quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

baco bêbado

essa cara não me engana senhor paul cesar
finge-se de divindade para a guimba
garantir como um velho sábio
ou o trago de última hora

para o torto francês do ali
há pouco aprendido nas casas
das putas que nem francesas eram
talvez polacas a elas a elas senhor paul cesar


(oswaldo martins)

Mariinha revisitada e revista

1

José Maria

Mariinha recebia em seus domínios a vasta rede de relações humanas da cidade. Velhos coronéis, médicos, professores, amanuenses, alguns padres e os bêbados contumazes que ali iam ter um pouco de proteção e carinho. Suas meninas serviam, sentavam-se para um dedo de prosa desinteressado. As visitas tinham em sua casa aconchego e paz.

José Maria, do púlpito de sua igreja, vociferava contra os desregramentos – comparando a cidade à Sodoma, à Gomorra – ameaçava com o sal, com a chaga, com a lepra. Apontava o caminho do Carmo, o leprosário que era mantido pela irmandade das carmelitas órfãs. Tantas fez o pároco que acabou sendo chamado a descanso e oração por seus superiores. Do que não se sabia era a razão da volta triunfal de José Maria à cidade. Fanfarras, prefeito municipal e até o capitão, que comandava o destacamento local, acorreram na demonstração de apreço e laços de amizade. José Maria sorria, feliz.

No quinto dia, após o beija-mão das beatas, convocou Mariinha para uma conversa na casa paroquial. Aí havia – ah, se não havia – remoía a grande dama. Quando o coroinha, menino de uns doze anos, levou-lhe o recado, esquecera-se de dizer o dia em que o padre a esperava. Pensou em chamá-lo, mas esperou e em seu lugar gritou por Gracinha, mulata nova e sorridente. Gracinha, que tinha do nome a leveza e os atributos que levaram o Doutor a apelidá-la assim, acorreu.

__ Dona?

A papisa estendeu a mão e a convidoua sentar. Gracinha, com os peitos meio a descoberto, brejeira, sorrindo, sussurrante, murmurou para Mariinha:

__ Doutor?

Sorri, passa a mão sobre a cabeça de Gracinha e espera. Olha a seu redor, a casa estava bonita, pintada de nova, com cadeiras e poltronas confortáveis – a mesa era farta, as meninas, escolhidas a dedo. Diligenciara a decoração da casa – a cor penumbrosa, convidativa, lembrava os meios tons de uma sacristia. Fizera de propósito, sua experiência mostrava que os homens gostavam de gozar e depois se arrepender. As mulheres de seu tempo, em sua casa, sempre conheceram o recato da sala e soltura da cama – entre a santa que sabia ouvir e a puta que pedia mais e deixava-se bater. Agora José Maria, em triunfal volta e poder.

__ Gracinha, vá e diga ao padre que de uns dois dias estarei lá, boa devota sou e não posso recusar o chamado de meu pastor. Mas, arrepare, faz com que ele te bata. Se voltar sem ter apanhado uma surra, esquece minha casa.

Recompôs os peitos para dentro da roupa, foram para dentro de casa e voltaram, com Gracinha pronta para cumprir seu dever. Em sua bolsa levava algumas outras pequenas coisas, além de uma espórtula para as obras da Igreja. Saiu sorridente – sua carreira de puta começava bem. Primeiro o Doutor, agora o padre.

__ Bença, Padre, vim a mando de dona Mariinha.

Com o cenho fechado, o padre hesitou. Aparentava uns quarenta e poucos anos e tinha a tez dos morenos de além mar. De boa compleição, mesmo bonito podia dizer-se que o padre era. Ao ameaçar fechar a porta, encontrou meio corpo da mulata já em sua casa, que, rápida, pulou pra dentro. José Maria tremia, o rosto cada vez mais fechado.

__ Dona Mariinha, manda que eu vince vê o pastô. E descuidadamente faz um gesto de retirar algo dos seios. Com malícia falava e esperava, aturdia o padre.

__ Dona Mariinha...

José Maria não pensava, apenas via, em seus domingos gloriosos de púlpito, beatas vestidas, vestidas. Entrara cedo para o seminário, e o mundo para ele havia sido desde então aquelas mulheres de roupas enegrecidas. Odiava-as. Mas essa parecia diferente, lembrou-se do capeta.

__ Dona Mariinha pediu... e esperava. Pediu que entregasse pra ocê, sinhô.

E enfiava a mão nos seios, cada vez mais os descobrindo. Num gesto meio estabanado, de quem sente vergonha, Gracinha toca as mãos do padre, que recua. Lembra-se das duras noites de frio do seminário. Sorri para o padre. Retira um papel e o movimento se faz de tal jeito que, ao mesmo tempo em que ela desaba sobre o padre, que cai, seus seios pulam para fora do vestido. O padre a empurra, ela se abandona  nele, que se enfurece e a empurra com mais vigor. As mãos da mulata apertam seus braços contra o chão. Os joelhos dela se dobram ao longo da cintura do padre, que não se mexe. A voz de Gracinha soa fresca, feliz:

__ Dona Mariinha, mandou que eu vince, eu vim para dizê pru sinhô que dispois de amanhã pela tardinha estaria aqui pro mode de falar com o pastor.

