Estação Piedade: a poesia como experiência do tardio
(Celia Pedrosa)
Nesse contexto, a estreia tardia
de Elesbão deve ser com certeza considerada uma escolha deliberada, que funciona como sinal de um
positivo distanciamento da perigosa e recorrente associação da criação poética
a um entusiasmo juvenil tido como garantia de ousadia sentimental e/ou
experimental. A esse respeito, aliás, Mário de Andrade já denunciava, no ensaio
“Elegia de abril”, a tradição do “livrinho de versos inaugural” e suas sequelas
na vida intelectual brasileira, inclusive no modernismo, a ela contrapondo a
produtiva lentidão disciplinada, aprendida mais tarde, pela geração de jovens
da década de 40, com a formação universitária então ainda incipiente.
Extrapolando nosso caso
específico, também o clássico ensaio “Tradição e talento individual”,
de T.S. Eliot, enfatiza a
capacidade de convivência com a tradição como condição para que o escritor jovem
elabore lentamente sua singularidade a partir da experiência de conhecimento do
outro. Tais considerações repercutem hoje, de diferentes modos, na intensa revisão
dos valores idealistas modernos de originalidade e ruptura e no consequente
enfrentamento das tensões, contradições e aporias inerentes a toda relação de
contemporaneidade. Exemplo aqui em especial pertinente dessa revisão é o livro
O estilo tardio, em que Edward Said revê o caráter tradicionalmente negativo atribuído
a esse conceito, a partir daí apontando para diferentes formas de compreensão
da temporalidade na/da arte.
Perseguindo essa trilha, propomos
considerar a hipótese de que a poesia de Elesbão ganha em ser compreendida pela
associação dessa opção pelo tardio a uma estética do afeto tímido e/ou humilde.
É claro que desse modo ela pode ser de imediato aproximada da poesia de Manuel
Bandeira – cuja importância para a poesia a partir dos anos 70 não foi ainda
suficientemente avaliada. Mas ao mesmo tempo também pode ser por essa via
diferenciada pela forma como articula experiência de vida e de leitura desse e
de outros escritores, inscrevendo-se de modo singular no investimento contemporâneo
em uma poética do prosaico e do narrativo.
Deve-se ressaltar, no entanto,
que tal singularidade vai se evidenciando pelo contraste com formas menos
resolvidas dessa articulação apreendidas ao longo do livro. Este se apresenta
de início como sequência de poemas e séries de poemas não subdivididos ou
diferenciados por nenhum tipo de indicação cronológica ou temática, compondo
uma unidade na verdade bem problemática. Poisn essa ausência não impede que vá
se revelando pouco a pouco o entrelaçamento de três dominantes discursivas, às
vezes mais, às vezes menos distintas, tramadas sob o fundo também aparentemente
uniforme de coloquialidade ao mesmo tempo terna e irônica.
Podemos identificar então um
primeiro grupo de poemas, em que através da temática amorosa - que continuará
sempre predominante - Elesbão parece apenas exercitar procedimentos já canonizados
da tradição brasileira de poesia moderna, remetendo-nos ao poema-piada de
Oswald de Andrade, ao alumbramento melancólico-erótico de Manuel Bandeira. É o
caso, por exemplo, do primeiro poema da série “do corpo e da alma”, formulado
como um aforisma bandeiriano: “a alma ao contrário do corpo/não tem por onde se
entre”.
Já na leitura da série intitulada
dedicações, encontramos poemas que se realizam mesmo como declaração dessas e
de outras dívidas. Mas desse modo, e justo na medida em que enfatizam humildemente
sua incontornável posterioridade, é que eles parecem abrir espaço para o esboço
de uma voz mais diferenciada, em que o falar como o outro dá lugar a um jogo
entre falar sobre o outro e falar-se outro. E isso porque, por um lado, em cada
poema o uso objetivo do nome próprio em títulos e dedicatórias, se vincula à
construção sintética de uma identidade discursiva a ele univocamente associado.
