Borges recebe em casa os até
então desconhecidos Campos e a mulher, Lygia: visita nunca teria se realizado
não fossem os dois siderados por algo tão trabalhoso como inocente, a poesia
Luiz Costa Lima
O leitor talvez não se tenha dado
conta que, até a morte de Jorge Luis Borges, em 1986, foi contemporâneo do
maior escritor que a América Latina já produziu. Nada há de estranho: afinal o
pão nosso de cada dia antes se tornam as ações da bolsa que a poesia. Chega a
ser mais provável que, em função da inconsequência midiática e de pequenas
invejas letradas de que não nos livramos, o mesmo leitor permaneça sem saber
que é contemporâneo do maior poeta brasileiro vivo, Augusto de Campos.
Até por isso, é mais singular e
extraordinária a oportunidade que se lhe oferece de ultrapassar os dois
desconhecimentos: a publicação do "Quase Borges" (Terracota Editora,
100 págs., R$ 39,00). Como declara seu subtítulo, o pequeno livro consta de 20
transpoemas e uma entrevista. (Acrescentem-se as fotos do encontro.)
Em fevereiro de 1984, em Buenos
Aires, Campos, na companhia de sua mulher e de um de seus filhos, era recebido
no modesto apartamento do grande argentino. Durante sua conversa, os dois
poetas se comportavam como meninos curiosos que "competissem"
amigavelmente, recordando passagens memoráveis do jogo que mais admirassem, no
caso, o "jogo da linguagem" por excelência, a poesia. Passagens do
"Finnegans Wake", do Arnaut Daniel, citado em provençal por Dante, de
Keats, de Cummings, de Pound, de Pessoa, surgem ao lado da recorrência à
etimologia de palavras e da recordação de cenas da vida de Borges e de outros
autores; tudo com a naturalidade de quem falasse sobre os acontecimentos
agradáveis do dia. Pareceriam dois amigos que se reencontravam? Mas não, nunca
haviam se visto e a visita fora possível apenas pela ousadia de um e a
disponibilidade do visitado. Nunca teria se realizado não fossem siderados por
algo tão trabalhoso como inocente: a poesia.
Isso não impedira que, desde
então até o momento em que o livro aparece, tivessem dirigido sua paixão para
rumos diversos: desde que perdera a vista por completo, Borges se dedicara a
versos de formato regular, cujo isossilabismo e métrica rigorosa ajudava sua
memorização, ao passo que Campos, sem prejuízo de continuar a traduzir seu
paideuma expansivo - desde Arnaut Daniel até Marina Tzvietáieva -, tem-se
empenhado na poesia realizada por novas mídias. Por acaso, uma "concordia
discors" - concórdia discordante? Absolutamente, não. A figura não seria
adequada porque o perfil clássico assumido por Borges e a eventual opção
eletrônica de Campos são decisões que manifestam o mesmo empenho pelo que os
cativa.
Se há discordância é aquela que
os comunga contra o performativismo profissional contemporâneo. Que poderia
haver de mais oposto que a decisão de um estrangeiro telefonar de seu hotel
para o residente local e de esse aceitar sem entraves ser visitado? (Teste-se
repeti-lo com alguma "estrela" e logo se reconhecerá a diferença.)
A seleção de textos do último
Borges abre com a mais excelente das escolhas: o "Poema dos Dons". O
leitor brasileiro - por extensão, de língua portuguesa - tem a vantagem única
de reencontrar a mesma qualidade nas duas línguas e o mesmo rigor em sua
construção. Por certo, as duas línguas são parecidas, nem por isso seria menor
a dificuldade de manter a qualidade reconhecida desde a publicação do
"primeiro" original em "El Hacedor" (1960). E a figura
atrás rejeitada aqui insiste em ser retomada: O "Poema dos Dons" se
elabora por uma "concordia discors". Ela é formada pelo
entrecruzamento de um modo expressivo e a tonalidade irônica. Modo expressivo:
uma disposição não demasiado reverente. Tonalidade irônica: não demasiado
cortante. Suas propriedades são precisamente essas porque se dirigem nada menos
que ao Criador: "Ninguém rebaixe a lágrima ou censura/ Esta declaração da
maestria/ De Deus, que com magnífica ironia/ Me deu mil livros e uma noite
escura".
