sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

O CASTIGO - Conto de Cesar Cardoso com prefácio de Ronaldo Correia de brito


Eu não devo conversar com a minha colega do lado durante a aula.
Eu não devo perguntar como foi o fim de semana da minha colega do lado durante a aula.
Eu não devo morrer de vergonha e confessar que passei a tarde de sábado deitado na cama pensando na minha colega do lado durante a aula.
Eu não devo escrever meu nome no caderno da minha colega do lado nem deixar o coração disparar quando ela me olhar com seus olhos verdes, virar para a frente e tornar a me olhar durante a aula.
Eu não devo abaixar os olhos nem sentir uma quentura se espalhando pelo rosto nem desejar pousar a cabeça nas coxas da minha colega do lado nem pegar a borracha na outra mesa só para roçar os dedos bem de leve, quase sem tocar, nos pêlos lisinhos do braço dela durante a aula. 
Eu não devo devolver a borracha, emprestar a caneta de três cores - azul, vermelha e preta, olha só! -, deixar cair tudo e, enquanto cato sem jeito, segurar os braços da minha colega do lado e puxá-los mesmo sem muita força, porque ela nem resistiu e veio para o meu lado com tanto impulso que nós quase caímos das cadeiras e deu uma vontade de rir danada durante a aula.  
Eu não devo pedir à professora para ir ao banheiro, ouvir ela dizer que a minha colega do lado já foi e eu sei muito bem que só vai um aluno de cada vez, não adianta insistir que estou apertado, que ela foi no banheiro das meninas e eu vou no meu, porque a professora já está berrando que eu sou metido a engraçadinho mas ela não está achando graça nenhuma e eu devia era ficar calado durante a aula.
Eu não devo fazer um bilhete para a minha colega do lado nem ficar com a mão tremendo tanto que mal consigo escrever e não saber mais se faço ou não faço o bilhete, acabar fazendo assim mesmo, todo tremido, de um jeito que ninguém vai conseguir ler o que está escrito, muito menos ela, que até usa óculos, uns óculos que fazem ela ficar mais bonita ainda quando franze os olhos verdes e tenta ler o que eu escrevi durante a aula.  
Eu não devo arrancar o bilhete das mãos dela, me abaixar na carteira e dizer que não adianta ela fazer cosquinha porque eu não vou dizer o que está escrito ali, ela não vai saber nunca, não conto, pode desistir, nem adianta puxar meus braços, apertar minha mão, minhas bochechas, e quer saber o que eu vou fazer?, vou fechar os olhos e encostar de leve meus lábios e minha língua nos lábios e na língua da  minha colega do lado durante a aula.
Eu não devo me assustar com o grito da minha colega do lado nem com a professora berrando de novo comigo que dessa vez eu passei dos limites, nem dizer que eu não passei limite nenhum, professora, nós estávamos só conversando e eu não entendo porque a minha colega do lado começa a chorar e a dizer que eu vivo implicando, perturbando, fazendo bilhetinhos e que ela só gritou porque eu a beijei à força, à força, professora!, e eu nem devo quase começar a chorar também e jurar que não beijei ninguém, é mentira, enquanto a professora vem até aqui, me pega pelo braço e me leva pra fora de sala junto com o bilhete que eu fiz para a minha colega do lado durante a aula.
Eu não devo tornar a sentir uma quentura se espalhando pelo rosto, só que dessa vez de tanta raiva da minha colega do lado, nem chamar o Beto, o Doda e o Codorna e combinar com eles para me esperarem lá detrás das três mangueiras no final do recreio, nem pedir desculpas para a minha colega do lado, que não quer conversa, então eu abaixo a cabeça, me desculpo novamente, ofereço um pedaço do meu lanche pra ela, que sorri, dá uma mordida no sanduíche de pão com mortadela e nós saímos conversando lá para os lados das três mangueiras, onde o Beto, o Doda e o Codorna aparecem e nós agarramos a minha colega do lado, tapamos sua boca enquanto ela se debate, eu acendo um cigarro, sopro a brasa, encosto bem pertinho daquele olho verde e falso e ela fica quietinha, enquanto nós levantamos a sua saia, tiramos a sua calcinha, deitamos ela no chão de terra, eu abaixo a calça e a cueca, me deito por cima dela, desajeitado, vou tentando cada vez com mais força, mais força, e conto que sempre sonhei que minha primeira vez seria com ela e sinto que o meu pau por fim entra naquela carne macia e gozo dentro da minha colega do lado e digo que ela não deve contar nada para ninguém durante a aula.


Cesar Cardoso



Apresentação
Ronaldo Correia de Brito

Há alguma vantagem em se narrar na primeira pessoa? Talvez. Uma delas é que a história parece ter sido escrita por alguém que não o próprio autor. Quando usamos a terceira pessoa, nos tornamos os únicos responsáveis pelo estilo, acertos e erros da história narrada.
Cesar Cardoso, de larga experiência, certamente não pensou nessa questão quando decidiu escrever os vinte e cinco contos de As primeiras pessoas. Se a escolha aconteceu ao acaso, foi seu primeiro acerto. Cada conto é uma voz narrativa diferente, tornando o livro uma polifonia vocal, que o leitor escuta enquanto lê.
Alguns esperam dos livros de contos que possuam uma atmosfera única, um mesmo diapasão narrativo da primeira à última página. Não esperem isso de As primeiras pessoas. Cesar Cardoso surpreende a cada história que narra, ou melhor dizendo, que os personagens narram por ele.
Em “Déjeuner Du Matin”, a voz que se escuta é delicada, reminiscente, com um assumido sotaque carioca. Bem diferente da voz aliciante, dissimulada e perversa de “Chororô”. Em “Eles”, a primeira pessoa narradora esbanja metáforas como ‘pude ver a lua bebendo água na vasilha do cachorro’ ou ‘socava as tristezas com muito alho e noz moscada’. É uma primeira pessoa feminina, com gosto pelo tom estranho, quase sobrenatural. Bem diferente de “Ladies First!”, em que a voz assume o deboche e a ironia, faz muitas perguntas e fala de cinema e televisão.
Ninguém neste livro sentirá o embalo da atmosfera única. Cesar Cardoso inventa modos narrativos, faz experiências como em “Bem unidos façamos”, uma sucessão de cartas engraçadas e ricas em citações, pois se trata de um autor que transita pelas várias formas da arte, mas que também é capaz de escrever com o ritmo fortemente marcado pela linguagem oral e pela música popular. Em todos os contos Cesar Cardoso imprime sua marca de narrador experiente, seguro do que é escrever bem.
O mais curioso nesse livro instigante é ler que ele foi dedicado aos netos. Com tantos experimentos e ousadias, eu o imaginava escrito por alguém bem jovem. Salve a juventude desse jovem senhor! 


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