sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Pelo orgasmo a explicação do mundo: o erotismo político de Oswaldo Martins


Larissa Andrioli*

Um texto, independente de seu conteúdo, é sempre um fato cultural. Portanto, depende da época, dos valores, do escritor, dos grupos sociais, da cultura em que foi elaborado. Assim, era de se esperar que uma sociedade que a cada dia tenta se mostrar mais liberal, que leva ao ar programas de TV de cunho sensual em horário nobre e invade cada vez mais a vida privada do ser humano recebesse um livro de poemas eróticos de forma não necessariamente natural, mas no mínimo crítica.  Era de se esperar que o público o recebesse como recebe qualquer outro livro, e em torno dele girassem discussões como as que giram em torno de Saramago, Tezza, Ruffato ou qualquer outro escritor, ou seja, que problematizasse o texto publicado sem rebaixá-lo antes de se aprofundar nele. Certo? Não. Em 2008, o Brasil se viu no meio de uma discussão sobre até que ponto o moralismo e a hipocrisia ainda estariam inseridos na sociedade. Após publicar  Cosmologia do impreciso (2008), seu quarto livro, e ser convidado pela própria diretoria da Escola Parque, onde trabalhava, para falar na sala de aula sobre o trabalho de escritor, Oswaldo Martins foi demitido. O motivo: escrevia poesias de conteúdo erótico pornográfico.1

A representação erótica é muitas vezes colocada no nível das coisas nãos érias, das manifestações imorais, uma espécie de piada infame que se conta escondido, da qual todos riem disfarçadamente e classificam de “humor negro” ou politicamente incorreto – o que traduz os pensamentos de boa parte da sociedade.
                                              
[i]Da mesma forma, o sexo é sempre negado: o prazer é sujo, é baixo, carnal (“Não me arrependo do pecado triste / que sujou minha carne, suja toda carne”, já dizia Drummond) – e, portanto, deve ser rechaçado e superado. Entretanto, um detalhe é esquecido: o sexo é universal e indispensável. Extrapolando o discurso religioso de que
o sexo é necessário para a procriação, é possível dizer que, mais que instrumento de procriação e preservação da espécie, ele é, antes de tudo, necessário para viver.

Para suprir essa necessidade, não bastam as cenas eróticas que aparecem nas novelas: a orientação do prazer (a representação erótica prevista pelo discurso de autoridade, ou seja, aquela representação autorizada e legitimada que vai ao ar em filmes, novelas, etc.) não só limita e anula o prazer, como também favorece a preservação de preconceitos correntes na sociedade. A necessidade de controlar o sexo (e daí a orientação do prazer) está ligada à sociedade do trabalho. Um corpo guiado pelo prazer nunca se volta ao trabalho alienado e à produção, que embasam a sociedade em que vivemos. O prazer guia, sim, a um trabalho – mas ao trabalho criativo, e não ao produtivo:

A reativação da sexualidade polimórfica e narcisista deixa de ser uma ameaça à cultura e pode levar, ela própria, à criação cultural, se o organismo existir não como um instrumento de trabalho alienado, mas como um sujeito de auto-realização – por outras palavras, se o trabalho socialmente útil for, ao mesmo tempo, a transparente satisfação de uma necessidade individual (Marcuse: 1975, 183).

Entretanto, à medida que a sexualidade é organizada e controlada, a fantasia afirma-se, principalmente, contra a sexualidade normal, ou seja, se manifesta no campo das perversões: As formas inumanas, compulsivas, coercitivas e destrutivas dessas perversões parecem estar associadas à perversão geral da existência humana em uma cultura repressiva, mas as perversões têm uma substância instintiva distinta  dessa formas; e essa substância pode perfeitamente expressar-se em outras formas compatíveis com a moralidade na civilização de elevado grau (Marcuse: 1975, 178).3

É possível que, numa organização sexual menos repressiva, a libertação de Eros possa criar novas e duradouras relações de trabalho. Tudo isso para dizer que Cosmologia do impreciso  é uma leitura essencial: combate a separação entre corpo e espírito para defender a liberdade e a afirmação da vida acima de tudo. Apropria-se da tradição poética, faz diversos intertextos com artes plásticas e música e atinge um objetivo importante: transgride. É sempre perpassado pelo passo à frente, pela afirmação de algo fora de circulação. É o que acontece, por exemplo, no poema “lições oswaldianas”. As ideias do poema “Erro de português”, de Oswald de Andrade, que pode ser visto abaixo,

Quando o português chegou
Debaixo de uma bruta chuva
Vestiu o índio
Que pena!
Fosse uma manhã de sol
O índio tinha despido
O português (Andrade: 2003).

reaparecem no poema de Oswaldo Martins:

as professoras dariam nuas as de história
por sua vez alunas e alunos também nus
assimilariam o que a história nos roubou

a celebração do corpo e do espírito assim
recolocados permitiriam a nossos jovens
a experiência dos ferozes tupinambá (Martins: 2008, 34).

