Larissa Andrioli*
Um texto, independente de seu
conteúdo, é sempre um fato cultural. Portanto, depende da época, dos valores,
do escritor, dos grupos sociais, da cultura em que foi elaborado. Assim, era de
se esperar que uma sociedade que a cada dia tenta se mostrar mais liberal, que
leva ao ar programas de TV de cunho sensual em horário nobre e invade cada vez
mais a vida privada do ser humano recebesse um livro de poemas eróticos de
forma não necessariamente natural, mas no mínimo crítica. Era de se esperar que o público o recebesse
como recebe qualquer outro livro, e em torno dele girassem discussões como as
que giram em torno de Saramago, Tezza, Ruffato ou qualquer outro escritor, ou
seja, que problematizasse o texto publicado sem rebaixá-lo antes de se aprofundar
nele. Certo? Não. Em 2008, o Brasil se viu no meio de uma discussão sobre até
que ponto o moralismo e a hipocrisia ainda estariam inseridos na sociedade.
Após publicar Cosmologia do impreciso
(2008), seu quarto livro, e ser convidado pela própria diretoria da Escola Parque,
onde trabalhava, para falar na sala de aula sobre o trabalho de escritor, Oswaldo
Martins foi demitido. O motivo: escrevia poesias de conteúdo erótico
pornográfico.1
A representação erótica é muitas
vezes colocada no nível das coisas nãos érias, das manifestações imorais, uma
espécie de piada infame que se conta escondido, da qual todos riem
disfarçadamente e classificam de “humor negro” ou politicamente incorreto – o
que traduz os pensamentos de boa parte da sociedade.
[i]Da
mesma forma, o sexo é sempre negado: o prazer é sujo, é baixo, carnal (“Não me
arrependo do pecado triste / que sujou minha carne, suja toda carne”, já dizia Drummond)
– e, portanto, deve ser rechaçado e superado. Entretanto, um detalhe é
esquecido: o sexo é universal e indispensável. Extrapolando o discurso
religioso de que
o sexo é necessário para a
procriação, é possível dizer que, mais que instrumento de procriação e
preservação da espécie, ele é, antes de tudo, necessário para viver.
Para suprir essa necessidade, não
bastam as cenas eróticas que aparecem nas novelas: a orientação do prazer (a
representação erótica prevista pelo discurso de autoridade, ou seja, aquela
representação autorizada e legitimada que vai ao ar em filmes, novelas, etc.)
não só limita e anula o prazer, como também favorece a preservação de preconceitos
correntes na sociedade. A necessidade de controlar o sexo (e daí a orientação
do prazer) está ligada à sociedade do trabalho. Um corpo guiado pelo prazer
nunca se volta ao trabalho alienado e à produção, que embasam a sociedade em
que vivemos. O prazer guia, sim, a um trabalho – mas ao trabalho criativo, e
não ao produtivo:
A reativação da sexualidade
polimórfica e narcisista deixa de ser uma ameaça à cultura e pode levar, ela
própria, à criação cultural, se o organismo existir não como um instrumento de
trabalho alienado, mas como um sujeito de auto-realização – por outras
palavras, se o trabalho socialmente útil for, ao mesmo tempo, a transparente
satisfação de uma necessidade individual (Marcuse: 1975, 183).
Entretanto, à medida que a sexualidade
é organizada e controlada, a fantasia afirma-se, principalmente, contra a sexualidade
normal, ou seja, se manifesta no campo das perversões: As formas inumanas,
compulsivas, coercitivas e destrutivas dessas perversões parecem estar
associadas à perversão geral da existência humana em uma cultura repressiva,
mas as perversões têm uma substância instintiva distinta dessa formas; e essa substância pode perfeitamente
expressar-se em outras formas compatíveis com a moralidade na civilização de
elevado grau (Marcuse: 1975, 178).3
É possível que, numa organização
sexual menos repressiva, a libertação de Eros possa criar novas e duradouras
relações de trabalho. Tudo isso para dizer que Cosmologia do impreciso é uma leitura essencial: combate a separação
entre corpo e espírito para defender a liberdade e a afirmação da vida acima de
tudo. Apropria-se da tradição poética, faz diversos intertextos com artes
plásticas e música e atinge um objetivo importante: transgride. É sempre perpassado
pelo passo à frente, pela afirmação de algo fora de circulação. É o que acontece,
por exemplo, no poema “lições oswaldianas”. As ideias do poema “Erro de português”,
de Oswald de Andrade, que pode ser visto abaixo,
Quando o português chegou
Debaixo de uma bruta chuva
Vestiu o índio
Que pena!
