha razão de ser, mas é aquela que diante da solidão dos tempos e da
memória escavada em vasos insiste em brotar. Por isso a partir dela esperamos
sempre mais. Esperamos outros poemas, outras construções, outros exercícios de
sutileza transformados em arte.
Lágrima Palhaça é, enfim, semente de poesia colhida em seara fértil.
Como semente, só ela é capaz de gerar, nutrir, suprimir, suprir ou acudir como
qualquer criação depositada pelas mãos de um poeta – sensível e dentro do
mundo, no limite do desequilíbrio mas equilibrado entre o avesso e o vivido – pode
produzir.
Riamos todos do
fim...
Porque foi possível
chegar lá.
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