SILVIANO SANTIAGO
Na sexta-feira passada fui a
Cascais para conhecer o Museu Paula Rego, ameaçado de ser extinto pelas
recentes medidas de austeridade tomadas pelo governo português. A partir de
certo momento, o nome da cidade de Sintra aparecia a cada bifurcação da estrada
e a seta apontava para as montanhas vizinhas ao oceano. Batia-me forte a
lembrança do amigo e romancista Autran Dourado - que morreria na manhã do
último domingo, aos 86 anos de idade.
Anos atrás, aquela cidade
organizara uma Festa da Língua Portuguesa. As autoridades locais desejavam
homenagear os escritores luso-brasileiros e africanos que tinham sido
agraciados com o Prêmio Camões. Depois de enviar o gentil convite a Autran
Dourado e família, a comissão organizadora estendeu outro a mim, que falaria sobre
a obra dele. Viajamos Lúcia, a esposa querida, ele e o neto, filho de Ofélia,
até Sintra. Pouco reconhecido no Brasil, Autran era recebido em Portugal com as
honras merecidas. Minhas palavras de louvação foram tímidas diante dos aplausos
da plateia. A sessão foi presidida por autoridades portuguesas.
De fácil e agradável leitura, a
vasta e multifacetada obra romanesca de Autran Dourado é, no entanto, de
difícil interpretação. A defasagem entre a leitura episódica, feita por seus
inúmeros leitores e admiradores, e a leitura reflexiva, de responsabilidade dos
estudiosos, advém de duas características de sua prosa.
Por um lado, Autran é o escritor
que, na geração a que Clarice Lispector e Guimarães Rosa também pertencem,
cultivou com o maior carinho e respeito os livros clássicos da língua
portuguesa, independentemente da nação que tinha visto o autor nascer. Entrar
em texto dele é como bater à porta da casa de parente, ou como entrar na casa
materna da língua. A linguagem ficcional brota no sangue dos nossos legítimos
vocabulário e sintaxe e, sem nacionalidade, é atemporal.
Autran Dourado foi um estilista
clássico em vida. Nos ouvidos sensíveis, o português dos romances e contos flui
com a graça de quem teve trato com o cronista-historiador Fernão Lopes, o
escrivão Pero Vaz Caminha e com as múltiplas desventuras narradas em A História
Trágico-marítima. Também teve ele trato com os gigantes José de Alencar e
Machado de Assis. O Bruxo do Cosme Velho era seu ídolo e motivo para leituras
anuais da obra completa.
Abrangentes, generosas e
atemporais, língua portuguesa e poética da narrativa abrigam o leitor, qualquer
leitor que ama nosso instrumento de expressão como a um bem inalienável, que
não pode e não deve ser conspurcado. Ao abrir as páginas de conto ou de romance
do nosso pranteado autor, o leitor se sente em salão de festas. Sua imaginação
artística dança com naturalidade, ao ritmo da valsa ou da modinha que exala dos
vocábulos e das sentenças cadenciados pela tradição.
No entanto, Autran Dourado é também
o romancista que, com inteligência crítica e imaginação solta, lidou com
autores estranhos à língua portuguesa, que se situam dentro da linhagem
realista-naturalista dominante no século 19. Refiro-me a figuras notáveis como
Gustave Flaubert, Henry James e William Faulkner. Com eles, aprendeu que o
apego à História e suas conjunturas direciona as obras propriamente literárias,
e as transforma em expressões artísticas e definitivas da sociedade em que se
inserem - e do tempo que toca aos personagens viver.
Autran lidou, ainda, com autores
estrangeiros que compuseram obras ficcionais dentro da linhagem mítica, como é
o caso de James Joyce e do seu famoso romance Ulisses, como é também o caso, já
no campo da psicanálise, de Sigmund Freud, e do tratamento que dispensa a isto
a que podemos chamar de a vida humana no planeta Terra. O romancista irlandês e
o pensador austríaco se apegam ao mito como forma estruturante de toda e
qualquer vida, de toda e qualquer narrativa. A composição mítica leva o texto a
transcender época e circunstâncias históricas, para apresentar o ser humano
como regido por leis universais, tão ricas e rigorosas quanto, por exemplo, a
figura de Fedra na peça homônima de Racine, ou o complexo de Édipo, em Hamlet.