Sente o corpo do padre enrijecer, depois relaxar e, lentamente, solta as mãos de José Maria que se mantém crucificado no chão. Com certo receio, passa a mão sobre o rosto, os dedos tocam os lábios e inesperadamente começa a bater no rosto do padre devagar, devagar. Seus seios balançam. José Maria fecha os olhos e os abre, quando sente a mão de Gracinha descair de encontro a sua face com uma força cada vez maior. Grita. Em vão. Gracinha continua a espancá-lo. José Maria sente-se como que espetado pelo tridente do demônio. Derruba-a de cima de si. Ela luta. Seu vestido se desfaz cada vez mais. Suas pernas enroscam-se às pernas de Maria. O padre busca puxar-lhe os cabelos. Gracinha ri. Rolam pela antecâmara do quarto.

Após a noite do padre, Gracinha procura recompor-se – assim como o Doutor e Mariinha lhe ensinaram algumas das artes de sua profissão, fizera ao José Maria sua iniciação como instrutora e amante. Sabia que Mariinha ficaria satisfeita – galgara um degrau na hierarquia das putas.

Recolheu suas coisas, beijou o padre na testa, em gesto maternal e falou:

__ José, dona Mariinha pediu pra avisar que vem, mas me mandou antes para falar com o sinhô.

O padre respirou lentamente. Pensava.

__Diga à dona Mariinha que a espero na igreja, no próximo domingo.

Tempos depois, quando de férias para o litoral, Mariinha banhava-se numa praia quase deserta, esquentando ao sol. Acompanhava-a a divina Graça, com seu sorriso.

__ Doutor, vou ficando velha. A arte de domar meus cabritinhos, de conduzir a sociedade, com segurança e tranquilidade, passo a outras mãos, querendo dispor. E riu apontando Gracinha. Para mim, entre convidativa e festeira:

__ E o menino, quando aparece?

Ao nos afastarmos, o Doutor, certo de que seu tempo havia chegado junto ao de Mariinha; eu, louco para que acabassem as férias, percebemos ao longe a figura de um velho cônego, que nos acenava, reintegrado à vida.

2

Mariinha, o cônego e o doutor

Mariinha contou ao Doutor quando foi ao confessionário da Igreja. O cônego era ser amigo já de muitos anos. Com os proverbiais segredos de alcova e sacristia, se entendiam às mil maravilhas. Se o padre dava a extrema-unção e acalmava a consciência pesada das moças; Mariinha, a grande senhora, oferecia seus préstimos e suas pupilas, e, é claro, para as pequenas obras da igreja seus dízimos. Era quem fazia a ceia do natal de jesus cristinho da casa paroquial.

Eram perus que não acabavam mais, farofa de miúdos, rabanadas e, preferência do cônego, baba de moça, bem molhada. O religioso se refastelava. Mariinha, que ali se introduzia com cuidado, passando por uma porta lateral e vestida à moda de então, capa de boiadeiro e chapéu, se via na condução da cozinha enquanto era pronunciada a missa da meia-noite. Quando o padre – solitário – voltava tudo estava pronto e Mariinha já voltara para sua casa onde presidiria o natal dos deserdados da cidade. Deixava apenas uma das suas moças para servir a janta do Padre José.

Tantos foram os natais em que a cena se repetira que foram aos poucos se descuidando e como era inevitável cruzaram-se o cônego e Mariinha, nas antessalas da casa. Meio atrapalhados, os dois se cumprimentaram e travaram um pequeno diálogo sobre seus negócios. Como estavam bem, se despediram e, discretos, foram cada um a cumprir o papel que lhes cabia.

Quando já morto o cônego e Mariinha envelhecida, em uma consulta, contou que, na famigerada noite, a frase que o padre soltara quase ao acaso e que lhe ficara na cabeça durante todos esses anos foi como uma absolvição de seus pecados. Circunspecto dissera “você sabe, Mariinha, que, neste mundo de Deus, a única coisa que dá mais que minha paróquia é sua casa e suas meninas”.

Levantou-se, despediu-se e disse com a cara mais santa que podia “hoje, Doutor, eu pago a consulta”. Com uma de suas tiradas, o velho Doutor respondeu que a paga já estava na mesma medida do santo padre, pela eternidade da história.


terça-feira, 27 de dezembro de 2016

Dez dos melhores livros lidos em 2016

1 – Machado, de Silviano Santiago;
2 – Os contos de Kolimá, de Varlam Chalámov;
3 – Submissão, de Michel Houllebecq;
4 – Como se estivéssemos num palimpsesto de putas, de Elvira Vigna;
5 – Sem Gentileza, de Futhi Ntshingila;
6 – O conto zero, de Sérgio Sant’Anna;
7 – Teoria da não conceitualidade, deHans Blumenberg;
8 – Abnegação, de Elesbão Ribeiro;
9 – O uruguaio, de Copi;
10 – Anna, a Voz da Rússia - Vida e Obra de Anna Akhmatova.


quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

duas desimitações - uma barata outra gaiata

desimitação barata do tropa de elite

a dança nua
desobedece os deuses

gosta de putarias
se sabe a índias

trança as pernas em algazarra
como ornella mutti

e bem gazzara no conto
de bukowski


transposto para as telas


desimitação gaiata dos velhos árcades

antes do bosque a cidade
um foda-se para o claudio
outro para o peixotinho
do rolim apenas a rola

antes do bosque a cidade
um foda-se para as begônias
outro para os jasmins
da rosa apenas o trancelim

antes do bosque a cidade
um foda-se para os bucolíticos
outro para o cheiro a bosta
de marília apenas o belo negocim

antes das virgens as filhas de baco
que são –  entre outras coisas –
flores do balacobaco


(oswaldo martins)



quadro

à vermelha do umbigo pele
carcomida pela tinta táctil
de olhar o avesso do ponto
quando sem fuga o tranco

corpo a corpo com o poema
vaza em tela embrião sóbria
muda velhacaria essa roupa
deixada ali à súbita avidez

com que os braços a caírem
interrompido o gesto gritos
não ouvidos sobre o poema
que por fim o traço se feito

desdiz no correr dos pincéis
parados no ar a seca alusão
do nu em movimento ritmo
da austera vertigem a busca

do centro a que ninguém vai

(oswaldo martins)



pequeno poema de amor

deitou-se
no chão frio do quarto
ao lado da cama
e em delírios
dizia e repetia
e eu a pensar que fosses minha

elesbão ribeiro
20/12/2016

quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

Versinhos de Augusto dos Anjos dirigidos a algumas figuras públicas, do temeroso momento atual:


1 “Acostuma-te à lama que te espera”

2 “Que ventre produziu tão feio parto?”