A partir da leitura do poema de Oswald, Oswaldo Martins cria sua tese de liberdade através da nudez, e é nesse poema que se encontra uma ideia essencial para a compreensão de  Cosmologia do impreciso: “a celebração do corpo e do espírito”. Pois é disto que trata a poesia de Oswaldo: celebração. E, a partir da celebração de algo reprimido na sociedade, transgride e busca a libertação. A epígrafe geral do livro fala desse par: “a boca é vinho tinto / as mãos são de absinto / e a cintura dela é a estrela por nascer”  – tais versos de Aldir Blanc misturam elementos ligados ao prazer carnal (boca/vinho, mãos/absinto, cintura) com o elemento sublime, puro (por nascer). Mais que mistura, unem no mesmo 4 corpo e tornam, então, o corpo e o espírito inseparáveis e indistinguíveis: na medida em que os elementos se confundem, é impossível dizer o que é ou não profano, e a polaridade se dissolve: a carne, símbolo do profano, assume tom sagrado e o espírito torna-se profano.

Se já é impossível ler um livro de Oswaldo Martins sem ser sempre assaltado pela mesma palavra, escrever sobre o poeta sem tê-la em mente é impensável. A ideia é sempre transgressão: o que dizer da poesia que questiona abertamente os valores da sociedade e diz “caralho”, “buceta” (sim, grafada com u), “foder”? Mais uma vez, o poeta retoma a tradição: vai ao século XV e resgata a forma de poetar de Aretino, que não só expressa o sexo em sua poesia como o coloca como questão existencial:

Fottiamci, vita mia, fottiamci presto, 
Poi che per fotter tutti nati siamo,
E se il cazzo ami tu, la potta io bramo,
Chè il mondo saria nullo senza questo.

[Fodamos, meu amor, fodamos presto,
Pois foi para foder que se nasceu,
E se amas o caralho, a cona amo eu;
Sem isto, fora o mundo bem molesto] (Aretino: 2000, 68-69).

Oswaldo Martins tem seu equivalente: em Cosmologia do impreciso, sexo e vida se confundem. “Bucetas” pode dar lugar a “Eros” – e Eros não é menos que vida. Assim como o corpo feminino, a arte é também vida e fonte de prazer – é possível sentir tanto prazer com ela quanto se sente com a relação sexual. Volta, então, a ideia de corpo e espírito com que Oswaldo trabalha: se a arte, segundo a visão tradicional, é uma atividade sublime, ao ligá-la tão intimamente ao corpo o poeta está mais uma vez afirmando que o espírito e o corpo não se separam: no sublime da arte, há a criação erótica, carnal – há o prazer.

quando quadros e livros
bucetas são

não são bucetas que se levam
aos livros e quadros

senão que quadros e livros
buscam

o que de bucetas
são
(Martins: 2008, 93).

O caráter transgressor da poesia de Oswaldo não está somente na utilização da linguagem sexual para abordar outros assuntos, como o poema acima citado mostra. Na subdivisão “Estudo para pinturas sacras”, do Cosmologia, o poeta voltase para a religião: começa por desconstruir a imagem de “virgem” de Maria. A virgem, figura tão pura nas escrituras, é aqui mulher real e faz intrigas, obtém favores,  finge e, o mais importante, faz sexo. Fala de sexo. Fala de Deus e de sexoao mesmo tempo. Reúne sagrado e profano.

A virgem de olhos doces tece intrigas
para conquistar os favores
de deus

para isso usa de artifícios
finge no olhar vazio
ser a menina dos olhos

depois diz para isabel:
fodi com deus.

ah, isabel, isabel,
com ele
é como se fodesse com todos os homens (Martins: 2008, 105).

Nesse poema, aparece uma questão interessante: aqui o sexo com Deus é uma forma de entrar em contato com todos os outros homens. É como a comunhão – mas feita a partir do corpo. Se, ao ingerir o que representa o corpo de Deus, a pessoa entra em contato com este e ao mesmo tempo com todos os seus irmãos, aqui a proposta é a mesma, mas a comunhão é feita pelo corpo em si, e não por uma representação dele. É possível enxergar também a questão da projeção divina no homem. Se o homem foi feito à imagem e semelhança de Deus, por que seria o sexo uma característica nossa e exclusivamente nossa, carnal? Não: aqui, o sexo atinge também a divindade.

