Pilulinha 47
O romance Sem Gentileza, de Futhi Ntshingila, da Editora Dublinense, lê-se de
um único fôlego. A autora sul-africana, de etnia zulu, aos poucos, vai
descerrando os percalços de um país no qual a miséria e a subvida dominam a
narração, e o drama da gravidez precoce, da aids e da impossibilidade de se
manter vivo se concretizam por meio das palavras da escritora.
A literatura vem acentuando no
mundo todo esse escrever legítimo dos que nunca puderam dar a ver seu drama. A
temática às vezes acerta, às vezes erra. Muitas vezes o erro está,
paradoxalmente, na pouca profundidade da exploração da linguagem e do que pode
ela construir sobre universo tão profundamente inquietante. Se se pudesse
pensar a matéria literária matematicamente, diria que a igualdade formulada para
a resolução de uma equação se perde numa incongruência. Se de um lado o drama
vigoroso da vida admite que nele se debruce o escritor, do outro a matéria
sobre a qual é seu ofício se perde nem dois desdobramentos bastante complexos.
O primeiro estaria em que nem
sempre a resolução dos problemas trazidos à tona pela vida permite que se
escolha entre a gentileza e a falta dela; essa escolha denotaria uma percepção maniqueísta
da vida não permitindo que o trágico se coloque, para que dele possa surgir uma
ética, apostando-se apenas na narrativa do desastre, que acaba por ser
redentor, pois que deixa antever apenas uma moral, que sempre será volátil e
excludente.
O segundo estaria na composição
da trama. Ntshingila a compõe de maneira admirável, fazendo com que confluam os
eixos narrativo numa mesma direção. As personagens se desenvolvem aos poucos
vão ganhando contornos definidos e as ligações entre eles, obscuras por motivo
necessário e verossímil, se fecham de modo perfeito. Percebe-se aí a mão da
escritora, sua maestria.
Entretanto o segundo
desdobramento não é o bastante. Há de se ultrapassar certo bom mocismo que
desponta no plano geral da narrativa e alivia – porque parte do exemplo – a consciência
culpada que obrigatoriamente e por motivos éticos deveria recair sobre a
parcela usurpadora dos direitos sociais e humanos.
Ao dar à personagem uma saída integradora,
a autora, ao mesmo tempo que chama atenção para as mazelas que afligem a sociedade
apartada da África do Sul, não permite que se aprofundem as questões que a levaram
a esta exclusão, bastando-lhe a leve comoção moral com que seus leitores
certamente se identificarão.
(oswaldo martins)
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