Fosse uma manhã de sol
O índio tinha despido
O português (Andrade: 2003).
reaparecem no poema de Oswaldo
Martins:
as professoras dariam nuas as de
história
por sua vez alunas e alunos também
nus
assimilariam o que a história nos
roubou
a celebração do corpo e do
espírito assim
recolocados permitiriam a nossos
jovens
a experiência dos ferozes
tupinambá (Martins: 2008, 34).
A partir da leitura do poema de
Oswald, Oswaldo Martins cria sua tese de liberdade através da nudez, e é nesse
poema que se encontra uma ideia essencial para a compreensão de Cosmologia do impreciso: “a celebração do
corpo e do espírito”. Pois é disto que trata a poesia de Oswaldo: celebração.
E, a partir da celebração de algo reprimido na sociedade, transgride e busca a
libertação. A epígrafe geral do livro fala desse par: “a boca é vinho tinto /
as mãos são de absinto / e a cintura dela é a estrela por nascer” – tais versos de Aldir Blanc misturam
elementos ligados ao prazer carnal (boca/vinho, mãos/absinto, cintura) com o
elemento sublime, puro (por nascer). Mais que mistura, unem no mesmo 4 corpo e
tornam, então, o corpo e o espírito inseparáveis e indistinguíveis: na medida
em que os elementos se confundem, é impossível dizer o que é ou não profano, e
a polaridade se dissolve: a carne, símbolo do profano, assume tom sagrado e o
espírito torna-se profano.
Se já é impossível ler um livro
de Oswaldo Martins sem ser sempre assaltado pela mesma palavra, escrever sobre
o poeta sem tê-la em mente é impensável. A ideia é sempre transgressão: o que
dizer da poesia que questiona abertamente os valores da sociedade e diz
“caralho”, “buceta” (sim, grafada com u), “foder”? Mais uma vez, o poeta retoma
a tradição: vai ao século XV e resgata a forma de poetar de Aretino, que não só
expressa o sexo em sua poesia como o coloca como questão existencial:
Fottiamci, vita mia, fottiamci
presto,
Poi che per fotter tutti nati
siamo,
E se il cazzo ami tu, la potta io
bramo,
Chè il mondo saria nullo senza
questo.
[Fodamos, meu amor, fodamos
presto,
Pois foi para foder que se
nasceu,
E se amas o caralho, a cona amo
eu;
Sem isto, fora o mundo bem
molesto] (Aretino: 2000, 68-69).
Oswaldo Martins tem seu
equivalente: em Cosmologia do impreciso, sexo e vida se confundem. “Bucetas”
pode dar lugar a “Eros” – e Eros não é menos que vida. Assim como o corpo
feminino, a arte é também vida e fonte de prazer – é possível sentir tanto
prazer com ela quanto se sente com a relação sexual. Volta, então, a ideia de
corpo e espírito com que Oswaldo trabalha: se a arte, segundo a visão
tradicional, é uma atividade sublime, ao ligá-la tão intimamente ao corpo o poeta
está mais uma vez afirmando que o espírito e o corpo não se separam: no sublime
da arte, há a criação erótica, carnal – há o prazer.
quando quadros e livros
bucetas são
não são bucetas que se levam
aos livros e quadros
senão que quadros e livros
buscam
o que de bucetas
são
(Martins: 2008, 93).
O caráter transgressor da poesia
de Oswaldo não está somente na utilização da linguagem sexual para abordar
outros assuntos, como o poema acima citado mostra. Na subdivisão “Estudo para
pinturas sacras”, do Cosmologia, o poeta voltase para a religião: começa por
desconstruir a imagem de “virgem” de Maria. A virgem, figura tão pura nas
escrituras, é aqui mulher real e faz intrigas, obtém favores, finge e, o mais importante, faz sexo. Fala de
sexo. Fala de Deus e de sexoao mesmo tempo. Reúne sagrado e profano.
A virgem de olhos doces tece
intrigas
para conquistar os favores
de deus
para isso usa de artifícios
finge no olhar vazio
ser a menina dos olhos
depois diz para isabel:
fodi com deus.
ah, isabel, isabel,
com ele
é como se fodesse com todos os
homens (Martins: 2008, 105).
Nesse poema, aparece uma questão
interessante: aqui o sexo com Deus é uma forma de entrar em contato com todos
os outros homens. É como a comunhão – mas feita a partir do corpo. Se, ao ingerir
o que representa o corpo de Deus, a pessoa entra em contato com este e ao mesmo
tempo com todos os seus irmãos, aqui a proposta é a mesma, mas a comunhão é feita
pelo corpo em si, e não por uma representação dele. É possível enxergar também
a questão da projeção divina no homem. Se o homem foi feito à imagem e semelhança
de Deus, por que seria o sexo uma característica nossa e exclusivamente nossa,
carnal? Não: aqui, o sexo atinge também a divindade.