Depois, retoma os “Ensaios sobre a pintura”, de Diderot, em que o filósofo, escritor e crítico de arte faz uma série de considerações sobre como seria a relação entre arte e sexualidade, caso esta não fosse brutalmente reprimida pelo cristianismo:

Se nossa religião não fosse uma sombria e insossa metafísica, [...] se esse abominável cristianismo não se tivesse estabelecido mediante assassinato e o derramamento de sangue, [...] se todos os nossos santos e santas não estivessem cobertos até a ponta do nariz [...] se a Virgem Maria houvesse sido a mãe do prazer, [...] se, nas bodas de Canaã, Cristo, tocado de vinho, um tanto desabusado, houvesse percorrido o colo de uma das jovens das bodas e as nádegas de Santa Joana [...] veríeis o que fariam nossos pintores, poetas e escultores; em que tom falaríamos desses encantos, que exerceriam um papel tão sublime e tão admirável na história de nossa religião e de nosso Deus; e com que olhos contemplaríamos a beleza à qual deveríamos o nascimento, a encarnação do Salvador e a graça de nossa redenção
(Diderot: 1993, 94-95).

A transposição para a poesia é feita a partir da tomada de pequenos trechos de Diderot (como “se Madalena houvesse tido alguma aventura galante com Cristo” ou “se as alegrias de nosso paraíso não se reduzissem a uma absurda visão beatífica”), que são em seguida desenvolvidos por Oswaldo Martins:

4
cristo nas bodas de caná houvesse percorrido o colo das moças

e com os olhos inebriados de tesão
tocasse aqui uma teta
ali as curvas

as portentosas nádegas
da mulher que se oferecia

mais que a morte

seria a carne
nossa unção (Martins: 2008, 112).

A grande questão levantada nesse poema é o erotismo, que ao mesmo tempo em que  se relaciona à vida, também  é vida. E mais: é unção, é algo sagrado. E este seria um valor universal, não fosse a imagem criada e repassada até hoje pelas religiões, que têm em Jesus Cristo a personalização de seus valores – e é sua imagem de ausência de sexualidade que nos foi passada como exemplo de conduta.

A adoção do erotismo como postura política é uma visão possível durante a leitura de  Cosmologia do impreciso. Propor um mundo mais livre dos entraves colocados pelos valores da sociedade ocidental faz parte da proposta modernista, mas o erotismo não é um recurso criado pelos modernistas. No século XV, houve o já citado Aretino, e no Brasil temos Gregório de Matos e Bernardo Guimarães como representantes do uso desse recurso. Essa postura, usada como forma de atacar diretamente a moral hipócrita, é defendida por Aretino no início de seus Sonetos:

Diverti-me [...] escrevendo os sonetos que podeis ver [...] sob cada pintura. A indecente memória deles, eu a dedico a todos os hipócritas, pois não tenho mais paciência para as suas mesquinhas censuras, para o seu sujo costume de dizer aos olhos que não podem ver o que mais os deleita (Aretino: 2000, 5).

Essa perspectiva é retomada no Modernismo como uma dentre as tantas formas utilizadas para promover a liberdade (os poemas-piada de Oswald de Andrade, os versos brancos e os versos livres). Resgatar uma visão pré-cristã do corpo e dos atos que este pratica, valorizar o sensual e desconstruir os valores consagrados da moral estabelecida são preceitos de uma poesia erótica, já que a sociedade cristã destituiu o erotismo dos seus valores primários de celebração da vida. A crença em Eros contribuía para a livre transição do erótico na sociedade. Eros, para a tradição filosófica, une sombra e luz, matéria e espírito, sexo e ideia –contribui com a passagem do caos ao cosmo. É um dos deuses primordiais da cultura pré-cristã e representa a vida e os prazeres vitais.

O ataque aos valores da sociedade judaico-cristã que reprimiu Eros é uma forma de retomar os valores eróticos primários e reafirmar a liberdade, que na sociedade capitalista é tão precarizada em detrimento da ética, que se torna outra questão central de Cosmologia.

a alice no país das baboseiras
é uma garota esperta

prefere foder com a coleguinha
usar batom
celular

cortas as cabeças
dos mendigos (Martins: 2008, 41).


Aqui, aparece a polissemia do verbo “foder”: ele deixa  de significar sexo para expressar a falta de ética cada vez mais presente e tolerada nas relações humanas. Diante da necessidade de cooperação, mas tendo de conviver com os impulsos egoístas, a sociedade elaborou regras e leis morais que regulam as ações humanas. Essas leis e regras baseiam-se numa espécie de “jogo de interesses”.