No poema “noites”, dedicado “para clarice lispector”, lemos: há noites em que
deixo tudo arrumado /pratos copos talheres lavados/há noites em que por
perversão /a mim mesma / deixo tudo desarrumado/pratos copos talheres
engordurados/ e o cinzeiro cheio de sarro”. Já no poema “baudelairiana”,
redescobrimos: “diz a minha bela/ doce e graciosa/ querida e amada /precisamos
ter pobres –/precisa haver pobres/ pergunta-me então/quem há de varrer as ruas/
por onde passamos”.
Por outro lado, esses poemas
constituem uma cadeia de referências agora muitas e muito diversas daquelas
duas que identificamos no segmento anterior. Elas nomeiam e aproximam prosadores
e poetas, nacionais e estrangeiros, de diferentes tendências: Clarice Lispector
e Baudelaire, mas também Dalton Trevisan, Graciliano Ramos, Nelson Rodrigues,
Górki e Machado de Assis, Cesário Verde, Bertold Brecht, Gonçalo Tavares,
Oswaldo Martins e Gregório de Matos. Desse modo se desdobra uma encenação tanto
da subjetividade poética quanto da formação do poema como efeito de uma herança
de convívio com o heterogêneo, de sentido por isso, além de tardio, sempre
aberto, incompleto.
Efeitos semelhantes vão dar o tom
de poemas que, embora não se apresentem como tal, e componham uma série
intitulada estação piedade, também funcionam como dedicações. Estas se mostram
mais uma vez material para a aproximação singularmente desierarquizada de
referências, dessa vez a importantes e bem distintos cineastas – Buñuel, Fellini,
Polanski, Anselmo Duarte, Bergman... - e a cinemas mais ou menos modestos, do
Odeon na Cinelândia, e do Olinda, na Tijuca, aos Bruni, Alvorada, Ridan e
Mascote suburbanos, no Méier, na Piedade, na Abolição - assemelhados todos como
motivo de descobertas de prazer, tédio e dor. Assim, o poema I relembra : “cine
Estação Piedade: a poesia como experiência do tardio Odeon/Fellini/pipocas
saltam/ no saco de pipocas/diante de mamas tão fartas”; e o poema V
acrescenta: “cine alvorada/
Bergman/um velho a comer morangos/ entre silvas/ me olhando/sentado no cine
alvorada/uma mulher de maiô/ a mergulhar no lago copacabana”.
Aí, de novo se entretecem vida e
arte para mobilizar um sujeito poético que de leitor passa a espectador de
cinema. Em ambos os casos, sua voz parece surgir como efeito de uma experiência
de silêncio e deslumbramento humildes que paradoxalmente ativa a força afetiva
e estética que desloca limites temporais e espaciais com vistas a uma escrita
vivificante do presente. No sintagma “estação piedade”, não por acaso escolhido
para título do livro, concentram-se índices do potencial significativo desse
duplo deslocamento. Pois ele remete tanto ao nome de uma cadeia contemporânea
de cinemas cult, característica da zona sul da cidade do Rio de Janeiro, e de
sua elite intelectual, quanto a uma distante e suburbana parada de antigos
trens, num bairro de gente pobre, misturando estética e afetivamente
referências comumente antagonizadas. Essa mistura resulta bem instigante, na
medida em que convida a problematizar formas unívocas de identificação e
valorização do poeta, da poesia e de sua inscrição social – hoje tão em voga.
Assim, a série de poemas sobre a
memória ao mesmo tempo emotiva e culta do cinema se desdobra naqueles que
convocam cenas de brincadeiras populares antigas como os jogos de bola de gude
e amarelinha, ou a corrida atrás de doces de Cosme e Damião, ao lado de
perspectivas de janelas, cozinhas e jardins que agora contrapõem sua
sobrevivência anacrônica à atualidade urbana de grandes edificações e
aglomerados humanos – sem idealizações, no entanto. No poema “laços”, por
exemplo :“a torneira da pia da cozinha da minha casa/ lembra-me um laço de
fitas/ daqueles que as raparigas traziam presos aos cabelos/ lembranças de um
tempo em que te via passar/ com um cântaro/a caminho da fonte”; já em “mulher à
porta da casa”:“ a vizinha que mora em frente/ abriu a porta de casa/ estava de
azul/ viu-me à janela/ acenou-me/ olhou para um lado/ olhou para o outro lado/
entrou/fechou a porta”.