Por ter o romancista adotado o
método mítico na composição, o personagem de Autran Dourado, antes de ser
produto de uma sociedade particular, a mineira ou a brasileira, encontra-se
envolto (é dito e repetido, é reescrito) pela cultura ocidental. Nessa linha de
raciocínio, um romance dele antes de ser regional, é cosmopolita. Antes de ser
brasileiro, português ou africano, é ocidental. A vida do personagem no romance
principia onde termina a história regional de Duas Pontes, cidade mítica
mineira que adota como sua. No entanto, aquela vida só deslancha na ficção onde
principia o mito. Como nos diz o próprio Autran Dourado: "Assim o mito
permanece e se renova incessantemente".
O novo na literatura de Autran
Dourado está no outra vez, no novamente, no retorno, no eterno retorno, na
sucessão do dia e da noite, na repetição dos dias e das noites. Dessa forma é
que se organiza sua obra-prima A Barca dos Homens. Dessa forma é que o romance
se dá ao leitor, desde que ele tenha o desejo de nela embarcar para a aventura
do conhecimento humano. Informa o romancista que A Barca dos Homens "se
estrutura pelo desdobramento cíclico ou circular de três grupos principais ou
três metáforas".
Nos romances mais significativos,
Autran Dourado utiliza o método de composição mítico, mas não se vale apenas dele
para a caracterização e constituição do personagem no contexto da história
contemporânea. Ele alarga o campo do drama humano pelo estreitamento operado
pelo contexto histórico em que ele o insere. É graças ao manuseio da história
social brasileira que Autran Dourado trama os magníficos painéis históricos a
que nos acostumamos desde A Ópera dos Mortos. Na direção estreita do seu
projeto ficcional, Autran foge do específico joyciano (o mito como estruturante
de um material de vida que escapa à História) e se adentra para o passado
patriarcal da sociedade brasileira com reflexão originalíssima sobre a obra
magna de Gustave Flaubert, com destaque para pequenas joias como Un Coeur
Simple.
Assim sendo, e por este lado,
Autran busca inserir o indivíduo na vida social brasileira. A leitura da novela
Uma Vida em Segredo, adaptada para o cinema com direção de Suzana Amaral,
propicia uma reflexão crítica sobre o papel e a função da mulher na sociedade
patriarcal e machista. Escrita na linha traçada por outros grandes escritores
modernistas mineiros, como Carlos Drummond de Andrade e Ciro dos Anjos, Uma
Vida em Segredo revela a complexa condição socioeconômica das Gerais pelo viés
da vida em família. O conflito que abre a novela é o da decisão sobre o destino
da prima Biela, no momento em que perde o pai e se encontra só no mundo.
Moça criada sem mãe e na roça,
solteirona e arisca, será ela acolhida pelos primos na cidade? Tornar-se-á a
indispensável companheira da prima casada e também solitária? Ou será enviada
pelo primo, designado seu tutor e testamenteiro, ao convento das freiras para
lá passar o resto dos dias? Acolhida em casa dos primos citadinos, qual será
seu papel e função junto à família? Caso entre para o convento, que será da sua
herança? As relações entre parentes próximos, descritas e dramatizadas com
elegância e primor por Autran Dourado, podem ajudar o leitor a estabelecer, de
maneira inteligente e criativa, leitura contrastiva entre os costumes
tradicionais do campo e os novos da metrópole brasileira.
As obras ficcionais de Autran
Dourado se fundam na excelência da língua portuguesa e têm origem nos
autênticos conflitos fundadores da nossa contemporaneidade. E desabrocham em
caldo linguístico nacional e cosmopolita, segundo os contornos duma estética realista-naturalista
e mítica, num desenrolar do universo humano que é espesso e vário,
contraditório e milionário. De tal modo os conflitos fundadores da literatura e
da arte moderna são trabalhados por ele que a leitura de suas obras requer do
estudioso a força só concedida aos amantes da cultura. Daí a dificuldade da
interpretação dos seus contos e romances que, no entanto, são de leitura
simples e prazerosa.
SILVIANO SANTIAGO É ESCRITOR, ENSAÍSTA E COLUNISTA DO
SABÁTICO
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