3 “A comunhão dos homens reunidos / Pela camaradagem da moléstia.”

4 “Falar somente uma linguagem rouca, / Um português cansado e incompreensível”

5 “E o índio, por fim, adstricto à étnica escória, / Recebeu, tendo o horror no rosto impresso, / Esse achincalhamento do progresso / Que o anulava na crítica da História!”


6 “O beijo, amigo, é a véspera do escarro”

O movimento IV do poema OS DOENTES, de Augusto dos Anjos

Começara a chover. Pelas algentes
Ruas, a água, em cachoeiras desobstruídas,
Encharcava os buracos das feridas,
Alagava a medula dos Doentes!


Do fundo do meu trágico destino,
Onde a Resignação os braços cruza,
Saía, com o vexame de uma fusa,
A mágoa gaguejada de um cretino.


Aquele ruído obscuro de gagueira
Que à noite, em sonhos mórbidos, me acorda.
Vinha da vibração bruta da corda
Mais recôndita da alma brasileira!


Aturdia-me a tétrica miragem
De que, naquele instante, no Amazonas,
Fedia, entregue a vísceras glutonas,
A carcaça esquecida de um selvagem.


A civilização entrou na taba
Em que ele estava. O gênio de Colombo
Manchou de opróbrios a alma do mazombo,
Cuspiu na cova do morubixaba!


E o índio, por fim, adstricto à étnica escória,
Recebeu, tendo o horror no rosto impresso,
Esse achincalhamento do progresso
Que o anulava na crítica da História!


Como quem analisa um. apostema,
De repente, acordando na desgraça,
Viu toda a podridão de sua raça...
Na tumba de Iracema! ...


Ah! Tudo, como um lúgubre ciclone,
Exercia sobre ele ação funesta
Desde o desbravamento da floresta
A ultrajante invenção do telefone.


E sentia-se pior que um vagabundo
Microcéfalo vil que a espécie encerra
Desterrado na sua própria terra,
Diminuído na crônica do mundo!


A hereditariedade dessa pecha
Seguiria seus filhos. Dora em deante
Seu povo tombaria agonizante
Na luta da espingarda com a flecha!


Veio-lhe então como à fêmea vem antojos,
Uma desesperada ânsia improfícua
De estrangular aquela gente iníqua,
Que progredia sobre os seus despojos!


Mas, deante a xantocróide raça loura,
Jazem, caladas, todas as inúbias,
E agora, sem difíceis nuanças dúbias,
Com uma clarividência aterradora,


Em vez da prisca tribo e indiana tropa
A gente deste século, espantada,
Vê somente a caveira abandonada
De uma raça esmagada pela Europa!


terça-feira, 15 de novembro de 2016

NITERÓI COM MARESIA

O fim das tardes frias de vento e chuva na rua da praia trazia o deserto. Enchiam as sombras fantasmas ilusórios na óptica da minha imprecisão. O contorno ali fora com pátio, quintal, mangueira e muro compunha pesadelos por fresta inapagáveis de menino.

Cláudio Correia Leitão


sexta-feira, 4 de novembro de 2016

tourear com goya

para alexandre faria

a cena
sob o aluvião da dentadura
do cão no beiral dos estátuas

que se erigem por onde pastaram
os pastores do sr. tomás!
impede a deseducação dos conceitos

a teoria dos prazeres
que aponta abismos
e não certezas


(oswaldo martins)

goya

para geisa silva

francisco josé de goya y lucientes,
desde os rostos carcomidos
dos que na rua dançam
sob os sinistros sons

dom francisco,
luzente dor dos meninos e meninas
assassinados nos paredões das escolas

goya,
a lucidez do asco
em um país ocupado

dom josé,
a torta rua dos bueiros
em que dormem as crianças do abandono

dom francisco josé de goya y lucientes,
soltai vossos exus


(oswaldo martins)

sábado, 22 de outubro de 2016

desimitação sacana para manuel bandeira

a bêbeda palavra dança diante de seu lugar
comum as inversões do dia tabulam co-senos
e c’o os seios de fora bebe ao amado rum
com o livro de shakespeare ao lado

para qualquer necessidade
de irrisão

para qualquer palavra perdida
entre o olhar da paisagem
e o zelo com as unhas

depois se belisca
e tonta vai por aí
a desabrochar a rosca
do amor


(oswaldo martins)

quarta-feira, 19 de outubro de 2016

muro

um sol-muro por dentro
insubmisso insubmerso

o muro nu como se
nu o muro detivesse

ativo o sol lúcido
do amanhecer

(oswaldo martins)

sexta-feira, 7 de outubro de 2016

antiode aos calhordas

para o zé luiz e luiza aieta, educadores porretas

as damas dos calhordas chamam-se calhôrdas
e cumprem seu dever com muita eficiência

(rubem braga – ode aos calhordas)

I

os homens plantam o que a terra dá
colhem em abundância frutos como o caqui
a abóbora e o hortelã

