O enteado
(Juan José Sauer – O Enteado – pagina 147)
Nesse idioma, não há nenhuma palavra equivalente a ser ou estar. A mais próxima significa parecer. Como tampouco têm artigos, ou que uma árvore é uma árvore dizem parece árvore. Mas parece tem menos o sentido de similitude que o de confiança. è mais um vocábulo negativo que positivo. Implica mais objeção que comparação. Não é que remeta a uma imagem já conhecida mas que tende, antes, a desgastar a percepção e a subtrair a contundência. A mesma palavra que designa a aparência designa o exterior, a mentira, os eclipses, o inimigo. O horizonte circular que me parece no início indiscutível e compacto era, na realidade, tal como o designava o idioma desses índios, um armazém de embustes e uma máquina de enganos. Nesse idioma, liso e rugoso, são nomeados com a mesma palavra. Também a mesma palavra, com variantes de pronúncia, nomeia o presente e o ausente. Para os índios tudo parece e nada é. E o parecer das coisas se situa, sobretudo, no campo da inexistência. A praia aberta, o dia transparente, o verde fresco das árvores na primavera, as lontras de pele morna e palpitante, a areia amarela, os peixes de escamas douradas, a lua, o sol, o ar e as estrelas, os utensílios que arrancam, com paciência e habilidade, da matéria reticente, tudo isso que se apresenta, nítido, aos sentidos, era para eles informe, indistinto e pegajoso no reverso onde se aglomerava a escuridão.
(Juan José Sauer – O Enteado – pagina 147)
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