Assim, necessitando da ajuda de grandes massas, mostra-se ao outro as vantagens de participar desse sistema de trocas. A ideia defendida pela ética capitalista é a de que, para construir o bem-estar da coletividade, é melhor apelar não ao altruísmo da humanidade, mas à defesa dos interesses desta em relações de mercado. Dessa forma, apresenta-se o egoísmo como melhor solução para os problemas de determinado grupo social. Os juízos morais passaram a ser pautados na eficácia econômica do sistema de mercado, que se tornou o critério ético fundamental. No capitalismo, a ética se reduz a uma questão de pura técnica. É um sistema em que, de algum modo, a ideia de realização está sempre ligada à satisfação material  – seja obtendo bens materiais, seja tendo maiores oportunidades de lazer, seja ostentando aparência de poder.

Assim, é interessante notar que, no poema de Oswaldo Martins, as atitudes de “foder com a coleguinha” e “usar batom/ celular” são postos como sinônimo de esperteza. É um poema que se encaixa na realidade do pensamento capitalista e, por isso, traduz  – em tom de crítica  – as características da sociedade moderna. Símbolo da civilização moderna, o consumismo egocêntrico transforma as relações sociais numa arena, onde a força e a esperteza fazem o vencedor. Num ambiente em que o objetivo é o lucro a qualquer custo, as considerações éticas são as primeiras a perder seu valor. É isto que Oswaldo Martins critica no poema: o detrimento da ética de convivência solidária que, bem como o erotismo, foi se perdendo e sendo reprimida durante a construção da sociedade capitalista.

O erotismo não é a sexualidade, e sim sua metáfora, e o texto erótico é a representação do erotismo. Mais: creio que o texto erótico possa ser também uma metáfora da liberdade. E cada poema de Oswaldo Martins é sempre uma afirmação disso. Esse caráter pode ser melhor entendido se pensarmos que Martins não parte de um ato sexual para criar sua poesia  – ele utiliza elementos do sexo para problematizar outras questões, como é o caso de “antimetafísica das apreciações”:

quadros
assim como livros

cheiram a buceta

há livros e quadros
bolorentos

dir-se-iam uma buceta
sem uso

como dizem das bucetas
bem usadas

há quadros e livros
que relampejam (Martins: 2008, 58).

A “buceta” do poema não é física. É um elemento que remete à sexualidade em geral e pode, portanto, ser relacionada à arte, já que é isso que Oswaldo propõe: a transformação da arte em sexo, em fonte de prazer antes de qualquer coisa. Por isso,  Cosmologia do impreciso é mais que um belo livro: é um livro movido por uma tese que atinge a todos nós, na qual todos deveríamos pensar e sobre a qual discutir: até que ponto falta tornar nossa vida mais sexual, no sentido mais erótico da palavra, ou seja, vital.

Referências
ANDRADE, Oswald. Obras completas. Pau Brasil. São Paulo: Editora Globo, 2006.
ARETINO, Pietro. Sonetos luxuriosos. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
BATAILLE, Georges. O erotismo. Porto Alegre: L&PM, 1987.
DIDEROT, Denis. Ensaios sobre a pintura. Campinas: Papirus, 1993.
DURIGAN, Jesus Antônio. Erotismo e literatura. São Paulo: Ática, 1985.
MARCUSE, Herbert. Eros e civilização. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1975
MARTINS, Oswaldo. Cosmologia do impreciso. Rio de Janeiro: 7Letras, 2008.
PAZ, Octavio. A dupla chama: amor e erotismo. São Paulo: Si

Publicado em Poesia e prosa: hoje, agora em setembro 2010


[i] * Graduanda em Letras (Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF).
1
A Escola Parque não declarou isto abertamente; alegou “diferenças ideológicas”.
Entretanto, foi a reclamação de alguns pais de alunos que desencadeou a demissão.
Cf. entrevista com Oswaldo Martins e matéria sobre o assunto disponível em:
http://oglobo.globo.com/educacao/mat/2008/10/06/professor_demitido_da_escola
_parque_diz_que_nao_recorrera_justica-548591970.asp. Acesso em 22 jun. 2010.
Cf. matéria também em:
http://oglobo.globo.com/educacao/mat/2008/10/05/demissao_de_professor_da_es
cola_parque_que_escreveu_poemas_eroticos_alvo_de_criticas-548563161.asp.
Acesso em 22 jun. 2010.2


Um comentário:

  1. Adorei o texto. a poesia de Martins é instigante e através do texto de Larissa, obtive respostas para varias questões que mexeram comigo e nãosabia bem o porquê. Valeu Larissa

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