Depois, retoma os “Ensaios sobre
a pintura”, de Diderot, em que o filósofo, escritor e crítico de arte faz uma
série de considerações sobre como seria a relação entre arte e sexualidade,
caso esta não fosse brutalmente reprimida pelo cristianismo:
Se nossa religião não fosse uma
sombria e insossa metafísica, [...] se esse abominável cristianismo não se tivesse
estabelecido mediante assassinato e o derramamento de sangue, [...] se todos os
nossos santos e santas não estivessem cobertos até a ponta do nariz [...] se a Virgem
Maria houvesse sido a mãe do prazer, [...] se, nas bodas de Canaã, Cristo,
tocado de vinho, um tanto desabusado, houvesse percorrido o colo de uma das
jovens das bodas e as nádegas de Santa Joana [...] veríeis o que fariam nossos
pintores, poetas e escultores; em que tom falaríamos desses encantos, que
exerceriam um papel tão sublime e tão admirável na história de nossa religião e
de nosso Deus; e com que olhos contemplaríamos a beleza à qual deveríamos o nascimento,
a encarnação do Salvador e a graça de nossa redenção
(Diderot: 1993, 94-95).
A transposição para a poesia é
feita a partir da tomada de pequenos trechos de Diderot (como “se Madalena
houvesse tido alguma aventura galante com Cristo” ou “se as alegrias de nosso
paraíso não se reduzissem a uma absurda visão beatífica”), que são em seguida
desenvolvidos por Oswaldo Martins:
4
cristo nas bodas de caná houvesse
percorrido o colo das moças
e com os olhos inebriados de
tesão
tocasse aqui uma teta
ali as curvas
as portentosas nádegas
da mulher que se oferecia
mais que a morte
seria a carne
nossa unção (Martins: 2008, 112).
A grande questão levantada nesse
poema é o erotismo, que ao mesmo tempo em que
se relaciona à vida, também é
vida. E mais: é unção, é algo sagrado. E este seria um valor universal, não fosse
a imagem criada e repassada até hoje pelas religiões, que têm em Jesus Cristo a
personalização de seus valores – e é sua imagem de ausência de sexualidade que
nos foi passada como exemplo de conduta.
A adoção do erotismo como postura
política é uma visão possível durante a leitura de Cosmologia do impreciso. Propor um mundo mais
livre dos entraves colocados pelos valores da sociedade ocidental faz parte da
proposta modernista, mas o erotismo não é um recurso criado pelos modernistas.
No século XV, houve o já citado Aretino, e no Brasil temos Gregório de Matos e
Bernardo Guimarães como representantes do uso desse recurso. Essa postura,
usada como forma de atacar diretamente a moral hipócrita, é defendida por
Aretino no início de seus Sonetos:
Diverti-me [...] escrevendo os
sonetos que podeis ver [...] sob cada pintura. A indecente memória deles, eu a
dedico a todos os hipócritas, pois não tenho mais paciência para as suas
mesquinhas censuras, para o seu sujo costume de dizer aos olhos que não podem
ver o que mais os deleita (Aretino: 2000, 5).
Essa perspectiva é retomada no
Modernismo como uma dentre as tantas formas utilizadas para promover a
liberdade (os poemas-piada de Oswald de Andrade, os versos brancos e os versos
livres). Resgatar uma visão pré-cristã do corpo e dos atos que este pratica,
valorizar o sensual e desconstruir os valores consagrados da moral estabelecida
são preceitos de uma poesia erótica, já que a sociedade cristã destituiu o
erotismo dos seus valores primários de celebração da vida. A crença em Eros
contribuía para a livre transição do erótico na sociedade. Eros, para a
tradição filosófica, une sombra e luz, matéria e espírito, sexo e ideia –contribui
com a passagem do caos ao cosmo. É um dos deuses primordiais da cultura
pré-cristã e representa a vida e os prazeres vitais.
O ataque aos valores da sociedade
judaico-cristã que reprimiu Eros é uma forma de retomar os valores eróticos
primários e reafirmar a liberdade, que na sociedade capitalista é tão
precarizada em detrimento da ética, que se torna outra questão central de
Cosmologia.
a alice no país das baboseiras
é uma garota esperta
prefere foder com a coleguinha
usar batom
celular
cortas as cabeças
dos mendigos (Martins: 2008, 41).
Aqui, aparece a polissemia do
verbo “foder”: ele deixa de significar
sexo para expressar a falta de ética cada vez mais presente e tolerada nas
relações humanas. Diante da necessidade de cooperação, mas tendo de conviver
com os impulsos egoístas, a sociedade elaborou regras e leis morais que regulam
as ações humanas. Essas leis e regras baseiam-se numa espécie de “jogo de
interesses”.