às vezes colhem a dura pedra cabralina nos sertões caatinga
às vezes colhem as vidas secas gracilianas nos setentriões
às vezes euclidianas figuras bíblicas nos casebres de belo monte
às vezes lampiônicas marias bonitas

colhem esses homens o trágico de édipo de medeia
o trágico dílmico a responder perdido o jogo a encenação da comédia

colhem essas mulheres os seios desnudos na praça de são salvador
colhem essas mulheres a força
colhem a vida e de eros a bela dicção dos poemas da poeta de lesbos

homens e mulheres plantam vida sob o arado extenso das pedras

II

os treze tiros em mineirinho foram em mim que deram

III

ai donzela!
princesinha dos deboches

sois quem sois neste lugar
triste senhora das criancinhas e da fome
triste senhora de seios recobertos e marido atento
triste senhora marionete das bocas tristes
triste senhora dos jurisconsultos do século XIX

cuja retórica é de uma inocência pior que a do romantismo brasileiro
cuja retórica pequena principesca faz corar os anjos e as bobagens de exupery
cuja retórica é mais vazia que o vazio dos menininhos sarados
cuja retórica é tão nociva quanto as mesóclise do senhores neo-bilacs da poesia de pacotilha

gorda senhora de alma e esperteza – poluída alma de miss
imagina o que vem a ser o cheiro de gente
imagina o que vem a ser os valões dos esgotos das favelas
onde seus meninos não usam perfumes franceses

mandarás acaso que os pulverize com perfumes da coty para não incomodarem vossas narinas finas

senhora, caíras no resfolego da sanfona de luiz gonzaga
ou como a sebastiana de jackson do pandeiro
gritarás a e i o u ypsilone
como gritam as gabrielas as shirleis as vandas tenebrosas
das vilas mimosas

ou como um político desses quaisquer ao ir ao mangue botanto a mão nos olhos como se continência prestassem exclamassem aí meu deus que fartura

ou como a durvalina disse que de buceta homem casado está por aqui, num gesto característico num gesto característico das explicações pru quê.

ai madona, onde perdeste a rosa da puberdade?

IV

triste senhora leste madame bovary?
o charles é isso aí.


(oswaldo martins)

quarta-feira, 5 de outubro de 2016

bêbada desimitação de homero

as embarcações partem das areias secas
à frente o busto da tragédia anuncia
o silêncio duro das sereias

quem com elas tange ondas de oceânico sal
quem sobre o branco dos olhos de poseidon
quem nas miríades do cemitério marinho

as embarcações secas
o busto de peixes carcomido
a água silenciada no abismo

eis o simulacro e o delírio dos ébrios
da linguagem solta, e dos vitupérios
eis a mão que mergulha e decepa


(oswaldo martins)

sexta-feira, 30 de setembro de 2016

Ci, a mãe do mato

entre a ladeira e os humores
a névoa baixa de seus olhos
como se nos meus

baixassem unhas vermelhas
e uma paisagem inteira
sobre o mato

como se um rubor brotasse
da selvagem mata
por dentro os meus


(oswaldo martins)

quarta-feira, 28 de setembro de 2016

de flores e de lambanças

para oswaldo martins  eugênio hirsch e manuel bandeira

não
não cruzes as pernas
não escondas
tua relva escura

não
não vou embora
ninguém me leva de onde estou
não tenho rei amigo
nem amigo sei

e as putas
andam todas raspadinhas
com grelos estranhos
não têm feridas bem se vê

putas com
certificados do imetro
da fiocruz

ah as belas putas
putas de dante
putas dantescas

cheias de relva
de selva
de relva escura


elesbão ribeiro

27/09/16

quinta-feira, 15 de setembro de 2016

desimitação de marguerite

tem a beleza um rosto trágico
retinas olham desde o colo
para aquém delas a centelha
que se esconde e supõe contra

o próprio olhar – agora cego –
um olhar de si – aturdido –
a debruar-se nos pentelhos
teias tangíveis as guitarras

ecoam abismos flor de lis
no peito que olhara sob
tal mantel as margaridas

nas braçadas do teatral viés
guardam nome por não dizer-me
das vozes – mananciais fodidos


(oswaldo martins)

sexta-feira, 9 de setembro de 2016

Pan Yuliang - alma assobrada por uma pintura


Um nu de Bonnard e três de Guaguin





experiência de viagem

1
o corpo verte olhos
quem se derrama
paisagem única

cumpre abismos
istmos debruados

quando sozinho o oceano
trafega nuvens

2
o retalho
de um tríptico

a medição do olhar
que navega livre

pelo desvão da casa
à rua

3
bate na cara
o ar

o desafeto do cabelo
é um risco mínimo

assombro
de um minuto


(oswaldo martins)

sexta-feira, 26 de agosto de 2016

desafio aceito


da poesia

1
lirismo sacana

se explodir significa dizer
la petite mort

vá à merda e
afinal

vê se não fode

(oswaldo martins)

2
delicadeza lírica

ir à foda como se vai ao mar
para ser devorado por tubarõas


(oswaldo martins)

retrato

para joão simões fortini

1

por triste o sorriso
quem a seca
estende ao léu
o rosto

2

mas havia negativos
e inversas possibilidades
para o rosto
que reverbera em dry martini

3

ainda no reverso
advinda em lagos,
nigéria
ou na meca do capitalismo

4

podia a vida
mais que a vida pode
se as moças dançassem nuas
num cabaret de paris

5

ou no 69 barbacenense
a que se ia, de bicicleta
pelas bolhas da cerveja
e o lirismo que explodia


(oswaldo martins)

quarta-feira, 24 de agosto de 2016

O Cristo de Eugênio

Eugênio Hirsch várias vezes nos visitou em casa. Com seu jeito peculiar de ver o mundo, nos ensinou muitas coisas, a todos. Lembram-se com carinho dele meus filhos, Walnice e eu. Um dia, desses perfeitos que o passado nos cria e faz sentir saudade dele, convidei-o a ir a Barbacena para corrermos o barroco mineiro. Tiradentes, São João e Congonhas – não deu para esticar até Ouro Preto, pena.

