Oswaldo Martins: lapa – memória, fetiche e contemporaneidade.
o detalhe capta a imagem e te
integra toma teus olhos olha
na perspectiva mínima
Oswaldo Martins
Ao se relacionar, de maneira muito menos direta, com a mímesis, a libido, em vez de vazar sua energia, a retém a e a prolonga no objeto que constitui.
Luiz Costa Lima
o detalhe capta a imagem e te
integra toma teus olhos olha
na perspectiva mínima
Oswaldo Martins
Ao se relacionar, de maneira muito menos direta, com a mímesis, a libido, em vez de vazar sua energia, a retém a e a prolonga no objeto que constitui.
Luiz Costa Lima
No livro A
ficção e o Poema, Luiz Costa Lima
desenvolve o conceito de mímesis-zero.
Deslindando a noção kantiana de
intuição, o teórico brasileiro tenciona as noções de tempo, espaço, violência e
libido para propor a mímesis como uma dimensão do conhecimento; assim, em seu estágio zero, [a mímesis] implica todas as
faculdades humanas, fracassando na tentativa de explica-la a partir de uma
decisão pessoal e consciente (LIMA, 2012, p. 34). Costa Lima explica
Tenho a mímesis-zero como uma mímesis-sem; uma mancha ou nebulosa na psique de um agente, que, não
tendo ainda forma, tampouco possui
movimento. Mímesis-zero equivale a dizer que não contém figuras ou linhas de
força configuradas. Ela é um como se,
isto é, algo que, em estado de gestação, se for plenamente diante, será
um objeto ficcional. Mímesis sem
movimento porque mera potencialidade. Enquanto potencialidade, ela é uma mancha
ou nebulosa já tocada pela libido. A junção entre mancha psíquica e libido
significa que algo ou alguém, uma paisagem ou quem a atravessou, ali deixou uma
marca que, por enquanto, provoca tão só uma impressão, no entanto duradoura
(LIMA, 2012, p. 26).
Assim, gerado pela libido, o objeto ficcional é fruto
da mímesis-sem ou mímesis-zero porque é potencialidade; pois, a despeito de suas
ligações com o real, a sua criação se dá como o “vir-a-ser”, daí sua
“nebulosidade” que, no entanto, se tornará “marca duradoura”.
Tomado como lugar teórico, a mímesis-zero será o fio condutor para a leitura de alguns poemas do lapa, de
Oswaldo Martins. Publicado em 2014, o livro é organizado em sete cenas e
propõe uma complexidade singular: seus poemas estão em diálogo intersemiótico
com diversas fotos feitas pelas ruas do bairro da Lapa, no Rio
de Janeiro, cidade onde o autor passou a residir na sua juventude. Feitas para
(com)figurar no livro, as fotografias foram produzidas, sob a supervisão do
poeta, por Vand Santiago e Alexandre Faria que registraram os movimentos de duas
modelos contratadas – que posaram como
prostitutas passantes mulheres tão-somente – e colaboraram para alargar
fronteiras de gênero ao se apropriarem dos sintagmas da rua e dos corpos,
compondo, numa relação metonímica entre imagem e texto, uma lírica de
foto-poemas.
Assim, fruto
da memória (que é a libido prolongada no olho do observador) do rapaz que
caminhava por aquelas paisagens, as duas artes miméticas – a fotografia e a
escrita – tornam a lapa ficcionalizada
potencialmente o vir-a-ser; pois assim como cada foto desloca a paisagem de seu
lugar de pertença, cada poema toma
teus olhos, desalienando a visão
para uma perspectiva mínima, como adverte o poema citado na epígrafe. Fetiche do
poeta, as ruas se desreificam, tornando-se parte da construção de um eu que lê
no seu tempo ido o seu tempo presente:
a rua caminha
sob teus pés
objetos
confusos
miram e acatam
a vista no
recompor
de moeda uma cega te mira
bicuda
enquanto levantas a
saia va
gabunda
solícita a dedos
e lirismo
(MARTINS, 2014, p.35).
