Palestra no Recife
Em 23 de novembro, 2012
Luiz Costa Lima
Entendo que o convite para
participar desta comemoração seria dirigido antes a Paulo Freire do que a mim.
Assim o digo porquanto a revista Estudos universitários, junto com a Rádio da
Universidade, foram fundadas em conexão com o Serviço de extensão cultural,
dirigido por aquele saudoso amigo. Ou, reconhecendo a generosidade dos
responsáveis pelo convite, que ele seria extensivo a José Laurênio de Mello,
aos muitos que colaboravam com a revista, com a Rádio Universitária e com o
SEC. A “indesejada das gentes”, contudo, se antecipou, levou aqueles amigos e
apenas a mim poupou.
No momento em que recebi o
convite, não apenas, agradecido, o aceitei, como acrescentava que não faria uma
evocação dos anos em que Paulo, Laurênio, Orlando da Costa Ferreira, Gastão de
Holanda, Sebastião Uchoa Leite, os outros muitos colaboradores e eu trabalhamos
em um projeto que hoje eu reconheço como era utópico; que não faria tal
evocação se não estivesse seguro que aqueles amigos concordariam ser preferível
dedicar o pouco tempo de que disponho a uma reflexão sobre os dias de agora.
Mas, se uma reflexão pretende ser eficaz, deve deixar claro sobre que incide.
Por isso acrescento: procurarei pensar sobre os rumos do pensamento
sócio-filosófico contemporâneo.
Começo por diferençá-lo do tempo
que aqui se evoca. Nos anos imediatamente anteriores ao golpe de 1964, o mundo
vivia na alternativa de dois sistemas sociais: o capitalismo e o socialismo
marxista. Alguém poderá com razão contestar que a alternativa há algumas
décadas já não existia, pois o stalinismo convertera o projeto socialista em
uma das modalidades do totalitarismo que se espalhava pela Europa. Mas esta não
era a perspectiva que então tínhamos. Em troca, hoje ninguém duvidará que o
mundo vive sob um capitalismo globalizado. É dentro deste que então se dispõem
as duas concepções epistemológicas que irei brevemente assinalar e ainda mais
brevemente analisar. Elas ancoram, respectivamente, nos princípios do sujeito
autocentrado, e da linguagem, i.e., do que nela textualmente se produz.
A primeira coincide com a
abertura dos tempos modernos e encontrou seu lema na frase emblemática de
Descartes: cogito ergo sum. Sobre
ela, legitimou-se o primado da ciência, sendo justificada pela alegação de que
assim o humanismo se realizava.
Embora o primado do sujeito
autocentrado ainda encontre um grande propugnador na figura contemporânea de
Edmund Husserl (1859-1938), a partir das últimas décadas do século XIX, essa
concepção passou a se identificar com o pensamento conservador; como tal,
temeroso das inovações. Prova sumária do que dizemos: na década de 1970, entre
nós, quando uma mente conservadora se manifestava contra as tendências mais
recentes, sem, por isso, querer se mostrar partidária da ditadura sob que
vivíamos, recorria à defesa do humanismo, que estaria sendo traído pelo que se
chamava de “razão analítica”.
A partir do fim da 2ª Grande
Guerra, o mal-estar criado por tal tradicionalismo favoreceu a rápida
propagação da linha contrária. Enfrentando o realce do cogito, levantava-se o
primado da linguagem. Por economia de tempo, limito-me a chamar a atenção para
um enunciado de Michel Foucault: “O ser da linguagem não aparece por si mesmo
senão que no desaparecimento do sujeito”. A frase se encontra em um ensaio
publicado em 1966, intitulado “La Pensée de dehors”, em que o “de fora”
acentuava o que se dava e cumpria fora da interioridade do sujeito.
Ora, assim como a primazia do
cogito servia de respaldo para um pensamento conservador, o primado da
linguagem era o lema de um pensamento que se queria transformador. Por isso,
deve-se associar à concepção do “pensamento de fora” aquele que, no mundo
anglo-saxão, se tornou conhecido como o linguistic turn, difundido a partir do
Metahistory (1973), de Hayden White. Embora as duas concepções fossem
radicalemnte distintas, ambas foram fortalecidas pela propagação da
hermenêutica de fundo heideggeriano, que, formulada desde 1927, se expandiu
pelo Ocidente, sobretudo depois do fim da Grande Guerra.
É verdade que, desde as últimas
décadas do século XX, passou a ser cada vez mais compreendido que a pretensão
transformadora que se fundava no primado da linguagem era contraditada por sua
neutralização do sujeito, entendido como mero mensageiro de projetos e
propostas determinados pelas estruturas sociais. Por isso o chamado
desconstrucionismo, que englobava tanto os seguidores de Heidegger, como os
então chamados pós-estruturalistas, passou a se desgastar, precisamente no
ambiente em que mais havia prosperado: o das grandes universidades norte-americanas.