Armou-se o amigo de desenhos feitos por ele para presentear a casa de meus pais. Levou uma montagem com a figuração da Pietá com recordes feitos por ele mesmo. Era uma interpretação livre – Zélia Cardoso era a Madona que amamentava um garboso Grande Otelo de Cristo, com uma bela e portentosa atriz, de que não me lembro agora do nome, de cupido. E para meu pai um Cristo na cruz com um pau enorme e ereto, também em montagem de imagens de revistas.
A conversa e explicação da imagem para meu pai foi uma conversa a Eugênio.

Ah, sim – dizia – ele (o Cristo) era do carajo. O fato de ter comido Madalena e algumas outras merecia uma homenagem e como toda pessoa ao morrer tem a rigidez peniana não poderia ser de outra maneira que se podia retratá-lo na cruz. E daí decorria sobre a arte clássica com enorme fervor e sacanagem, temperados pelos ah, sim, que soavam musicalmente nos nossos ouvidos.


(oswaldo martins)

notação

1

o avesso

talvez a janela despeje
pássaros de olhos assassinados
                                                                         
2

o relógio

você rodava sentadito
em uma gangorra da infância

3

o exato

quiçá fosse a manhã
a brancura das roupas sem sol maior

4

a casa

o assoalho rondava os ratos
que ávidos se faziam de mortos

5

a equação

o alarido do dia
explode fora dos silêncios

6

x

em uma igualdade de sentidos
apreendia-se o abismo


(oswaldo martins)

domingo, 21 de agosto de 2016

Pilulinha 48

Como se estivéssemos em palimpsesto de putas, de Elvira Vigna, tem a qualidade de não se deixar cair em nenhum tipo de concessão ao sentimentalismo emocionado, no entanto, se constrói a partir de um dilaceramento interno de seus personagens, que beira o mais puro lirismo. A linguagem precisa, cortante, envolvente para o leitor, é o tempo todo desconfigurada pela narradora ao, no ato de contar, deixar entrever que a história que se conta não é a história que se conta. Há um além que cinicamente vai sendo desmascarado pelo pensamento que de forma elíptica vai se construindo.

As personagens são surpreendentes. A construção em espiral – as irrealizações possíveis, o jogo de esconder-se de si mesmo –  vai se sucedendo numa possibilidade única, numa temática única, que explode na temática que se escondia sob os desacertos da narração. O palimpsesto – a forma machadiana preferencial –, aqui vivenciado pelo não contar o que na verdade se conta, apresenta a maestria de Elvira, em seu grau mais intenso.

Talvez na literatura brasileira as putas – mas não é, e é, sobre elas que se escreve tenham tido a sua presença narrada de forma tão lírica e humana. As putas do livro assumem um grau de complexidade trágica. Presentes o tempo todo no romance, por sua ausência de caracteres, assumem a máscara trágica que se revelará na cena da morte de Cuíca. A partir desta estrutura, o romance retira as máscaras de seus atores e os coloca nus frente a eles mesmos.

Como nas grandes tragédias, resta ao leitor debater-se com o mundo derruído da contemporaneidade.

Ps – leiam com atenção como a personagem Lurien é o oráculo que se salva.


(oswaldo martins)

quinta-feira, 18 de agosto de 2016

pilulinha musical

Paulo Cesar Pinheiro é um letrista que nunca erra. Acompanho o poeta desde quando apresentado a ele anosos anos 70, por um amigo, Bernardino, de quem fui parceiro em algumas músicas, quando vivia em Barbacena, MG. Apresentou-me ele a música de Eduardo Gudin, em seu primeiro disco. A velhice da porta-bandeira, E lá se vão meus anéis, entre outras pérolas; uma joia, Dino.

Depois fui seguindo o cara. E puta que o pariu! Era foda ouvir todos os versos dele. Sempre perfeito, com João Nogueira, Tom Jobim, Guinga – que músicas do caralho! – Edu Lobo, Moacyr Luz, a turma toda. E o Luna, O Marçal e o Eliseu!

Caralho. A música da Portela, da Serrinha! Meu deus, parece coisa do Aleijadinho de quem disse o Oswald que atingiu o grau mais alto das artes brasileiras. Para mim, Paulinho Pinheiro, Chico Buarque e Aldir Blanc são os aleijadinhos da nossa modernidade.


(oswaldo martins)

tarde

1

a janela olha-me

diz-se olhar deste de delfos
o anúncio da tragédia

esperamos eu e ela
parado no ar

o grito


2

nada se vê
nem o ela eu

nem o arcabouço
do tempo

tirésias da nulidade

3

a distância com que
olhamos

não é
sequer um após

o apostema
que guardamos

não se revela


4

o que
olhamos

seca as mãos no guardanapo
a aspereza

do que não se diz
do que embora se saiba

5

o resto
soluções brutas

para que a vida siga
sem a janela

que olha



(oswaldo martins)

fado arranhado

para o excelentíssimo professor senhor doutor antónio de oliveira

de quem eu gosto
nem a mim  permitem saber
estas paredes

nem elas sabem
estas paredes
o que dizem saber
o que simulam saber

nada sabem estas paredes
nem de mim hão de saber

eu não confesso

elesbão ribeiro


12, 13 e 18 /08/16

quinta-feira, 11 de agosto de 2016

Pilulinha 47

O romance Sem Gentileza, de Futhi Ntshingila, da Editora Dublinense, lê-se de um único fôlego. A autora sul-africana, de etnia zulu, aos poucos, vai descerrando os percalços de um país no qual a miséria e a subvida dominam a narração, e o drama da gravidez precoce, da aids e da impossibilidade de se manter vivo se concretizam por meio das palavras da escritora.