Nesse cenário o leitor/espectador
de cinema se identifica a uma subjetividade anônima, como pode ser a de
qualquer um, em qualquer lugar, afetado por uma experiência de fragilidade e de
incerteza – como aparece também nos poemas dedicados à mulher amada. A esta, o
poeta nomeia como namorada, amiga, rapariga - opção de novo anacrônica face ao
coloquial brasileiro contemporâneo, que representa ainda uma sobrevivência do
coloquial lusitano, atualizando assim as origens familiares e culturais do
poeta. Diz o poema “concordância”: “ a minha namorada não deve gostar de mim/
tem lá suas razões/ é doutora por cá e pós por lá/ poliglota fala inglês
francês e português/ não sabe cozinhar/ propus-lhe um trato/ eu cozinho e tu lavas
o prato/ não aceitou/ medo da louça lhe estragar as unhas/ definitivamente não
sei”; ou ainda o poema “caprichos”: “é muito mimada a minha amada/ está sempre
se queixando da falta de atenção/ amanhã de manhã vou lhe mandar flores/ amanhã
de tarde vou-lhe mandar flores/amanhã de noite vou-lhe mandar flores/ à noite
levo-lhe flores/ para que se lembre das flores o dia inteiro.
O movimento de atualização tardia
se concretiza também na forma predominantemente narrativa dos poemas. Esta
atesta o vínculo do poeta com tendência dominante da poesia contemporânea,
associada a uma aproximação da realidade vivida do poeta e de um leitor comum sobre
o qual pouco se pensa, ou se pensa, na maioria das vezes, a reboque de clichês.
No entanto, ao associá-la à opção pelo tardio, a poesia de Elesbão convida a
pensar que essa atualização narrativa pode ter sua força derivada justamente do
fato de encenar o inevitável descompasso entre o sujeito e sua própria
experiência.
Pensar sobre esse descompasso é
pensar o prosaico e o cotidiano, sem simplismo, em sua riqueza e dificuldade
cujo reconhecimento convida a repensar a experiência ética e estética do estar em
comum. Para concluir esta breve leitura, talvez se possa considerar exemplar
dessa força comunicativa desterritorializante, o uso da imagem da lavadeira que
o poeta, de modo emblemático, escolhe para abrir e encerrar o livro. Na epígrafe,
ela serve para recuperar de Graciliano Ramos a vontade de escrever “da mesma
maneira como as lavadeiras lá de alagoas fazem seu ofício”. No último poema, o
título de inflexão cabralina, metapoética, “lavar palavras”, introduz uma
associação em que o infinitivo de tom didático e imperativo é modalizado por um
subjuntivo condicionalizante, assim como o valor de clareza e limpeza do
trabalho poético é modalizado pela referência lírica a antigas e imprecisas
paisagens de aldeias e riachos. Assim, em sua simplicidade, a imagem da
lavadeira dribla imediatismos sentimentais ou realistas, fazendo da leitura um
gesto em que a concretude de imagens vistas e/ou lembradas, apresenta-se
simultaneamente próxima e distante, evidente e imprecisa, contemporânea e
tardia - como toda experiência de convívio. Leiamos então o poema: “pudesse
fazer com as palavras/ aquilo que faziam antigas lavadeiras/ em riachos antigos/
de antigas aldeias/ molhar as palavras/ ensaboar as palavras/ bater as palavras
contra a pedra/ e recolhendo-as/ das águas límpidas do rio/ deitá-las na
relva”.
Celia Pedrosa é professora do Programa de Pós-graduação em Estudos de Literatura
da UFF, onde coordena os grupos de pesquisa "Poesia e contemporaneidade"e
"Pensamento teórico-crítico sobre o contemporâneo". Publicou, entre
ouros, os livros Ensaios sobre poesia e contemporaneidade (EdUFF, 2011) e
Antonio Candido: a palavra empenhada (EdUSP/EdUFF, 1995).
O livro Estação piedqade, de Elesbão Ribeiro - poeta editado pela TextoTerritório - pode ser adquirido no seguinte endereço:
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