sexta-feira, 1 de maio de 2020

Fotografia

oswaldo martins



Fotografia

Uma das mais belas coisas a se fazer, quando se gosta de fotografia, está em tirar instantâneos das cidades com que o fotógrafo se identifica. Dela retira certos ângulos, certos registros humanos, razão de ser das cidades. As pessoas ocupam as ruas e, anônimas, desfilam por elas, cônscias ou inscientes de que ocupam um lugar que é caro à paisagem com que se está acostumado. As cidades vazias também possuem um espaço de recolha para aqueles que a observam para delas extrair uma possibilidade que muitos não veem, seja pela pressa do dia a dia, seja pela falta de costume de olhar, desacostumado que se está com a própria vida. O foco buscado da cidade vazia não é o mesmo que se tem quando a cidade está abandonada das pessoas, por obrigação da preservação pública. Uma cidade vazia é como um vidro estilhaçado.

Um vidro estilhaçado não revela a razão de ser do copo, mas a memória do copo age naqueles cacos. Uma cidade é antes de qualquer coisa essa memória, que se reconstitui, quando por ela se anda com o intuito de apreendê-la; não importa se é um pedaço de um vitral que caiu e se quebrou, se um naco de azulejo abandonado numa esquina, uma carroça que passeia por ela, desafiando o poder dos possantes carros, numa avenida como a Brasil. São flagrantes essas belezas, ao serem capturadas pela lente de uma máquina; quase como uma flor, espalham sua fragrância eternizada no clique de uma fotografia. Essa flor, passageira como em um carpe diem, se revela como pessoas que circulam – águas dos rios em que não se banha duas vezes – pelas ruas buscando esse ócio de olhar atento para o mínimo movimento, para a mínima possibilidade de olhares que se cruzam como clarão e depois noite.

Para eternizar esse clarão necessita-se da multidão e da possibilidade de abraçá-la, beijá-la, beber no mesmo copo a mesma cerveja, fumar as vinte de um cigarrinho que passou de mão em mão; para eternizar esse clarão necessita-se da possibilidade da paixão, passageira ou não, enfim de uma cidade plena de suas possibilidades.

Assusta uma cidade vazia. Esse monstro cuja razão de ser são as pessoas que a habitam, que a humanizam e constroem e destroem relações, como se destroem construções feitas de tijolo e cimento, do suor dos que a habitam – insista-se – anônimos, mas plenos de possibilidades humanas, plenos para ver o clarão com que a vida se justifica e se distribui em igual medida para todos.

Uma fotografia é como uma greve que paralisa a cidade e a guarda gloriosa.

(oswaldo martins)

2 comentários:

  1. muito bom, Oswaldo. A fotografia mantém sua importância principalmente nesses momentos em que o fotógrafo se torna novamente um documentarista importante dos restos de uma sociedade abandonada.

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  2. muito bom, Oswaldo. A fotografia mantém sua importância principalmente nesses momentos em que o fotógrafo se torna novamente um documentarista importante dos restos de uma sociedade abandonada.

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