A literatura vem acentuando no mundo todo esse escrever legítimo dos que nunca puderam dar a ver seu drama. A temática às vezes acerta, às vezes erra. Muitas vezes o erro está, paradoxalmente, na pouca profundidade da exploração da linguagem e do que pode ela construir sobre universo tão profundamente inquietante. Se se pudesse pensar a matéria literária matematicamente, diria que a igualdade formulada para a resolução de uma equação se perde numa incongruência. Se de um lado o drama vigoroso da vida admite que nele se debruce o escritor, do outro a matéria sobre a qual é seu ofício se perde nem dois desdobramentos bastante complexos.

O primeiro estaria em que nem sempre a resolução dos problemas trazidos à tona pela vida permite que se escolha entre a gentileza e a falta dela; essa escolha denotaria uma percepção maniqueísta da vida não permitindo que o trágico se coloque, para que dele possa surgir uma ética, apostando-se apenas na narrativa do desastre, que acaba por ser redentor, pois que deixa antever apenas uma moral, que sempre será volátil e excludente.

O segundo estaria na composição da trama. Ntshingila a compõe de maneira admirável, fazendo com que confluam os eixos narrativo numa mesma direção. As personagens se desenvolvem aos poucos vão ganhando contornos definidos e as ligações entre eles, obscuras por motivo necessário e verossímil, se fecham de modo perfeito. Percebe-se aí a mão da escritora, sua maestria.

Entretanto o segundo desdobramento não é o bastante. Há de se ultrapassar certo bom mocismo que desponta no plano geral da narrativa e alivia – porque parte do exemplo – a consciência culpada que obrigatoriamente e por motivos éticos deveria recair sobre a parcela usurpadora dos direitos sociais e humanos.

Ao dar à personagem uma saída integradora, a autora, ao mesmo tempo que chama atenção para as mazelas que afligem a sociedade apartada da África do Sul, não permite que se aprofundem as questões que a levaram a esta exclusão, bastando-lhe a leve comoção moral com que seus leitores certamente se identificarão.
(oswaldo martins)




quarta-feira, 20 de julho de 2016

desimitação de leopardi

no cós a navegar delírios saltam
flores como se em roda rendada
a saia dançasse por si o transpor
os dados os dedos que não mais

se acham infinitos os olhos sobre
as sebes indagam do branco lago
onde pousada face que se busca
no umbigo ou qualquer outra luz

dolce far niente dos cabelos que
em fogo atestam as labaredas do
nó de peito que se desata e mói

o estancar das bridas que o cós
a saia pelo infinito do naufrágio
da tristeza que neste mar dança

por dançar


(oswaldo martins)

segunda-feira, 18 de julho de 2016

Le cimetière marin / O cemitério marinho

LE CIMETIÈRE MARIN

Paul Valéry

Μή, φίλα ψυχά, βίον ἀθάνατον
σπεῦδε, τὰν δ' ἔμπρακτον ἄντλει μαχανάν.
- Pindare, Pythiques, III

"O mon âme, n'aspire pas à la vie immortelle,
mais épuise le champ du possible!"
- Pindare


Ce toit tranquille, où marchent des colombes,
Entre les pins palpite, entre les tombes;
Midi le juste y compose de feux
La mer, la mer, toujours recommencée
O récompense après une pensée
Qu'un long regard sur le calme des dieux!

Quel pur travail de fins éclairs consume
Maint diamant d'imperceptible écume,
Et quelle paix semble se concevoir!
Quand sur l'abîme un soleil se repose,
Ouvrages purs d'une éternelle cause,
Le temps scintille et le songe est savoir.

Stable trésor, temple simple à Minerve,
Masse de calme, et visible réserve,
Eau sourcilleuse, Oeil qui gardes en toi
Tant de sommeil sous une voile de flamme,
O mon silence! . . . Édifice dans l'âme,
Mais comble d'or aux mille tuiles, Toit!

Temple du Temps, qu'un seul soupir résume,
À ce point pur je monte et m'accoutume,
Tout entouré de mon regard marin;
Et comme aux dieux mon offrande suprême,
La scintillation sereine sème
Sur l'altitude un dédain souverain.

Comme le fruit se fond en jouissance,
Comme en délice il change son absence
Dans une bouche où sa forme se meurt,
Je hume ici ma future fumée,
Et le ciel chante à l'âme consumée
Le changement des rives en rumeur.

Beau ciel, vrai ciel, regarde-moi qui change!
Après tant d'orgueil, après tant d'étrange
Oisiveté, mais pleine de pouvoir,
Je m'abandonne à ce brillant espace,
Sur les maisons des morts mon ombre passe
Qui m'apprivoise à son frêle mouvoir.

L'âme exposée aux torches du solstice,
Je te soutiens, admirable justice
De la lumière aux armes sans pitié!
Je te tends pure à ta place première,
Regarde-toi! . . . Mais rendre la lumière
Suppose d'ombre une morne moitié.

O pour moi seul, à moi seul, en moi-même,
Auprès d'un coeur, aux sources du poème,
Entre le vide et l'événement pur,
J'attends l'écho de ma grandeur interne,
Amère, sombre, et sonore citerne,
Sonnant dans l'âme un creux toujours futur!

