terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Quando o luar bate na relva


Alberto Caeiro, poeta personagem inventado por Fernando Pessoa, é tão fingidor quanto o próprio criador.
Caeiro está sempre negando uma relação de semelhança, que estabelecemos pela linguagem, entre duas coisas:

Aquela Senhora tem um piano 
Que é agradável mas não é o correr dos rios
Nem o murmúrio que as árvores fazem ...

Para que é preciso ter um piano?
O melhor é ter ouvidos
E amar a Natureza.

Entre a natureza: o correr dos rios e o murmúrio das árvores, e sua representação: os sons do piano; o poeta escolhe a natureza.

Num outro poema diz:

Não me importo com as rimas. Raras vezes
Há duas árvores iguais, uma ao lado da outra.

E noutro, estes versos, em que reafirma a primazia da natureza sobre a linguagem:

Mas isso (tristes de nós que trazemos a alma vestida!),
Isso exige um estudo profundo,
Uma aprendizagem de desaprender
E uma seqüestração na liberdade daquele convento
De que os poetas dizem que as estrelas são as freiras eternas
E as flores as penitentes convictas de um só dia,
Mas onde afinal as estrelas não são senão estrelas
Nem as flores senão flores.
Sendo por isso que lhes chamamos estrelas e flores.

E por inteiro a canção XXXV, que será desmentida mais adiante quando este  pastor de rebanhos estiver doente:

O Luar Através dos altos ramos,
Dizem os poetas todos que ele é mais
Que o luar através dos altos ramos.
.
Mas para mim, que não sei o que penso,
O que o luar através dos altos ramos
É, além de ser
O luar através dos altos ramos,
É não ser mais
Que o luar através dos altos ramos.


Alberto Caeiro não é uma pessoa, é um personagem; e como tal é linguagem. Não poderia desconstruir a linguagem  por inteiro. Desconstruiria a si mesmo.
Fingidor como Fernando Pessoa, seu criador, Alberto Caeiro, a criatura, adoece. E nesta doença fingida se reconcilia com a linguagem:


    XV

As Quatro Canções que seguem
Separam-se de tudo o que eu penso,
Mentem a tudo o que eu sinto,
São do contrário do que eu sou ...

Escrevi-as estando doente
E por isso elas são naturais
E concordam com aquilo que sinto,
Concordam com aquilo com que não concordam...
Estando doente devo pensar o contrário
Do que penso quando estou são.
(Senão não estaria doente),
Devo sentir o contrário do que sinto
Quando sou eu na saúde,
Devo mentir à minha natureza
De criatura que sente de certa maneira
Devo ser todo doente — idéias e tudo.
Quando estou doente, não estou doente para outra cousa.

Por isso essas canções que me renegam
Não são capazes de me renegar
E são a paisagem da minha alma de noite,
A mesma ao contrário.



A quarta canção:


XIX

O luar quando bate na relva
Não sei que coisa me lembra...
Lembra-me a voz da criada velha
Contando-me contos de fadas.
E de como Nossa Senhora vestida de mendiga
Andava à noite nas estradas
Socorrendo as crianças maltratadas...

Se eu já não posso crer que isso é verdade
Para que bate o luar na relva?


elesbão
(22/01/12)

Nenhum comentário:

Postar um comentário