O
quinteto, quarto foto-poema da cena II, poderia estar dedicado à une passante. A tônica fetichista que remete à Baudelaire, o gozo do voyeur, atravessará
toda a obra, pois a Lapa ficcionalizada por O. Martins é cheia de olhares
atentos aos mínimos detalhes, à
perspectiva mínima. Os objetos
confusos da rua miram a mulher que passa. A cega que guarda a esmola mira a
mulher enquanto ela passa com seu movimento de saia de tecido
vaporoso. No lapa, tudo se dá a ver. E a foto em preto e branco ao lado
esquerdo do poema – meus olhos não
perguntam nada – registra o momento
em que fortuitamente a saia se levanta enquanto a moça, parada, ajeita o
sapato. Enquanto todos esses elementos se movimentam no poema, dançando diante
dos olhos, a personagem da foto que é feita em preto e branco, estática, ganha
uma perspectiva distante no tempo, como
se estivesse a caminhar pela rua
projetada na memória do poeta.
Mímesis-zero, a marca das
reminiscências do poeta são, não um leitmotiv,
mas uma coleção de intuições que a
libido projetou no devir. Como relata o poeta no prefácio ao lapa, escrito
em 1984, o livro permaneceu inédito até 2014, mas foi se tornando obsessão e matriz de tudo o que
escrevi depois. [...] funcionava como um fetiche para mim (MARTINS, 2014, p.06). Assim,
como um jogo de sinédoques, toda a obra de Oswaldo Martins é parte do projeto
iniciado nos anos 80. É neste jogo de ausências e presenças que a própria
categoria de tempo vem à tona nos poemas, através do olhar:
rua da lapa
e paras. as retinas
contra-postas nas vitrines quase
espelhos. te olham. o
descortínio de um gato modorra
sobre a careca de um
manequim de barro. abana o rabo
permite o tempo. o gato.
recorre aos lábios o rictus
do peito estufado e paras.
as roupas vestem no corpo
o gato no manequim de
barro. abana o rabo, previne o
tempo. o pacto. ritualizas
os lábios e paras
(MARTINS, 2014, p.33)
A cena cindida pelas construções paratáticas para o
poema. Ali, o olhar pode se demorar em vitrines sem pressa como a preguiça
letárgica do gato, observando a si mesmo como sujeito que sorri o gesto
enregelado, ausente de si. A fotografia capta a rua praticamente sem movimento
e transeuntes, parada ao entardecer de casas com diversas arquiteturas
atravessadas pelo tempo. Segundo Giorgio Agamben, no livro Estâncias – a palavra e o fantasma na cultura
ocidental:
Por mais que o fetichista multiplique as
provas de sua presença e acumule um harém de objetos, o fetiche lhe foge
fatalmente entre as mãos e, em cada uma de suas aparições, celebra sempre e
unicamente a própria mística fantasmagórica (AGAMBEN, 2012, p. 62)
Desse jeito, a lapa é construída pela
fluidez da memória que, perecível, não pode ser colecionada como coisa; assim,
a importância da libido como propulsora desta poética é radical, pois mantém o
mosaico de acontecimentos teso e em projeção, podendo ser revisitado e
saqueado, ao mesmo tempo matriz e motriz da escrita, como confessa Oswaldo.
Como explica Agamben:
É curioso observar que um processo mental
do tipo fetichista está implícito em um dos tropos mais comuns da linguagem
poética: a sinédoque (e na sua parente mais próxima, a metonímia). No
fetichismo, à substituição da parte pelo todo que ela efetua (ou de um objeto
contíguo por outro) corresponde a substituição de uma parte do corpo (ou de um
objeto anexado) pelo parceiro sexual completo. Prova-se assim que não se trata
apenas de uma analogia superficial pelo fato de que a substituição metonímica
não se esgota na pura e simples substituição de um termo por outro; o termo
substituído é, pelo contrário, ao mesmo tempo negado e lembrado pelo
substituto, com um procedimento cuja ambiguidade lembra de perto a Verleugnung freudiana,
e é justamente dessa espécie de “referência negativa” que nasce o potencial
poético particular de que fica investida a palavra (AGAMBEN, 2012, p. 60).
A construção do tempo de lapa é,
portanto, vincada pela subjetividade e também pelo trabalho do leitor crítico –
leitor de si e de seu tempo –, de forma que a criação da Lapa dos poemas é
contemporaneamente anacrônica, na mesma medida em que desterritorializada. Isto
é; ao tratar do bairro boêmio carioca, o lirismo escatológico de lapa é uma
como uma ronda que à maneira de Agamben, percebe no presente uma
facho escuro do passado.
ronda
tocaram-se as fumaças que a outra boca
expelia
a paixão repetia têmporas paroxismos os
corpos
tensionados refluíam pela névoa chuva
miúda na
comissura dos lábios cabelos molhados
onde tal
vez suporte do improvável mão vultos
movimento
transmude passivo nos labirintos do
lirismo
(MARTINS, 2012, p.37).
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