Machado,
novo livro de Silviano Santiago, lançado pela Cia. Das Letras, no último
dezembro, constrói, a partir do grande escritor brasileiro, uma obra em que a
linguagem de apropriação do outro se torna ao mesmo tempo um duplo palimpsesto.
A mimetização do estilo de Machado por Silviano é também a mimetização do
estilo de Silviano por Machado, operado por uma narrativa que nos entrega – e
ensina – como os romances de um e de outro, ou como os romances, devem ser
lidos e escritos.
Primeiro palimpsesto: o Machado que
se anuncia na intenção da narrativa é o Machado dos últimos anos de vida,
carcomido pela doença e por seu tratamento; entretanto, mais que o fluir da
narrativa que nos mostraria o velho bruxo em sua inteireza, repassando passo a
passo seus últimos anos, a escolha, ao efetivamente percorrer estes anos, nos
mostra outra deriva, espicaçando a curiosidade do leitor em várias outras
direções. A técnica de despiste tão machadiana aqui se aplica como uma luva. Ao
evocar a presença de diversas personalidades da época, Silviano faz-se bruxo e
palimpsesta (deve-se ler aqui o vocábulo como verbo) na narrativa a sociedade
da primeira República, a chamada Velha, e com ela constrói um painel
desvantajoso, sob a capa do elogio, de nossa formação republicana.
Tal palimpsesto se abre em outra
direção, dando vigor ao nosso segundo palimpsesto.
Segundo Palimpsesto: a República,
chamada Velha, insisto, adquire colorações do presente. As escolhas dos textos
de diversos autores, os anúncios em jornais da época, os documentos
selecionados por Silviano dão conta de uma amplidão bem maior e nas entrelinhas
do romance se inserem diversas estocadas que dão conta da paralisia de nossa
vida política, sempre afeita aos mitos fundadores da grandiosidade da terra. Ao
roubar de Mário de Alencar a herança paterna, joga como uma sombra, que se
estende ao longo de todo o romance, a dúvida que ainda hoje permeia uma
diversidade grande das obras literatura escritas por aqui, mistas de auto
complacência e deslumbramento com os mitos fundadores.
O segundo palimpsesto se constrói
aos poucos, vai juntado pedaços de discursos para explodir com força no
penúltimo capítulo do livro ao expor a percepção machadiana, a partir da
presença de Joaquim Nabuco. As derivações a que se prendia a narrativa machadiana
se diluem e se reforçam em outra direção. A consistência da obra Machado se
condensa, o espectro narrativo se adensa e faz com o leitor mergulhe em outra
direção e perceba que o Machado ali presente é Silviano e o presente de sua
época, esmiuçados com um piscar de olhos rápido e rasteiro como o de um
capoeirista ou de uma vidente que nos prevê irônica e desconsoladamente o
futuro reservado aos gêmeos de Esaú e Jacó.
No Machado de Silviano, as
metáforas bíblicas cedem lugar ao trágico grego. Se aquela nos dava uma lição
de moral – e bons costumes – esta nos dá a possibilidade trágica que formula
uma ética. Os irmãos Pedro e Paulo no burlesco que estão envolvidos semelham a
burla da própria república brasileira, cujos representantes são patéticos e moralistas.
O último capítulo do livro é uma
pequena peça que enfeixa e dá ao romance a ousadia com que foi escrito. A análise
do quadro (que se anuncia na primeira página do romance) vai compondo um painel
que é ao mesmo tempo o louvor de Machado, e, ao contrário do que possa parecer,
o elogio dos decaídos, dos doentes, dos desprovidos, dos desobedientes.
(oswaldo martins)
Boa resenha> Dá vontade de ler o livro!
ResponderExcluirBom.
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