Resenha Eletrônica
Uma história
da esperteza editorial
Revista Época - 09/01/2012
O relançamento de "História da literatura
ocidental", de Otto Maria Carpeaux, pela editora Leya, é uma cópia fiel da
edição feita pelo Senado. Antes disso, a
Leya publicou uma biografia autorizada do presidente do Senado, José Sarney.
MURILO RAMOS
História da literatura ocidental,
de autoria do austríaco Otto Maria
Carpeaux (1900-1978), é uma obra
monumental. Um intelectual brilhante, radicado
no Brasil, aonde chegou em 1939 da Europa, Carpeaux, um judeu convertido ao catolicismo para fugir do
nazismo, adotou o sobrenome afrancesado
em substituição ao original Karpfen, de
origem germânica. Ele discorre na obra,
de forma fluente e erudita, sobre 8 mil
escritores, desde Homero, na Grécia Antiga, até os autores modernos da década de 1970. Uma
preciosidade de fôlego enciclopédico,
sem similares no mundo, a obra, até
2011, só tinha tido três edições: uma em 1959
(Edições O Cruzeiro); outra em 1978 (Editorial Alhambra), revisada e atualizada pelo próprio
Carpeaux; e a terceira em 2008 (editora
do Senado). No fim do ano passado,
História da literatura ocidental foi relançada
pela editora Leya em quatro volumes, sendo vendidos ao preço de R$ 179,90 exclusivamente nas lojas
da rede da Livraria Cultura (que
coassina a edição).
Num país ainda tão pouco afeito à leitura, o
relançamento de uma obra tão seminal só
poderia ser digna de aplausos e elogios.
Não fosse por uma questão. À exceção da capa,
contracapa e das páginas iniciais, a edição da Leya (uma editora comercial de origem portuguesa) é uma
cópia fiel da edição do Senado. Ela só
foi possível graças a uma daquelas ações
financiadas em parte com dinheiro
público, bem típicas de certas rodinhas do mundo cultural. A cópia feita pela Leya é tão
flagrante que até detalhes do projeto
gráfico criado para os livros publicados
pela editora do Senado são reproduzidos na
nova edição. Uma das marcas características da coleção de livros do Senado é um pontilhado nas capas
e no alto das páginas. A edição recente
de História da literatura ocidental da
Leya reproduz o mesmo pontilhado em suas
páginas.
O projeto gráfico dos livros do
Senado foi feito pelo publicitário
Achilles Milan Neto. Ele venceu uma
concorrência pública no fim dos anos 1990
para desenvolvê-lo e recebeu R$ 10 mil na ocasião (cerca de R$ 24 mil em valores atualizados). Milan
Neto frequentou as dependências da
Gráfica do Senado para adaptar suas
criações às necessidades específicas e aos
equipamentos de seu cliente. "Defini espaçamento, corpo da letra, entrelinhas e a capitular que
seriam usados nos livros. Deixei uma
espécie de apostila com orientações aos
servidores do Senado", afirmou. Ele se
declarou surpreso com a reprodução de seu projeto gráfico na nova edição do livro de Carpeaux e
disse que consultará advogados para
saber se terá direito a receber parte
dos recursos obtidos com as vendas
realizadas pela Leya.
A Leya teria feito, então, um plágio descarado da edição do Senado? O
problema não pode ser resumido assim. A
editora portuguesa fez questão de dar os
créditos do projeto gráfico do miolo do
livro a Milan Neto (mesmo sem seu conhecimento), de registrar um agradecimento ao Senado pela
"cessão dos direitos da obra"
e de atribuir a edição ao
vice-presidente do Conselho Editorial do Senado, Joaquim Campelo Marques. O próprio diretor editorial
da Leya, Pascoal Soto, reconhece que
houve uma cópia da edição do Senado.
"Reproduzi a edição que ele (Campelo) fez. É igual. O Campelo me autorizou a fazer do
jeito que eu fiz e estou orgulhoso
disso", disse Soto a ÉPOCA.
