O avanço dos conservadores no
cenário brasileiro não se resume às eleições findas. Uma série de episódios
isolados vem demarcando o avanço destas forças. O constante ataque às obras
literárias e artísticas e a alguns conceitos sobre arte o revela. Há um clima
de insuportável vigilância sobre os temas e a forma de expô-los. Não satisfeita
de impor aos cidadãos as câmaras aplanadoras da vigilância sobre um grupo
privado, as garras dos monstros produzidos pelo sonho da razão se estendem ao
âmago do pensamento e de sua construção. Há uma urgência de vigilância e
controle nos meios formadores da ideologia privatista e antidemocrática com que
convivemos cotidianamente no nosso ofício de escritores, artistas plásticos e livres-pensadores.
Tal controle é que faz os comuns
preferirem os selinhos da má dama Hebe Camargo à formulação do mega pensador
Hobsbawm ou à obra do escritor mineiro, brasileiro e universal Autran Dourado.
Há um quê de pensamento formador no ar que intencionalmente nos faz esquecer,
pela ausência, o que realmente importa e se constitui universalidade. Assim
criam as possibilidades que atingirão, para além do anedótico, o centro
nevrálgico da nova censura que se dá de forma absolutamente naturalizada e
constante. Mesmo algumas “reações” contrárias à censura são escritas e
veiculadas como uma “corajosa” afirmação da desculpa de que há pessoas que
pensam na impertinência das construções que incomodam o lugar de conforto em
que a sociedade se acha mergulhada, mas, na verdade, possuem fôlego maior. A
simples veiculação do objeto de censura não livra a cara de ninguém de
compactuar com a própria censura. A exposição dos fatos, com a neutralidade dos
covardes, é uma forma – talvez a mais bizarra – de refirmar o lugar da censura.
Ao não afirmarem o absurdo de se censurar qualquer criação humana, criam as
brechas para os “eu não disse”, os “não vê que deveriam”, repetidos aqui e ali
como um coro mal digerido de cidadãos sem cidadania, que mais concordam com
seus líderes do que a eles apontam a usurpação dos direitos e a eles se opõem.
Dizer que tal ou qual obra sofreu censura é apenas informação e não tomada de
consciência de que de fato haja censura.
Os episódios vêm sendo constantes
e partem de instituições particulares, que se acham no direito de legislar
sobre o que pode ou não ser visto, lido ou desfrutado pela liberdade dos
comuns. Ora, desde a Constituição votada em 1988, a censura acabou oficialmente
no país, o que equivale dizer não haver censura oficial. O perigo que a censura
privatista constrói e a que se deve estar atento e à qual se deve opor é a da
insidiosa criação de um ambiente propício ao ressurgimento das censuras
oficiais. Em nome do politicamente
correto, em nome da atitudes possíveis, em nome da naturalização do saber
oficiosamente busca-se recalcar a livre manifestação, a livre apreciação do
escabroso, do distorcido, do horroroso.
Como a literatura moderna nasce a
partir da proximidade com o que é desviante e escuso, a apropriação desta
matéria pouco nobre, o abandono do sublime, se antes serviu para que se
naturalizasse o desejo subjetivo, hoje – quando as relações se querem livres e
afirmativas – há um incômodo no ar, quando o poeta e o artista contemporâneo
buscam, na expressão do que incomoda, o objeto através com o qual fala ao mundo
– e ironicamente isso se dá quando o artista expõe a fragilidade do conceito da
arte, através da interferência imediata e não mediata das afirmações vivenciais
do próprio corpo, do erotismo e mesmo da pornografia literária. Se no início da
modernidade eram as corcundas, as manchas da alma e do corpo, as fezes que
fizeram arrepiar o leitor, no fim da modernidade, como se a conhece, esse
pequenos desvios já não falam senão do que é gosto comum e como a necessidade
da poesia – ou da arte em largo senso – é dizer o que foge ao senso comum e
defini-la como artigo do belo, surgem os embates contra o que está arraigado pelo
moralismo da sociedade controlada pelo semianalfabetismo, pelas diretrizes dos
que adquiriram algum poder – relativo à própria instituição ou mais amplo.
A necessidade da arte é a de
ultrapassar os limites da justiça e criar um vazio na sua própria constituição
para verificá-la fora dos ditames temporais demarcados pela construção de uma
justiça alheia e que é determinada como justa pela ausência de embate.
Curiosamente os poetas e artistas agredidos se calam ou, se falam, não
encontram eco nos ampliadores formais da comunicação, que preferem a formulação
rasteira que se esconde no truísmo da informação clean e não opinativa.
(Oswaldo Martins)
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