sábado, 2 de março de 2019

O cotovelo de deus

para lula

1

O cotovelo deitado sobre a escada em Montmartre se construía sob o impacto de quem nunca pousara seus olhos na paisagem das velhas putas. O gínglimo – este artefato inumano – com seus graxos, possuía a percepção de um pequeno traço, pontudo. Quase uma seta ardente no momento fugaz da unidade. Apontava nortes exatos, na bailarina exausta desta dobra particular do tempo, como se apontasse para dentro de si mesma. E em uma imagem invertida a rua que se desdobrava abaixo era um reflexo dos peitos murchos de uma vadia ou eram os peitos deitados sobre as ruas a medida milimétrica da tradição aproveitada pelas cores que aqui e ali pareciam um corte no supercílio, um pedaço de músculo, o olho cego exposto por todos corpos torturados nos porões da gendarmaria, da KGB, da CIA, da polícia brasileira Os corpos dos cubanos, dos negros, dos argelinos, das meninas de programa, reunidos neste cotovelo anverso.

2

JM nunca esteve em Montmartre. Olhava a cidade de cima. O presente. O tapa na cara. A boceta nua e o cotovelo de deus. Fora apenas pequenos excertos de um coubert, o realismo pouco lhe interessava, preferia as noites estreladas, o joelho de Tarsila, as máscaras do Benin. A gramática exposta nas entranhas dos corpos esquartejados nos mais diversos substratos. Madeira, tela, pedaço de pano, refugos. Não subira as escadas, não visitara a Sacre-coeur, preferira apontar para os ícones, construir proximidades nada espontâneas, forçadas, pois acreditava que a forja da resistência era construída das derrisões, da destruição das casas apalacetadas que a arte compunha comprometida com o esgar burguês da fotografia e da representação das democracias ocidentais. JM preferia os cotovelos de uma democracia anárquica.

3

O flash o estampido a inexistência da vírgula do ponto dois travessão uma linguagem vertida vômito frêmito, embora a razão sobrevoasse todo demão de tinta, colada aos poros em uma obsessiva busca de anatomias escondidas em que o beco e não a glória sobressaísse, denominasse pelo nome mais exato este cotovelo repousado sobre a escadaria de Montmartre.

4

Todo equívoco nasceu quando imbuído das tenebrosas interdições a que nossos pintores, nossos escritores se prenderam. Dai este pedaço escuso, essa absurda alegoria de outro deus.

Nenhum comentário:

Postar um comentário