Para copiar a edição da forma
como foi feita, o mais barato e rápido, para a Leya, seria simplesmente
reimprimir um arquivo digital recebido do Senado. Mas Pascoal conta outra
história. "O Senado não cedeu nada. Tenho a edição impressa. Temos
recursos para reproduzir. Digitamos e
reproduzimos tal como foi feito pelo
Senado", diz. Essa é uma versão considerada pouco verossímil pelos
conhecedores dos meandros das impressões gráficas. "Seria um trabalho
gigantesco para a Leya digitalizar as imagens para pôr no mesmo formato da
edição do Senado", diz o editor José Mário Pereira, dono da editora
Topbooks.
A história da cópia da edição da História da literatura ocidental
poderia se limitar a uma trapalhada nota
de rodapé, mal contada por seus autores,
não fosse a proximidade da Leya com o
presidente do Senado e do Conselho Editorial, José Sarney (PMDB-AP), e o vice-presidente do
Conselho, Joaquim Campelo. A biografia
autorizada de Sarney, escrita pela
jornalista Regina Echeverria, que traça um
retrato simpático do político do Maranhão, foi publicada pela Leya. Na semana passada, Sarney também
entregou à editora seu livro de
memórias, que deverá ser publicada no
segundo semestre deste ano. A Leya, segundo confirmou Pascoal Soto, também examina a possibilidade
de publicar um dicionário de autoria de
Campelo.
Maranhense da cidade de Viana, Campelo, de 80 anos, é
amigo de Sarney desde a década de 1940,
quando estudaram no mesmo colégio.
Campelo foi amigo de Carpeaux, ajudou a revisar
a edição de sua obra pela Alhambra em 1978 e ganhou fama ao auxiliar Aurélio Buarque de Holanda na
elaboração do dicionário mais conhecido
do Brasil. Casado com Margarida Patriota
e cunhado do ministro das Relações Exteriores,
Antonio Patriota, Campelo assessora Sarney
desde a Presidência da República, no fim dos anos 1980. Ele era responsável por preparar discursos
para o então presidente e por ler
documentos importantes antes da
assinatura presidencial. Como vice-presidente do Conselho Editorial do Senado, comanda a
editora do Senado. Foi ele quem negociou
com Soto a edição recente de História da literatura ocidental.
A suspeita de que a Leya foi favorecida é reforçada
porque havia editoras concorrentes
interessadas na reedição da obra de
Carpeaux. José Mário Pereira, da Topbooks, disse que prepara a edição de
História da literatura ocidental há alguns anos e foi surpreendido com o
relançamento da Leya. "Estimo gastar entre R$ 60 mil e R$ 70 mil com os três
volumes que vamos lançar. Esse é aproximadamente o montante economizado pela
Leya quando o Senado cedeu os direitos da obra à editora", diz Pereira.
"O Senado ajudou uma editora estrangeira. Por que escolheu ela?" No cálculo feito por Pereira, estão as
previsões de despesas com pesquisas,
revisões e digitalizações.
Tanto Sarney como Campelo defendem-se e dizem que não houve nem
favorecimento à Leya nem cessão de
direitos de História da literatura
ocidental, uma vez que se trata de uma obra de domínio público. Uma obra torna-se de domínio público
70 anos após a morte de seu autor ou quando o autor não deixa herdeiros, caso de Carpeaux. Mas há aí também
uma confusão. Segundo a advogada especializada em direitos autorais Sônia Maria
D"Elboux, ainda que uma obra seja de domínio público, uma editora que se
utiliza da criação intelectual de outra, constituída pela seleção, organização
ou disposição desse conteúdo estará violando direitos autorais. "Para que
haja proteção autoral, exigem-se
criatividade e originalidade", diz
Sônia.
Para o público interessado em
literatura, o relançamento da obra de
Carpeaux trouxe um duplo benefício. Além
de tornar o livro mais acessível a novos
leitores, a reedição permitiu uma redução do preço pago pelos quatro volumes. Até o final do ano
passado, a História da literatura
ocidental, editada pelo Senado, só podia
ser comprada pela internet ao preço de R$ 200.
Alertado de que a Livraria Cultura vende os quatro volumes a R$ 179,90, o Senado, na semana
passada, resolveu baixar seu preço para
R$ 170.
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