Introduzindo o qualificativo
"escura", quando o verso castelhano apenas apresentava "y la
noche", Campos reforça tanto a alusão à cegueira como aumenta seu
potencial irônico, por fazer de imediato recordar "la noche oscura"
do poeta místico San Juan de la Cruz. Na impossibilidade de seguir cada solução
de cada verso, passo ao terceiro quarteto: "De fome e sede (narra a
história grega)/ Morre um rei entre fontes e jardins./ Eu erro sem cessar pelos
confins/ Dessa alta e funda biblioteca cega".
Ao destacá-lo, não pretendo
diminuir a estrofe anterior, senão aproveitar que a terceira, pelo
"enjambement" de seu começo, continua o final da estrofe 2: "De
insensatos parágrafos que cedem"
Algo de
semelhante faço com a quinta, que contém outro formato: semelhante a uma coda em música, ela recapitula os dois dons, tratando dos tesouros
entregues ao humano e conclui com a sombria ironia do ultimo verso:
"Enciclopédias, atlas, o Oriente/ E o Ocidente, eras, dinastias,/
Símbolos, cosmos e cosmogonias/ Brindam os muros, mas inutilmente".
O poema contudo está apenas na
metade. As cinco estrofes seguintes assumem outro rumo. Ressalta-se um vulto
entre as sombras. A nota sombria da quinta estrofe envolve o próprio autor, que
se faz presa da ironia que reservara ao Criador. Mas nos enganamos se pensamos
em a ironia passar de um a outro criador. A referência agora remete a um
"outro", contudo mortal, que "já recebeu noutros cinzentos/
Ocasos os mil livros e esta treva".
O outro é seu antecessor na
direção da Biblioteca Nacional de Buenos Aires, Paul Groussac. Pois o duplo dom
de todo o poema tem por objeto a biblioteca. Poema de um cego que não desaba em
desespero, cuja perda não o traz a um autocentramento compensatório, o tesouro
referido não é o das cores e formas do mundo, senão daquela parte que mais lhe
importa, o interior da biblioteca, que, ao ser percorrida, permite que o morto
Groussac e o que ainda escreve sintam o "vago horror sagrado" que um
e outro, Groussac e Borges, eu e você, somos variantes do mesmo "uno e
indivisível dilema". Dilema? Sim, de "este querido/ Mundo que se
deforma e que se apaga/ Em uma pálida poeira vaga/ Que se parece ao sonho e ao
olvido".
Ainda venhamos ao poema seguinte,
"Xadrez". Se os protagonistas do anterior eram dois - o morto e o
cego, os que de igual erraram entre as "lentas galerias" -, em
"Xadrez" os rivais deixam de ser nomeados para que se identifiquem
com o espaço: o Oriente de onde partira o jogo e o anfiteatro da terra a que se
espalhara. Na parte II do poema, o anfiteatro, por sua vez, converte-se em
cosmogonia. São as peças -"Tênue rei, bispo em viés, encarniçada/ Rainha,
torre à frente e peão alerta" - que de fato jogam ou quem será o jogador?
Quem o prisioneiro ou o carcereiro? Nem as peças nem este ou aquele continente.
Por acaso algum deus? Sim, desde que identificado com aquele cujo ardil consta
em ser feito "de pó e tempo e sonho e agonias" - o deus aceito mesmo
pelos ateus.
Se disse que "Quase
Borges" consta de 20 poemas, como uma pretensa resenha pôde se contentar
em breve referência a apenas 2? Sei que adotei um recurso contestável. Mas qual
seria a alternativa se não posso me estender por páginas sem conta?
Concentrando-me em dois dos "transpoemas" pretendi dar uma ideia da
forma de linguagem agora marginalizada pelo blablablá dos que não suportam um
instante de convívio consigo. Fora desse recurso, a solução satisfatória
exigiria a existência de um terceiro dom: o que reunisse o infinito do
conceitual com o infinito do sensível. Ou seja, que tornasse possível condensar
a suprema poesia em uma equação matemática.
Luiz Costa Lima é
crítico literário e escritor, autor de "Lira e Antilira",
"Mímesis e Modernidade", "A Ficção e o Poema", entre outros
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