Sais-tu, fausse captive des feuillages,
Golfe mangeur de ces maigres grillages,
Sur mes yeux clos, secrets éblouissants,
Quel corps me traîne à sa fin paresseuse,
Quel front l'attire à cette terre osseuse?
Une étincelle y pense à mes absents.

Fermé, sacré, plein d'un feu sans matière,
Fragment terrestre offert à la lumière,
Ce lieu me plaît, dominé de flambeaux,
Composé d'or, de pierre et d'arbres sombres,
Où tant de marbre est tremblant sur tant d'ombres;
La mer fidèle y dort sur mes tombeaux!

Chienne splendide, écarte l'idolâtre!
Quand solitaire au sourire de pâtre,
Je pais longtemps, moutons mystérieux,
Le blanc troupeau de mes tranquilles tombes,
Éloignes-en les prudentes colombes,
Les songes vains, les anges curieux!

Ici venu, l'avenir est paresse.
L'insecte net gratte la sécheresse;
Tout est brûlé, défait, reçu dans l'air
A je ne sais quelle sévère essence . . .
La vie est vaste, étant ivre d'absence,
Et l'amertume est douce, et l'esprit clair.

Les morts cachés sont bien dans cette terre
Qui les réchauffe et sèche leur mystère.
Midi là-haut, Midi sans mouvement
En soi se pense et convient à soi-même
Tête complète et parfait diadème,
Je suis en toi le secret changement.

Tu n'as que moi pour contenir tes craintes!
Mes repentirs, mes doutes, mes contraintes
Sont le défaut de ton grand diamant! . . .
Mais dans leur nuit toute lourde de marbres,
Un peuple vague aux racines des arbres
A pris déjà ton parti lentement.

Ils ont fondu dans une absence épaisse,
L'argile rouge a bu la blanche espèce,
Le don de vivre a passé dans les fleurs!
Où sont des morts les phrases familières,
L'art personnel, les âmes singulières?
La larve file où se formaient les pleurs.

Les cris aigus des filles chatouillées,
Les yeux, les dents, les paupières mouillées,
Le sein charmant qui joue avec le feu,
Le sang qui brille aux lèvres qui se rendent,
Les derniers dons, les doigts qui les défendent,
Tout va sous terre et rentre dans le jeu!

Et vous, grande âme, espérez-vous un songe
Qui n'aura plus ces couleurs de mensonge
Qu'aux yeux de chair l'onde et l'or font ici?
Chanterez-vous quand serez vaporeuse?
Allez! Tout fuit! Ma présence est poreuse,
La sainte impatience meurt aussi!


Maigre immortalité noire et dorée,
Consolatrice affreusement laurée,
Qui de la mort fais un sein maternel,
Le beau mensonge et la pieuse ruse!
Qui ne connaît, et qui ne les refuse,
Ce crâne vide et ce rire éternel!

Pères profonds, têtes inhabitées,
Qui sous le poids de tant de pelletées,
Êtes la terre et confondez nos pas,
Le vrai rongeur, le ver irréfutable
N'est point pour vous qui dormez sous la table,
Il vit de vie, il ne me quitte pas!

Amour, peut-être, ou de moi-même haine?
Sa dent secrète est de moi si prochaine
Que tous les noms lui peuvent convenir!
Qu'importe! Il voit, il veut, il songe, il touche!
Ma chair lui plaît, et jusque sur ma couche,
À ce vivant je vis d'appartenir!

Zénon! Cruel Zénon! Zénon d'Êlée!
M'as-tu percé de cette flèche ailée
Qui vibre, vole, et qui ne vole pas!
Le son m'enfante et la flèche me tue!
Ah! le soleil . . . Quelle ombre de tortue
Pour l'âme, Achille immobile à grands pas!

Non, non! . . . Debout! Dans l'ère successive!
Brisez, mon corps, cette forme pensive!
Buvez, mon sein, la naissance du vent!
Une fraîcheur, de la mer exhalée,
Me rend mon âme . . . O puissance salée!
Courons à l'onde en rejaillir vivant.

Oui! grande mer de délires douée,
Peau de panthère et chlamyde trouée,
De mille et mille idoles du soleil,
Hydre absolue, ivre de ta chair bleue,
Qui te remords l'étincelante queue
Dans un tumulte au silence pareil

Le vent se lève! . . . il faut tenter de vivre!
L'air immense ouvre et referme mon livre,
La vague en poudre ose jaillir des rocs!
Envolez-vous, pages tout éblouies!
Rompez, vagues! Rompez d'eaux réjouies
Ce toit tranquille où picoraient des focs!


O cemitério marinho

Ó minha alma, não aspira à vida
imortal, mas esgota o campo do possível.
- Pindare, Pythiques, III.


Esse teto tranqüilo, onde andam pombas,
Palpita entre pinheiros, entre túmulos.
O meio-dia justo nele incende
O mar, o mar recomeçando sempre.
Oh, recompensa, após um pensamento,
Um longo olhar sobre a calma dos deuses!

Que lavor puro de brilhos consome
Tanto diamante de indistinta espuma
E quanta paz parece conceber-se!
Quando repousa sobre o abismo um sol,
Límpidas obras de uma eterna causa
Fulge oTempo e o Sonho é sabedoria.

Tesouro estável, templo de Minerva,
Massa de calma e nítida reserva,
Água franzida, Olho que em ti escondes
Tanto de sono sob um véu de chama,
-Ó meu silêncio!... Um edifício na alma,
Cume dourado de mil, telhas, Teto!