Na impossibilidade de acompanhar
as mudanças então introduzidas, apenas aludamos muito brevemente ao modo como
nos situamos. Não se trata, penso eu, de retornar ao velho cogito cartesiano,
mas de reelaborá-lo de fio a pavio. Como assim? Desde logo, pela afirmação de
que o ato de cogitar não se confunde com a fundação de um pensamento. E essa
fundação, enquanto individual, muito menos é bastante para adquirir a força de
expansão de um sistema irradiante, como foram os baseados nos princípios do sujeito
autocentrado e da linguagem.
Uma imagem nos ajuda a transmitir
mais rapidamente o que pretendemos dizer. A formulação de um pensamento
enquanto individual constitui um sistema que pode conter uma enorme força
interna de explicação. Mas, enquanto permaneça individual, essa força não é
bastante para abalar um modo de pensar estabelecido. Enquanto permaneça
individual, um pensamento, ainda que poderoso, é comparável a uma chispa que,
ao disparar, atingisse um solo úmido ou encharcado. A chispa precisará encontrar
um chão coberto de folhas secas que, alcançado, provoque uma explosão
transformadora. Isso equivale a dizer o cogito tornou-se a explosão de que
derivaram os tempos modernos menos pela força que o sistema cartesiano por si
mesmo lhe concedia, senão porque encontrava um chão propício, não mais
encharcado pela umidade teológica que até então o impedira. Do mesmo modo,
podemos dizer a ele viria a se contrapor a afirmação da linguagem porque o
sujeito do paradigma contrário era considerado como uno e integral. E porque o
sujeito era considerado uno, tornava-se fácil identificá-lo com a ideia de Ser
e contrapor esta ideia de Ser à ideia de existência (Dasein). É precisamente
isso que fará Heidegger em sua obra de 1927, Ser e tempo, que, extremamente influente
no pós 2ª Grande Guerra, servirá de respaldo a formulações como a lembrada há
pouco de Foucault.
A proposta com que iniciaria a
contraposição aos paradigmas antagônicos consiste em afirmar que a base do
pensamento humano é um sujeito não uno, mas, ao contrário, internamente
divergente, contraditório, fraturado, não no sentido negativo do termo, mas no
positivo de internamente dissonante e desarmônico. A desarmonia do sujeito
humano se manifesta pela discordância que se manifesta, em uma mesma faixa temporal,
em suas atuações nas frentes ética, familiar, professional, política, estética,
religiosa, etc.
Como não haveria tempo para
explicar o que apenas levemente exponho, pergunto-me por fim: que condições de
propagar-se tem a chispa do sujeito internamente desarmônico? A resposta
simples seria: à medida que formulada aqui, em um país ainda intelectualmente
colonizado, sua possibilidade de propagação é nenhuma. Ou, noutra formulação:
pensar que mais do que uns poucos poderiam levá-la a sério seria mais utópico
que o projeto que agora se comemora. Por que assim senão em virtude de que
nosso próprio chão é encharcado, incapaz de expandir as pequenas chispas que o
atinjam. Por que encharcado? Porque para nossas elites políticas a única coisa
que parece interessar ao desenvolvimento do país são as condições
tecno-econômicas. Em troca, o que aqui expomos seria por elas considerado um
tema de “cultura”, termo que, para nossas elites políticas, é apropriado para
algo insignificante como os discursos de batizado, de formatura ou de
casamento. Prova rápida do que se afirma: enquanto, segundo os economistas,
estamos hoje entre as grandes economias do mundo, nosso sistema escolar, aí
incluindo a universidade, se degrada de modo assustador.
Por fim, pensando em termos do
que, nos primeiros anos da década de 1960, preocupava Paulo Freire: enquanto
para ele o combate contra o analfabetismo dominante no país merecia o
sacrifício da prisão, do exílio, do ostracismo, hoje o problema assume outro
ângulo: talvez nenhum sacrifício seja agora suficiente para ir de encontro à
nova face do país. Que nova face? A de um lugar em que à diminuição do
analfabetismo corresponde o aumento de algo de que é pouco polido falar-se: o
aumento dos analfabetos alfabetizados. Para esses, nada mais importa senão o
preço do dólar, a balança de pagamentos, o aumento das exportações, a
valorização das ações na bolsa. Daí, por exemplo, o descaso com que tem sido
tratada a questão da população indígena dos Guarani-Kaiowá, expulsa das terras
em que ela, há séculos, tinha seu modo de vida estabelecido, por força do
agrobusiness mato-grossenses ou a expropriação das terras ribeirinhas de outra
população indígena, para que aí se instale uma hidroelétrica. Deste modo, como
disse em entrevista recente o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, o Brasil
tem perdido a oportunidade de mostrar ao mundo outro modo de lidar com a
diversidade dos povos e suas culturas, de não confundir progresso com a
destruição de povos não poderosos.
Em suma, para o que foi aqui dito
não seja absolutamente inútil, gostaria de solicitar às autoridades presentes
que, na medida de suas forças, alertem aos que nos dirigem que a miséria de
nosso sistema educacional terminará por tornar ilusório o crescimento apenas
tecno-econômico que tanto os preocupa. Mas essa solicitação não continua a
manter a utopia com que me referi ao projeto que Paulo dirigira?
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