segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Do Estive lá fora de Ronaldo Correia de Brito


Antes de se atirar nas águas barrentas do rio Capibaribe, Cirilo lembrou as humilhações sofridas de colegas e professores, que não perdoavam sua rebeldia nem seu desprezo por um modelo de ensino corrompido, em meio às sombras da repressão. Por duas vezes escapara de um massacre durante as aulas e quis desistir do confronto. Sentia um absurdo desejo de repetir João Domísio, o tio arrastado pela enchente do rio Jaguaribe, o corpo branco perfurado de balas, irreconhecível nos redemoinhos da correnteza. Não passou pela cabeça de Cirilo a questão se a vida valia a pena, nem foi a ausência de motivos lógicos para viver que o trouxe à ponte em que se debruça. Sua revolta não se filia a nenhuma causa revolucionária como a do irmão Geraldo. Teria abjurado toda verdade proclamada para continuar andando pelos becos infames do Recife, em meio ao lixo e à merda. Os suicidas jogam com a morte uma peleja cheia de malícia e sedução, trabalham estratégias ao longo de anos e o que chamam de impulso é apenas a cartada final.
Homens puxam carroças, indiferentes a Cirilo e ao manguezal sobrevivendo nas margens do rio. Será que o concreto armado substituiu alguma ponte de madeira? Vira-se em busca de trilhos de ferro, imagina se passavam bondinhos por ali. Deseja romper com o cenário em volta, mas não consegue. A memória refaz seus vínculos com o Recife, apega-se covardemente às imagens que afogará no mergulho. Cansou de procurar Geraldo, ausente da família desde que veio morar na cidade. Prometeu à mãe que cuidaria do irmão, vigiaria seus passos. Mas Geraldo sabe aonde vai, ligou-se a um partido político e faz discursos nas praças. Cirilo oscila ao movimento dos ônibus cheios de passageiros, avistados num relance. Exaustos e solitários, eles escurecem igual à tarde em que o sol e a chuva se revezam arbitrariamente.
Entre o impulso do corpo e o salto para baixo, nesse tempo mínimo, Cirilo se despede das coisinhas pequenas, sem significado aparente. Os olhos, doentes de tudo querer ver, enxergam aguapés na correnteza lamacenta e flores semelhantes ao lótus. Sujeira borra as pétalas aquáticas e refaz lembrança de outros rios e flores, num lampejo de gosto pela vida. E se desistir de morrer? As mãos se crispam na balaustrada da ponte entre ilhas do Recife, cidade cujo destino é inundar-se no Atlântico. Ele também irá sumir; encher os pulmões de lama podre e sepultar-se entre algas marinhas que o olhar não alcança. Caso sobreviva ao afogamento, morrerá de pneumonia ou remorso pelo crime de João Domísio, o fantasma cuja história o persegue desde criança.

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