Templo do Templo, que um suspiro exprime,
Subo a este ponto puro e me acostumo,
Todo envolto por meu olhar marinho.
E como aos deuses dádiva suprema,
O resplendor solar sereno esparze
Na altitude um desprezo soberano.

Como em prazer o fruto se desfaz,
Como em delícia muda sua ausência
Na boca onde perece sua forma,
Aqui aspiro meu futuro fumo,
Quando o céu canta à alma consumida
A mudança das margens em rumor.

Belo céu, vero céu, vê como eu mudo!
Depois de tanto orgulho e tanta estranha
Ociosidade - cheia de poder -
Eu me abandono a esse brilhante espaço,
Por sobre as tumbas minha sombra passa
E a seu frágil mover-se me habitua.

A alma expondo-se às tochas do solstício,
Eu te afronto, magnífica justiça
Da luz, da luz armada sem piedade!
E te devolvo pura à tua origem:
Contempla-te!... Mas devolver a luz
Supõe de sombra outra metade morna.

Oh, para mim, somente a mim, em mim,
Junto ao peito, nas fontes do poema,
Entre o vazio e o puro acontecer,
De minha interna grandeza o eco espero,
Sombria, amarga e sonora cisterna
- Côncavo som, futuro, sempre, na alma.

Sabes tu, prisioneiro das folhagens,
Golfo roedor de tão finos gradis,
Claros segredos para os olhos cegos
Que corpo a um fim ocioso me compele,
Que fronte o atrai a tal rincão de ossadas?
Um lampejo aqui pensa em meus ausentes.

Sacro, encerrando um fogo sem matéria,
Pouca de terra oferecida à luz,
Prezo este sítio, que dominam tochas,
Composto de ouro, pedras e ciprestes,
Onde mármores tremem sobre sombras.
O mar lá dorme, fiel, sobre meus túmulos.

Cadela esplêndida, afugenta o idólatra!
Quando, sorriso de pastor, sozinho
Apascento carneiros misteriosos
- Branco rebanho de tranqüilos túmulos -
Afasta dele as pombas temerosas
Os sonhos vãos, os anjos indiscretos.

Aqui vindo, o futuro é indolência.
Nítido inseto escarva a sequidão;
Tudo queimado está desfeito e no ar
Se perde em não sei que severa essência,
Faz-se a amargura doce e claro o espírito.

Os mortos estão bem, sob esta terra
Que os aquece e resseca seu mistério.
O meio-dia no alto, o meio-dia
Quedo se pensa em si e a si convém.
Fronte completa e límpido diadema,
Eu sou em ti recôndita mudança!

Eu, somente eu, contenho os teus temores!
Meus pesares, limitações e dúvidas
São a falha de teu grande diamante...
Em sua noite grávida de mármores,
Entanto, um povo errante entre as raízes
Tomou já teu partido, lentamente.

Dissolveu-se na mais espessa ausência;
Bebeu vermelho barro a branca espécie;
Passou às flores o dom de viver.
Dos mortos, onde as frases familiares,
A arte pessoal, as almas singulares?
Tece a larva onde lágrimas nasciam.

O riso agudo de afagadas jovens,
Olhos e dentes, pálpebras molhadas,
O seio ousado desafiando o fogo,
Sangue a brilhar nos lábios que se rendem,
Últímos dons e dedos que os defendem
- Tudo se enterra e ao jogo outra vez volta.

E tu, grande alma, acaso um sonho esperas,
Despido, então, das cores de mentira
Que a estes meus olhos a onda e o ouro mostram?
Cantarás, quando fores vaporosa?
Tudo flui! Porosa é minha presença;
A sagrada impaciência também morre.

Magra imortalidade negra e de ouro,
Consoladora com horror laureada,
Que seio maternal fazes da morte
- O belo engano, a astúcia mais piedosa!
Quem não conhece e quem não repudia
Esse crânio vazio, o riso eterno?

Pais profundos, cabeças desertadas,
Que sob o peso de tantas pàzadas
Terra sois, confundindo os nossos passos!
O verdadeiro verme, irrefutável,
Não para vós existe, sob a lousa
Ele de vida vive e não me deixa.

Amor, talvez? Talvez ódio a mim mesmo?
Seu dente oculto está de mim tão próximo
Que qualquer nome, acaso, lhe convém.
Que importa!... Ele vê, quer, sonha, ele toca:
Minha carne lhe agrada, e até no leito
Vivo de pertencer a este vivente.

Zenão, cruel! Zenão, Zenão de Eléia!
Feriste-me com tua flecha alada,
Que vibra, voa e que não voa nunca.
O som engendra-me e a flecha me mata!
O sol... Ah, que sombra de tartaruga
Para a alma, Aquiles quedo e tão ligeiro!

Não, não!... De pé! No instante sucessivo!
Rompe meu corpo, a forma pensativa!
Bebe meu seio, o vento que renasce!
Esta frescura a exalar-se do mar
A alma devolve-me... Ó, poder salgado!
Corramos à onda para reviver!

Sim, grande mar dotado de delírios,
Pele mosqueada, clâmide furada
Por incontáveis ídolos do sol,
Hidra absoluta, ébria de carne azul,
Que te mordes a fulgurante cauda
Num tumulto ao silêncio parecido,

Ergue-se o vento! Há que tentar viver!
O sopro imenso abre e fecha meu livro,
A vaga em pó saltar ousa das rochas!
Voai páginas claras, deslumbradas!
Rompei vagas, rompei contentes o
Teto tranqüilo, onde bicavam velas!


Trad. de Darcy Damasceno e Roberto AIvim Confia.