Assim, necessitando da ajuda de
grandes massas, mostra-se ao outro as vantagens de participar desse sistema de
trocas. A ideia defendida pela ética capitalista é a de que, para construir o
bem-estar da coletividade, é melhor apelar não ao altruísmo da humanidade, mas
à defesa dos interesses desta em relações de mercado. Dessa forma, apresenta-se
o egoísmo como melhor solução para os problemas de determinado grupo social. Os
juízos morais passaram a ser pautados na eficácia econômica do sistema de mercado,
que se tornou o critério ético fundamental. No capitalismo, a ética se reduz a
uma questão de pura técnica. É um sistema em que, de algum modo, a ideia de
realização está sempre ligada à satisfação material – seja obtendo bens materiais, seja tendo
maiores oportunidades de lazer, seja ostentando aparência de poder.
Assim, é interessante notar que,
no poema de Oswaldo Martins, as atitudes de “foder com a coleguinha” e “usar
batom/ celular” são postos como sinônimo de esperteza. É um poema que se encaixa
na realidade do pensamento capitalista e, por isso, traduz – em tom de crítica – as características da sociedade moderna. Símbolo
da civilização moderna, o consumismo egocêntrico transforma as relações sociais
numa arena, onde a força e a esperteza fazem o vencedor. Num ambiente em que o
objetivo é o lucro a qualquer custo, as considerações éticas são as primeiras a
perder seu valor. É isto que Oswaldo Martins critica no poema: o detrimento da
ética de convivência solidária que, bem como o erotismo, foi se perdendo e
sendo reprimida durante a construção da sociedade capitalista.
O erotismo não é a sexualidade, e
sim sua metáfora, e o texto erótico é a representação do erotismo. Mais: creio
que o texto erótico possa ser também uma metáfora da liberdade. E cada poema de
Oswaldo Martins é sempre uma afirmação disso. Esse caráter pode ser melhor
entendido se pensarmos que Martins não parte de um ato sexual para criar sua
poesia – ele utiliza elementos do sexo
para problematizar outras questões, como é o caso de “antimetafísica das
apreciações”:
quadros
assim como livros
cheiram a buceta
há livros e quadros
bolorentos
dir-se-iam uma buceta
sem uso
como dizem das bucetas
bem usadas
há quadros e livros
que relampejam (Martins: 2008,
58).
A “buceta” do poema não é física.
É um elemento que remete à sexualidade em geral e pode, portanto, ser
relacionada à arte, já que é isso que Oswaldo propõe: a transformação da arte
em sexo, em fonte de prazer antes de qualquer coisa. Por isso, Cosmologia do impreciso é mais que um belo
livro: é um livro movido por uma tese que atinge a todos nós, na qual todos
deveríamos pensar e sobre a qual discutir: até que ponto falta tornar nossa
vida mais sexual, no sentido mais erótico da palavra, ou seja, vital.
Referências
ANDRADE, Oswald. Obras completas.
Pau Brasil. São Paulo: Editora Globo, 2006.
ARETINO, Pietro. Sonetos
luxuriosos. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
BATAILLE, Georges. O erotismo.
Porto Alegre: L&PM, 1987.
DIDEROT, Denis. Ensaios sobre a
pintura. Campinas: Papirus, 1993.
DURIGAN, Jesus Antônio. Erotismo
e literatura. São Paulo: Ática, 1985.
MARCUSE, Herbert. Eros e
civilização. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1975
MARTINS, Oswaldo. Cosmologia do
impreciso. Rio de Janeiro: 7Letras, 2008.
PAZ, Octavio. A dupla chama: amor
e erotismo. São Paulo: Si
Publicado em Poesia e prosa: hoje, agora em setembro 2010
[i]
* Graduanda em Letras (Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF).
1
A Escola Parque não declarou
isto abertamente; alegou “diferenças ideológicas”.
Entretanto, foi a reclamação
de alguns pais de alunos que desencadeou a demissão.
Cf. entrevista com Oswaldo
Martins e matéria sobre o assunto disponível em:
http://oglobo.globo.com/educacao/mat/2008/10/06/professor_demitido_da_escola
_parque_diz_que_nao_recorrera_justica-548591970.asp.
Acesso em 22 jun. 2010.
Cf. matéria também em:
http://oglobo.globo.com/educacao/mat/2008/10/05/demissao_de_professor_da_es
cola_parque_que_escreveu_poemas_eroticos_alvo_de_criticas-548563161.asp.
Acesso em 22 jun. 2010.2
Adorei o texto. a poesia de Martins é instigante e através do texto de Larissa, obtive respostas para varias questões que mexeram comigo e nãosabia bem o porquê. Valeu Larissa
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